terça-feira, 2 de abril de 2024

Pedagogia da surra (2)

 

Volto ao tema das surras, de histórias que me impressionam muito, apesar de eu nunca ter apanhado pra valer. Apenas algumas palmadas.

Meu pai era um homem alegre, brincalhão, mas às vezes extremamente furioso. Na minha lembrança (ele morreu quando eu tinha 22 anos) talvez caiba dizer que era um homem de paixões extremas e várias vezes presenciei tanto a sua alegria contagiante quanto a sua raiva “desmedida”, que ele controlava com muito esforço.[1]

Meu pai foi criando num contexto familiar no qual a surra era um instrumento pedagógico e chegamos a conversar sobre isso. Seus pais achavam impossível educar sem utilizar o castigo físico – por meio de cascudos, tapas, chineladas e até mesmo com cinta - e acrescentava que cresceu pensando assim até conhecer “a mãe de vocês”.

Professora formada na Escola Complementar de Pelotas, como ela gostava de destacar, minha mãe não tinha o castigo físico como parte do seu repertório educacional. Quando o pai se alterava conosco (especialmente com o meu irmão mais velho), ela protestava e essas situações geravam embates terríveis entre eles. À muito custo o pai se continha.

Meu irmão mais velho certamente foi o que apanhou mais (não lembro direito), eu levei uma palmada e outra e acredito que meu irmão menor também. Com clareza, lembro apenas das brigas acaloradas que o pai e a mãe mantinham a respeito do modo de repreender e até castigar os filhos... Nessas discussões, minha mãe chorava, abraçada ao filho caçula, e meu pai parecia sair de si, contendo-se para não surrar os filhos desobedientes, malcriados, petulantes ou coisa semelhante.

“Impossível educar sem bater”, os seus pais diziam, nascidos em famílias camponesas na Itália, com passagem por fazendas de café paulistas, no Brasil, e depois uma lenta migração para o mundo urbano. Mas sempre a brutalidade do mundo rural os acompanhando...

Meus avós paternos tiveram catorze filhos e o castigo físico foi um instrumento (talvez o único ao seu alcance) para “colocar os filhos nos eixos”, como muitas vezes ouvi meu pai e seus irmãos e irmãs comentarem.

“Teu pai foi criado dessa maneira e foi difícil fazê-lo mudar de ideia”, minha mãe contava.

Poderia escrever sobre isso apenas como se registrasse uma característica das famílias de matriz camponesa e italiana, mas não consigo. É uma lembrança que ainda incomoda,

Estou lá, dentro da casa em que vivi com meus pais na década de 1960 (em Pelotas), e revivo tudo com os mesmos sentimentos infantis de fragilidade e onipotência. Em pânico com o que assistia, me colocava como uma peça fundamental para que aquilo acontecesse, isto é, me colocava culpado pela cena: a fúria do pai, o desespero da mãe.

Sessenta anos me separam desses episódios e eu sou capaz de revivê-los. Tudo é extremamente vivo. Eu ainda não completara dez anos de idade e a vida me parecia impossível de suportar. Escandalosamente contraditória e dramática.



[1] A referência à raiva de meu pai como desmedida é certamente um exagero. Mas não vou corrigir, apenas colocar a palavra entre aspas.

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