quarta-feira, 3 de abril de 2024

São Francisco de Paula

            Dias atrás visitei a cidade de São Francisco de Paula na Serra Gaúcha. Fiz um tour pelo local, passei pela Igreja Matriz e a guia destacou a existência de uma relíquia do santo (colocada numa das paredes do templo) assim como a sua estátua, erguida no lado de fora da igreja. Tudo isso me fez lembrar da Catedral de Pelotas, dedicada ao santo, que tantas vezes visitei, desde criança.

A Catedral pelotense fica defronte ao Colégio Gonzaga, no qual fiz a quinta série do Primário, e muitas vezes, antes ou depois das aulas, andei pela igreja instigado pelos afrescos dedicados ao santo, pintados por Aldo Locatelli. Certamente vem desse tempo o meu interesse por essa figura religiosa.

A Caridade de São Francisco de Paula.

O afresco principal do altar mor é denominado “A Caridade de São Francisco de Paula” (representando o santo entre os doentes) e não há católico pelotense que não tenha, ao assistir uma missa na Catedral, contemplado a pintura com algum interesse. A cúpula também é ornamentada com afrescos dedicados ao santo, no caso referindo-se ao episódio da sua apoteose, com o santo chegando aos Céus e os anjos tocando instrumentos musicais e cantando. Isso sem contar um outro afresco, que trata da visita do santo a corte do rei Francisco de Aragão, em Nápoles, onde realiza um milagre.

Apoteose de São Francisco de Paula.

Histórias é que não faltam para alguém que se criou frequentando a catedral pelotense e ouvindo a sua mãe falar do impacto que Aldo Locatelli causou na cidade, quando veio da Itália realizar as pinturas na igreja, no final da década de 1940.[1]

Pois lembrei do santo justamente do modo como ele não é representado tanto por Locatelli, que o pinta como um homem robusto, quanto pela hagiografia católica, que o exalta pela “prática heroica da Caridade, da Humildade e da Penitência”. Lembrei o jovem Francisco que, por volta dos 18 anos, se enfurnou numa gruta nas montanhas e foi mortificar o seu corpo. Um religioso extremado que se esmerou no “lento suicídio do ascetismo”, prolongando a sua existência com o propósito de sofrer privações, como indicam os psicanalistas ao analisarem o comportamento dos santos. Um religioso que se dedicava a jejuns prolongados, vivendo numa “quaresma perpétua”, o que na certa não lhe garantia uma compleição forte e saudável como Locatelli apresenta e que só a arte religiosa, com sua tendência à idealização do ascetismo, é capaz de fazer.

Lembrei desse santo que tanto maltratou o seu corpo e, como outros ascetas da Igreja, ocupou espaço privilegiado no meu imaginário. Acho que nunca, como nesses últimos dias, desejei tanto me afastar desse modelo de vida. Tive até vontade de sentar na beira da calçada e chorar de raiva – o que seria um exagero, claro, mas expressivo do modo como hoje percebo o mundo.

Fui moldado na tradição católica e demorei a me dar conta do modo como a hagiografia e a arte religiosa embalam a trajetória dos santos, “ornamentando-as com as mais altas dignidades e aspirações”, escondendo as mazelas dos processos de autodestruição.[2] Nunca me senti tão distante desse modelo de santidade.

Dizem os psicanalistas que não há cultura que não tenha elementos de encorajamento das tendências autodestrutivas da humanidade, não sendo essa uma primazia da Cristandade. Mas foi dentro desta cultura religiosa que me criei e é com ela que dialogo. Desde criança andei pelo interior da Catedral de Pelotas e aquele robusto São Francisco de Paula, pintado no fundo do altar, certamente foi uma armadilha, da qual hoje desejo me livrar. Um herói da mortificação, moldado no exercício da “quaresma perpétua”, do sofrimento constante.

 

Obra consultada: BRAMBATTI, Luiz Ernesto. Locatelli no Brasil. Caxias do Sul / RS: Belas Letras / Instituto Vêneto, 2008.



[1] Junto com Locatelli (pintor) vieram Emilio Sessa (decorador) e Adolfo Gardoni (estucador e dourador), os três contratados pelo bispo D. Antônio Zatterra, que conhecera os artistas na Itália. Com a chegada desses artistas toma fôlego e é criada a Escola de Belas Artes de Pelotas.

[2] Muitos santos morreram cedo, completamente debilitados, como São Francisco de Assis, aos 44 anos, cego inclusive. São Francisco de Paula morreu aos 91 anos e certamente não fugiu à regra quanto ao seu estado de saúde, dado que era famosa a sua disposição ao jejum, comendo (muitas vezes) apenas uma vez por semana.  

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