Passei pela Cidade do Panamá dias atrás. Passagem rápida.
Desci no aeroporto da cidade, a caminho de Cancún, apenas para passar um dia. No
caminho para o hotel, minha companheira acertou com o motorista do “táxi” um tour
pela cidade e lá fomos nós. Primeira parada, a Estação Miraflores, a estação de
uma das eclusas do famoso canal, próxima ao Oceano Pacífico. Junto à estação,
um enorme prédio para visitantes, com museu a respeito do canal e uma enorme
sacada para acompanhar a passagem dos navios. Minha visita se limitou a esse
prédio, o museu e a sacada, mais o acompanhamento da passagem de dois navios. Uma
visita de turista. Uma visita impressionante.
Escrevo essa crônica para organizar o impacto que o
passeio causou. Fui professor de História da América Contemporânea durante vários
anos e o Canal do Panamá sempre foi um tópico importante. O “duvidoso negócio”,
como escreveu o historiador norte-americano John Chasteen a respeito da
construção e administração do canal pelos Estados Unidos. Afinal, o ponto de
partida do canal foi um acordo, em 1903, no qual não participou nenhum
panamenho nativo. Pelo Panamá, assinou o engenheiro francês Philippe Varilla
(responsável pela companhia francesa que havia iniciado a construção do canal décadas
antes) e o recém-criado governo panamenho teve de aceitar as cláusulas do
tratado imposto pelos norte-americanos. O Panamá transformado num protetorado
norte-americano e o canal sob controle absoluto dos Estados Unidos. Um dos
exemplos clássicos do chamado neocolonialismo. Só na década de 1970, após muita
luta, os termos do tratado foram revistos.
Quando o “táxi” entrou na Zona do Canal e avistei os
enormes prédios que antes serviam para a ocupação militar norte-americana,
lembrei o episódio dos estudantes panamenhos invadindo a área para colocar
bandeiras do Panamá, em maio de 1958. Uma pauleira danada. As tropas de ocupação
norte-americana não aceitavam a contestação do seu domínio e revidaram com
brutalidade. Essa manifestação estudantil (que hoje tem 60 anos) foi o início
de uma luta mais agressiva pelo controle nacional do canal. O motorista, que
era de poucas palavras, na hora em que passávamos na frente dos prédios, disse
que eles já foram dos norte-americanos e hoje são prédios públicos – um deles
uma universidade. Em poucas palavras, ele resumiu a passagem de um período
histórico e, talvez, de um ainda vigente orgulho nacional.
Em 1939, o Panamá perdeu a condição de protetorado
norte-americano. E, em meados da década de 50, incentivado pelo controle egípcio
do Canal do Suez (conquistado por Nasser), o movimento estudantil panamenho
abraçou a causa do canal e pouco a pouco a proposta ganhou o conjunto da
sociedade e até da sua classe dirigente. Na década de 70, o presidente militar
Omar Torrijos forçou a abertura das negociações com os Estados Unidos e, em 1977,
um tratado reviu os termos da concessão. Em 1999, enfim, o canal passou a ser administrado
por uma agência do governo panamenho, a Autoridad del Canal de Panamá (ACP).
Durante a maior parte da luta pelo controle do canal,
um projeto de desenvolvimento nacional empolgou os panamenhos. Um projeto
desenvolvimentista (daqueles que se tornaram dominantes na América Latina desde
os anos 50) que visava o crescimento industrial, a inclusão dos trabalhadores,
muito além da atividade de prestação de serviços ao comércio internacional. A partir
de 1990, no entanto, os governos panamenhos passaram a endossar o ideário neoliberal
e a argumentar que o país devia se especializar na prestação de serviços, pois
essa era a atividade tradicional do país. Junto com isso, políticas de
desregulamentação, flexibilização e privatização foram implementadas. O antigo
projeto nacional ruiu e, seguramente, o Panamá que eu vi não foi aquele que era
almejado nos anos 70, quando o acordo de 1903 passou por séria revisão.
Nos últimos anos, a capital ganhou ares extremamente
modernos (ver foto abaixo), a ponto de ser chamada de “Miami da América Central”
e/ou a “Dubai das Américas”. Para o turista que passeia pela cidade, um cenário
impactante de prédios arrojados e sofisticados shoppings com as grifes mais
famosas do mundo. Um território internacionalizado.
Foi essa a Cidade do Panamá que visitei. Encostado na
murada da sacada de Miraflores vi passar um veleiro de passageiros e logo depois
um petroleiro. No museu, peguei um informativo chamado “El Faro” (Revista
Informativa del Canal do Panamá) que propagandeava os recentes acordos com os
chineses para os seus navios cruzarem o canal e alcançarem a Europa. Os chineses
desistiram de construir um canal próprio (na Nicarágua) e, pelo que entendi, já
são parceiros dos grandes negócios que se realizam na capital panamenha. Negócios
e mais negócios. Entre eles, a da nova rota da seda marítima unindo a China e a
Europa, conforme propôs o presidente Xin Jinping. O Panamá como país neutro,
negociando tanto com os norte-americanos quanto os chineses...
Bacana poder assistir aos navios cruzando as eclusas
de Miraflores e constatar as mudanças que ocorreram no Canal. As mudanças que
não vingaram (aquelas de orientação nacionalista) e as mudanças que foram vitoriosas (aquela de caráter neoliberal e internacionalizante).
Naquele dia, já tarde da noite, terminei o passeio
numa mesa de bar, numa calçada da praça Simon Bolívar, junto com o motorista e
minha companheira. Tomei uma taça de sangria, o motorista e minha companheira
beberam refrescos, e conversamos amenidades sobre a cidade panamenha. Estávamos
no território antigo da Cidade do Panamá – um bairro chamado Casca Vieja – com prédios
de aspecto colonial muito bem restaurados. Uma paisagem urbana caribenha muito semelhante
à de Havana – mas muito melhor conservada. E não pude deixar de lembrar que os projetos
nacionais desenvolvimentistas dos anos 50, 60 e 70 não sucumbiram. Nem mesmo o
projeto radical instaurado pela Revolução Cubana não deu todos os frutos
almejados. Vitoriosa foi essa onda neoliberal que não é favorável às classes
populares, tanto do Panamá quanto da América Latina em geral, mas que constrói
cenários deslumbrantes para os endinheirados.
Naquela noite, hablando espanhol precariamente, paguei
em dólares a conta das bebidas na mesa de calçada de Casca Vieja. No outro dia
de manhã, antes de embarcar para Cancún, dei uma banda num enorme shopping
center cheio de marcas famosas. E, apenas de longe, avistei o Panamá popular –
das habitações populares – que não foi contemplado com a modernização excludente
e neoliberal.
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