domingo, 3 de março de 2024

As brasas

 

No romance “As brasas”, de Sándor Márai, um homem (um aristocrata do Império Austro-Húngaro) leva 41 anos para dirimir as dúvidas e apaziguar os sofrimentos relativos a um incidente ocorrido num amanhecer de 1899. Neste dia, durante uma caçada, quando ele e um grande amigo se aproximam de um animal a ser abatido, o aristocrata sente a arma do parceiro apontada para si. Sente que a arma é preparada com a intenção de matá-lo e logo depois abaixada. Um incidente que é a revelação de uma paixão ele não desconfiava e que desvenda naquele dia. O amigo e a sua esposa tinham um caso e naquela oportunidade ele seria morto.

O amigo desaparece (vai viver nos trópicos, no Extremo Asiático), o casal continua vivendo na mesma propriedade (são riquíssimos, moram num castelo), mas em aposentos bem distantes um do outro, sem jamais se verem. Poucos anos depois a esposa morre e o viúvo continua revirando as brasas dos sentimentos vividos tanto com o amigo quanto com a esposa. A guerra de 1914 o chama para o front, o Império Austro-Húngaro se dissolve e o homem segue na mesma toada. Passam-se quatro décadas (a Europa é engolfada pelo nazismo) e só então o velho aristocrata “vira a chave”, isto é, se desprende desse passado angustioso. Não encontra as palavras que o explique, mas se liberta. Ou, ao menos, fica aliviado. (A cena na qual ele permite que o quadro da esposa seja recolocado na parede, pois isto “não tem [mais] a menor importância”, me parece antológica.)

Li o romance nesta semana, encontrei um amigo psicólogo e recomendei o livro. Acho que ele pode ser lido como uma espécie de longa psicoterapia (tal como sabem ser longas as psicoterapias), na qual o paciente fala, fala, rumina, durante anos e anos, e um dia “a ficha cai”. As dúvidas tormentosas se dissolvem (sem encontrar necessariamente palavras que as expliquem), os sofrimentos (as brasas dos sentimentos vividos) se apagam e tudo mais muda da figura.

Um romance e tanto. Uma obra-prima. Sádor Márai (1900-1989) é um escritor húngaro e sua obra só passou a ter um reconhecimento mundial após a sua morte. No Brasil, a Companhia das Letras lançou vários de seus títulos (entre eles, “Jogo de cena em Bolzano”, tendo Giacomo Casanova como personagem principal) e talvez a dificuldade da língua húngara explique o seu desconhecimento entre nós, leitores de língua portuguesa. Este “As brasas”, por exemplo, foi traduzido da versão italiana.

 

- MÁRAI, Sándor. As brasas. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. SP: Cia. das Letras, 2021. 180 p.

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