No romance “As brasas”, de Sándor Márai, um homem
(um aristocrata do Império Austro-Húngaro) leva 41 anos para dirimir as dúvidas
e apaziguar os sofrimentos relativos a um incidente ocorrido num amanhecer de
1899. Neste dia, durante uma caçada, quando ele e um grande amigo se aproximam
de um animal a ser abatido, o aristocrata sente a arma do parceiro apontada
para si. Sente que a arma é preparada com a intenção de matá-lo e logo depois abaixada.
Um incidente que é a revelação de uma paixão ele não desconfiava e que desvenda
naquele dia. O amigo e a sua esposa tinham um caso e naquela oportunidade ele
seria morto.
O amigo desaparece (vai viver nos trópicos, no
Extremo Asiático), o casal continua vivendo na mesma propriedade (são
riquíssimos, moram num castelo), mas em aposentos bem distantes um do outro,
sem jamais se verem. Poucos anos depois a esposa morre e o viúvo continua
revirando as brasas dos sentimentos vividos tanto com o amigo quanto com a
esposa. A guerra de 1914 o chama para o front, o Império Austro-Húngaro se
dissolve e o homem segue na mesma toada. Passam-se quatro décadas (a Europa é
engolfada pelo nazismo) e só então o velho aristocrata “vira a chave”, isto é,
se desprende desse passado angustioso. Não encontra as palavras que o explique,
mas se liberta. Ou, ao menos, fica aliviado. (A cena na qual ele permite que o
quadro da esposa seja recolocado na parede, pois isto “não tem [mais] a menor
importância”, me parece antológica.)
Li o romance nesta semana, encontrei um amigo psicólogo
e recomendei o livro. Acho que ele pode ser lido como uma espécie de longa psicoterapia (tal como sabem ser longas as psicoterapias), na qual o paciente fala, fala,
rumina, durante anos e anos, e um dia “a ficha cai”. As dúvidas tormentosas se dissolvem
(sem encontrar necessariamente palavras que as expliquem), os sofrimentos (as
brasas dos sentimentos vividos) se apagam e tudo mais muda da figura.
Um romance e tanto. Uma obra-prima. Sádor Márai (1900-1989)
é um escritor húngaro e sua obra só passou a ter um reconhecimento mundial após
a sua morte. No Brasil, a Companhia das Letras lançou vários de seus títulos
(entre eles, “Jogo de cena em Bolzano”, tendo Giacomo Casanova como personagem
principal) e talvez a dificuldade da língua húngara explique o seu
desconhecimento entre nós, leitores de língua portuguesa. Este “As brasas”, por
exemplo, foi traduzido da versão italiana.
- MÁRAI,
Sándor. As brasas. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. SP: Cia. das Letras,
2021. 180 p.
Nenhum comentário:
Postar um comentário