quarta-feira, 20 de março de 2024

Dona Alice

 

Quando dona Alice soube que o filho caçula havia batido na mulher, achou que era hora de intervir. Isto era final da década de 1980, já existiam as delegacias da mulher e dona Alice temeu que a nora levasse o caso à polícia.

– Mas foi só um tapa no rosto – disse o irmão mais velho. – O Alfredo perdeu a cabeça e já se arrependeu. Não vai repetir

– Eu conheço teu irmão e sei que ele é incapaz de matar uma formiga, quanto mais bater na esposa. Mas sei bem que quando fica furioso, tal qual como o pai de vocês, ele perde a cabeça. E a Suzete, eu já vi, faz ele enlouquecer. Por isso te peço, encarecidamente, leva o teu irmão para o Rio de Janeiro e põe ele a trabalhar no restaurante que tu tens.

– Mas eles são casados! Eu não vou terminar esse casamento.

– Deixa comigo. Teu irmão está pensando em se separar e falei que eu pego o Pedrinho pra criar. Esse problema está resolvido, já disse pra ele. Tenho a pensão do teu pai e posso bancar essa despesa.

O diálogo acima é imaginário, mas a situação não. Dona Alice era minha colega numa escola estadual (no final dos anos 80, em Porto Alegre) e um dia ela desabafou comigo. E registrei o seguinte: o irmão mais velho de Alfredo tinha um restaurante em Copacabana, na Rua Xavier da Silveira, e foi nesse local que o Alfredo refez a vida. Ou deve ter refeito, sei lá. Me hospedei num hotel dessa mesma rua, dias atrás, passei uma semana como turista em Copacabana, e lembrei da história...

Na verdade, só lembrei de dona Alice (professora de Ciências, vigorosa e altiva, boa leitora de romances policiais) que mexeu com os pauzinhos (como ela dizia), acertou a separação do filho e a vinda dele para o Rio, para trabalhar com o irmão. Uma mulher capaz de fazer a roda do mundo girar ou, ao menos, intervir diretamente na vida dos filhos. Armou a separação de um, colocou o outro na obrigação de proteger o irmão, neutralizou uma nora pegando o neto para criar, e assim foi ajeitando as coisas como ela achava melhor. Recordo que ela me disse:

– O Alfredo está morando agora num apartamento pequeno em Copacabana e nem pensa em voltar. A Suzete morre de raiva de mim. Diz que eu armei tudo e eu falo que ela não conhece o marido que teve.

Conheci a Suzete numa manhã em que ela veio deixar o filho com a sogra, na escola, e confesso que não vislumbrei nenhum traço de mulher capaz de infernizar o marido. Era uma mulher de corpo bem torneado por roupas justas, muito ágil e determinada, bem simpática. Conversamos porque coube a mim receber o filho (eu era diretor da escola) e o guri ficou desenhando na minha sala até a avó terminar as aulas e vir pegá-lo para irem para casa.

Pois hoje o guri deve ter mais de 40 anos e Alfredo certamente é um velho de 72 ou 74 anos, talvez morador ainda de Copacabana. Talvez o homem que me atendeu no caixa de um restaurante onde jantei com minha companheira e bebemos Aperol. Olhei aquele homem bonachão no caixa do restaurante e pensei na hora: é o filho da dona Alice. Escapou de perder a cabeça, bater na mulher, ser denunciado na delegacia da mulher e ter a sua vida enroscada num caso policial.

Rua Xavier da Silveira, Copacabana.

– Meu filho não se perdoaria se batesse na mulher a ponto dela precisar recorrer à polícia – dona Alice me dissera.

Tive vontade de contar o caso a minha companheira, quando saímos do restaurante, mas fiquei desconfiado de que boa parte era fruto da minha imaginação. Seja como for, sempre pensei na minha colega como uma mulher sábia, mãe previdente e poderosa, dessas que os filhos nunca sabem (ou só sabem muitos anos depois) que os seus destinos foram tecidos por mães poderosas.

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