As secretarias estaduais de Mato Grosso do Sul,
Goiás e Paraná afirmaram em nota que o romance O avesso da pele, de
Jeferson Tenório, apresenta “expressões impróprias” e, por este motivo,
recolheram o livro das escolas. A obra foi lançada em 2020, premiada pelo
Jabuti, e selecionada e distribuída pelo PNLD, do MEC, para alunos de Ensino
Médio. No Rio Grande do Sul também houve intenção de retirar o livro das salas
de aula, por parte de uma diretora de escola estadual, em Santa Cruz, mas o
governo estadual não endossou a iniciativa.
No caso do Rio Grande do Sul, a professora Janaína
Venzon (a diretora de escola que se manifestou contra o livro) se justificou
com o argumento de que, “nesse momento que a gente vive”, é muito difícil
trabalhar uma obra com “esse vocabulário” com alunos menores de idade.
Quem conhece a realidade escolar sabe que a
professora não está dizendo bobagem. A abordagem da sexualidade (seja com
palavras impróprias ou não) é capaz de causar reboliço numa escola e tontear a
vida de um professor. É preciso habilidade & coragem para encarar o
assunto. Não estou justificando a censura, apenas comentando a respeito do mundo
escolar. Por muito menos, uma novela juvenil de minha autoria (Jorge
encontra Lilian, publicada de modo independente) causou um fuzuê numa
escola de Ensino Fundamental. O personagem-narrador (a novela é escrita em
forma de diário) utiliza a palavra “felação”, a mãe de uma aluna ficou sabendo,
foi pra cima da diretora e a coordenadora pedagógica penou para justificar a adoção
do livro.
A professora Janaína vive em Santa Cruz e, ao se
referir ao “momento em que a gente vive”, certamente está se referindo ao peso
do conservadorismo na cidade. Afinal, no segundo turno das eleições
presidenciais de 2022, Bolsonaro obteve 60,15% dos votos válidos e, na certa, o
moralismo rasteiro a que essa orientação política dá voz deve estar em alta. Assim,
se o tema da sexualidade (com linguagem impropria ou não, volto a insistir
nesse aspecto) já era complicado de abordar em sala de aula, com o bolsonarismo
a coisa ficou muito mais complicada. A defesa da “inocência das crianças e
adolescentes” é argumento que está na ponta da língua dessa gente e haja
paciência para aguentar.
Dito isso, acrescento que li o romance quando foi
lançado e nem lembro das cenas de sexo nem da linguagem que o autor utiliza. O foco
da narrativa é o racismo, a violência policial, e isso (além da qualidade
literária do texto, claro) é o que importa. No ano do lançamento fiz uma
resenha do livro para o boletim do meu sindicato (SEDUFSM), que reproduzo a
seguir.
A temática da negritude está em alta e o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Cia. das Letras, 2020, 188 páginas) a atualiza no cenário sul-rio-grandense. Mais especificamente em Porto Alegre, considerada a cidade mais racista do país, segundo o narrador. Um narrador muito original, por sinal. Um personagem de 22 anos, negro e estudante de Arquitetura (cotista, como ele próprio enfatiza) que se dirige ao pai assassinado durante uma desastrada abordagem policial. Uma narrativa em segunda pessoa com uma força impressionante, capaz de conquistar o leitor nas primeiras linhas:
“Às vezes você fazia um pensamento e morava nele.
Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era o seu modo
de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a
mim.”
O pai é um professor negro, nascido no Rio de
Janeiro em 1971, que se radicou em Porto Alegre por volta de 1980. Veio para o
sul com a mãe e as irmãs e foi morar na Vila Bom Jesus, na casa da avó. Sofreu
as agruras por que passam aqueles que têm a pele negra, mas só tomou
consciência do racismo quando foi aluno de Oliveira Silveira, num cursinho
pré-vestibular. Logo com Oliveira Silveira (1941-2009), um dos fundadores do
Grupo Palmares (na década de 1970) e uma das principais expressões da poesia
que tematiza a negritude. Um professor, militante e poeta, que é referido
diversas vezes ao longo do romance, numa clara homenagem ao seu papel no
movimento negro (o Grupo Palmares foi quem primeiro propôs o dia 20 de novembro
como data da Consciência Negra).
Pois o pai do narrador se faz um professor de
língua portuguesa nas escolas públicas da periferia de Porto Alegre e, após
vinte anos de magistério, se sente derrotado pelos adolescentes indisciplinados
aos quais se propõe a ensinar. É sobre esse pai, então, que o narrador se
debruça e o recompõe por meio da memória e da invenção. Um homem negro que foi
massacrado não só pelo racismo (em especial aquele que se manifesta nas
abordagens policiais), mas também pelo casamento (que se desfez após o
nascimento do filho e que não foi superado até o fim da vida) e pela atividade
no magistério público (o qual não lhe proporcionou a vida confortável que
sonhara). Um homem que muitas vezes se escondia nos próprios pensamentos e que
o filho vira ao avesso, num exercício doloroso de busca da sua humanidade. Uma
humanidade que está além da cor da pele e que seus assassinos policiais foram
incapazes de perceber.
“Estou reconstituindo esta história para mim”,
afirma o narrador, o filho do pai morto. “Uma verdade inventada, capaz de me
pôr de pé.” O avesso daquela imagem de homem negro, com atitudes suspeitas, que
foi abordado por policiais do Batalhão de Operações Especiais, na periferia de
Porto Alegre.
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