domingo, 24 de março de 2024

Mundo rural

        Nasci e cresci em Pelotas. Sempre vivi em zona urbana. Minha mãe teve os primeiros sinais do parto quando estava no Cineteatro 7 de Abril e ela e o pai saíram na metade do filme e foram para a Santa Casa. O médico dissera que seria feito cesariana e não repetiria o que fizera no nascimento do meu irmão mais velho, isto é, tentar um parto normal. “Um parto muito mais tranquilo”, a mãe acentuava, sem o sofrimento da primeira vez. 
       Morei na Rua Uruguai, esquina com Santa Cruz, na Zona do Porto, até os onze anos. Vivia numa casa com quintal a meia dúzia de quadras do Canal São Gonçalo e passear no cais do porto (visitar os navios da Marinha), tomar banho no Canal (no Clube Regatas) e ir ao cinema aos finais de semana eram o meu roteiro habitual. 
       Lembrei disso outro dia, enquanto ouvia a conversa de duas colegas de trilha (ambas por volta dos 60 anos). Caminhávamos pela região serrana (próximo a Santa Maria, onde moro atualmente) e elas falavam das suas vivências no mundo rural, na infância, bem ao contrário de mim que sempre fui urbano. Uma nasceu em casa, a outra no hospital. E tiveram infância com banhos em sanga e arroio, sem cinema nem TV. Hoje vivem em Santa Maria e revivem as lembranças da infância com nostalgia e algum alívio. 
       – Minha mãe teve o primeiro filho em casa e foi tudo muito trabalhoso – disse uma delas. – Quando eu nasci, estava tudo arranjado para o parto ser no hospital. Nem a mãe nem o pai queriam repetir o sofrimento vivido no nascimento do primeiro filho. 
      Elas lembravam as dificuldades da vida no campo (o pai de uma plantando arroz na Campanha; o da outra, batatinha, na região da Colônia), olhavam para e mim e repetiam que eu não sei nada disso. 
       – Não, não sei – concordei. – Meu pai era bancário; minha mãe, professora primária. E quase nasci num cinema – acrescentei. 
       Elas riram e contaram que até os onze/doze anos o cinema era coisa rara em suas vidas, “só nas férias e olhe lá”. Depois os pais desistiram das lavouras e vieram para a cidade. Um abriu comércio em Santa Maria, o outro foi ser representante comercial (viajando muito pelo estado) e a vida melhorou. 
     – No geral melhorou, mas foi difícil também – uma delas falou. E contou que hoje namora um viúvo, pequeno proprietário rural nas imediações de Santa Maria, e dirige mais de hora para chegar até a fazenda onde ele mora e trabalha. Passa pelas imediações das terras em que um dia foram do pai e ora sente saudades ora alguma tristeza. 
     – O pai penou muito, quis manter a propriedade deixada pelo meu avô, mas não aguentou. Vendeu tudo num dia em que estava agoniado com as dívidas no banco e acho que se arrependeu. Às vezes escuto meu namorado contando o que passa para manter a propriedade funcionando, rendendo... e lembro dele. Parece que conheço tudo aquilo. 
      É uma realidade que desconheço, sei apenas o que leio nos livros (o mundo rural é sempre presente na literatura, em Lopes Neto, Cyro Martins, Érico Veríssimo), e vou juntando dados para uma ficção que não sei se um dia realizarei. O drama de pequenos e médios proprietários rurais e suas famílias, dialogando com as heranças deixadas pelos avós. Às vezes conseguindo mantê-las, e outras tantas perdendo tudo, mas nunca a memória, a lembrança de um poço, de um campo ou de um pai mirando o horizonte, no qual o Sol acabou de se pôr e o céu está vermelho feito uma poça de sangue.

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