Volto ao tema das surras, de histórias que me
impressionam muito, apesar de eu nunca ter apanhado pra valer. Apenas algumas
palmadas.
Meu pai era um homem alegre, brincalhão, mas às
vezes extremamente furioso. Na minha lembrança (ele morreu quando eu tinha 22
anos) talvez caiba dizer que era um homem de paixões extremas e várias vezes
presenciei tanto a sua alegria contagiante quanto a sua raiva “desmedida”, que
ele controlava com muito esforço.[1]
Meu pai foi criando num contexto familiar no qual a
surra era um instrumento pedagógico e chegamos a conversar sobre isso. Seus
pais achavam impossível educar sem utilizar o castigo físico – por meio de cascudos,
tapas, chineladas e até mesmo com cinta - e acrescentava que cresceu pensando
assim até conhecer “a mãe de vocês”.
Professora formada na Escola Complementar de
Pelotas, como ela gostava de destacar, minha mãe não tinha o castigo físico
como parte do seu repertório educacional. Quando o pai se alterava conosco
(especialmente com o meu irmão mais velho), ela protestava e essas situações
geravam embates terríveis entre eles. À muito custo o pai se continha.
Meu irmão mais velho certamente foi o que apanhou
mais (não lembro direito), eu levei uma palmada e outra e acredito que meu
irmão menor também. Com clareza, lembro apenas das brigas acaloradas que o pai
e a mãe mantinham a respeito do modo de repreender e até castigar os filhos... Nessas
discussões, minha mãe chorava, abraçada ao filho caçula, e meu pai parecia sair
de si, contendo-se para não surrar os filhos desobedientes, malcriados,
petulantes ou coisa semelhante.
“Impossível educar sem bater”, os seus pais diziam,
nascidos em famílias camponesas na Itália, com passagem por fazendas de café
paulistas, no Brasil, e depois uma lenta migração para o mundo urbano. Mas
sempre a brutalidade do mundo rural os acompanhando...
Meus avós paternos tiveram catorze filhos e o castigo
físico foi um instrumento (talvez o único ao seu alcance) para “colocar os
filhos nos eixos”, como muitas vezes ouvi meu pai e seus irmãos e irmãs
comentarem.
“Teu pai foi criado dessa maneira e foi difícil
fazê-lo mudar de ideia”, minha mãe contava.
Poderia escrever sobre isso apenas como se
registrasse uma característica das famílias de matriz camponesa e italiana, mas
não consigo. É uma lembrança que ainda incomoda,
Estou lá, dentro da casa em que vivi com meus pais na década de 1960 (em Pelotas), e revivo tudo com os mesmos sentimentos infantis exagerados. Em pânico com o que assistia, me colocava como uma peça fundamental para que aquilo acontecesse, isto é, a fúria do pai e o desespero da mãe. Pior, me colocava culpado pela cena!
Sessenta anos me separam desses episódios e eu sou
capaz de revivê-los com muita intensidade. Tudo é extremamente vivo. Eu ainda não completara dez anos
de idade e a vida me parecia impossível de suportar. Escandalosamente contraditória
e dramática.
[1] A referência
à raiva de meu pai como desmedida é certamente um exagero. Mas não vou
corrigir, apenas colocar a palavra entre aspas.
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