quarta-feira, 4 de março de 2020

"Leitura", de Almeida Júnior


Almeida Júnior pintou o quadro abaixo – “Leitura” – em 1892. É uma cena paulistana, segundo os historiadores da arte. Alguns chegam a identificar o Teatro São José, ao fundo, que se localizava próximo à Rua da Glória, em São Paulo, próximo também ao atelier do artista. O quadro também evidencia o engajamento do pintor à causa dos republicanos que ocupavam o governo do estado de São Paulo, preocupados com a educação das mulheres.

"Leitura" (1892), de Almeida Júnior.
As mulheres dominavam apenas os rudimentos das letras, naquela época, e as novas autoridades estavam interessadas em incrementar a educação feminina. No quadro, uma moça mergulha na leitura de um livro e indica o seu rompimento com a postura tradicional das mulheres (mesmo de elite) de não realizar leitura de livros. A moça é uma mulher avançada, moderna, mas seu repertório de leitura seguramente era aquele indicado pelos pais e pelo marido. Não é uma mulher independente, segundo essa interpretação.

Nesse aspecto, cabe assinalar a cadeira vazia ao lado da jovem leitora. Sobre a cadeira há uma vestimenta de homem a indicar uma figura masculina que se faz ausente, mas que provavelmente a observa e registra a cena.

Existe também uma discussão a respeito de quem é a modelo: Rita de Paula Ybarra (a companheira com a qual o pintor teve um filho) ou Maria Laura (casada com um primo e com a qual o artista teve um caso por longos anos). Tudo indica que se trata de Rita de Paula, devido às fotografias que existem dela. São muito parecidas e podem ser encontradas no Google. A hipótese de a modelo ser a amante não tem muito fundamento – se bem que há certa semelhança entre uma foto da moça (também encontrável no Google) e a modelo.

A hipótese da amante ganha relevo, no entanto, quando pensamos que o caso entre os dois durou muito e as cartas da moça, encontradas pelo marido, revelam paixão intensa. Logo após a descoberta das cartas o marido trata de se separar da esposa e mata o pintor, em 1899. O crime se dá em Piracicaba (onde o marido era conhecido cafeicultor) e nessa mesma cidade ocorre o julgamento. Os jurados entendem que o autor do crime estava privado dos sentidos e da inteligência quando esfaqueou o artista e o inocentam.

Quatro anos antes do assassinato, em 1895, o quadro fora negociado pelo artista junto às autoridades paulistas e adquirido pelo Estado de São Paulo. Hoje se encontra na Pinacoteca do Estado de São Paulo e foi lá que eu o vi e revi, em lugar de honra. É um grande quadro, de um dos principais artistas paulistas.

Outro dia reparei numa reprodução desse quadro – na parede do consultório do psiquiatra – e o associei a viúva Noronha, personagem do romance Memorial de Aires, de Machado de Assis. Engraçada a associação... Estávamos conversando sobre o mundo das elites, olhei o quadro e lembrei do Machado, do seu retrato das elites do segundo reinado... Só me dei conta de que fizera uma associação equivocada (pelo menos quanto à geografia) quando saí do consultório.

“Leitura” é uma cena paulistana, apenas contemporânea ao mundo retratado por Machado no Memorial...  (ambientado nos anos 1888 e 1889, no Rio de Janeiro). Seja como for, também retrata o universo dos ricos e talvez eu não tenha errado tão feio. Mas sei lá qual o motivo de associar o quadro “Leitura” a um romance de Machado. Talvez uma dessas voltas inexplicáveis do nosso pensamento, prezado leitor, e que nem convém investigar.

A vida tem se tornado tão inexplicável e tão desnecessário explica-la, que eu apenas registro as voltas que ela dá. Procuro formatar esses pensamentos no gênero crônica (é o que eu tenho, o que sei fazer) e deixo-as voar à cata de leitores.

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