segunda-feira, 16 de novembro de 2020

As voltas que o mundo dá (memórias de professor).

        As primeiras greves do Magistério Estadual, entre 1979 e 1987 tinham uma dinâmica que depois se perdeu. Durante o período em que as aulas estavam paralisadas, havia uma agenda cultural para os professores, dentro das escolas, feita de palestras e debates. Isso se perdeu após 87, quando o Governo Pedro Simon rasgou o acordo que estabelecia o piso de 2,5 salários mínimos para a categoria e colocou o Magistério de joelhos. Nunca mais a categoria foi a mesma. Nem as greves. 
        A partir daí, os professores descobriram que eram assalariados e não “mestres” como muitos ainda se consideravam. Não vamos governar apenas para atender as demandas do Magistério, me disse um peemedebista na época. As greves se tornaram restritas às reivindicações salariais e não me recordo de agendas culturais a partir daí. Ou, pelo menos, até 1991, quando deixei de lecionar no Magistério Estadual. 
       Digo isso porque lembrei de uma palestra que fui escalado a dar, numa das greves dos anos 80. Lecionava na Escola Estadual Ana Néri, no Parque Minuano, em Porto Alegre, no turno da noite (Supletivo de 1º Grau), e nos dividíamos para cumprir um roteiro além da pauta econômica. Era uma escola modesta, constituída por pavilhões de madeira, bem ao estilo das antigas brizoletas. O tema que me coube era “o socialismo” e me utilizei de um livro do sociólogo Paul Singer – O que é socialismo, hoje (Editora Vozes, 1ª ed. 1980) – para estruturar a conversa.


       Resumindo, o socialismo não era mais entendido como no tempo do Manifesto, voltado prioritariamente para atender às demandas materiais dos trabalhadores, e, nos dias atuais, incorporava novas reivindicações como as liberdades democráticas e os direitos políticos. Não bastava atender às necessidades materiais, era necessário democratizar os processos de decisão e reduzir o autoritarismo (existente nos modelos soviético, chinês e cubano). 
       Acho que o essencial era isso. Mas não sei se tive competência para apresentar com clarezas essas formulações. Lembro que era uma noite de outono, ficamos reunidos em círculo numa sala de aula (com chão de madeira gasto e paredes e teto com pintura desbotada) e terminei a conversa empolgado. O que faltou de clareza conceitual, compreensão mais ampla das lutas político-sociais do século XX, na certa compensei com entusiasmo. 
       Houve algum debate e, ao final, um colega e eu saímos caminhando pela rua e continuamos a discussão. A parada de ônibus era logo na esquina da escola, mas seguimos a pé várias quadras, para termos mais tempo de conversa. Meu colega e amigo era sociólogo, tinha vocação para filósofo, e era rigoroso quanto aos conceitos, os argumentos e a lógica dos debates. Muito mais qualificado do que eu teoricamente, ele ponderava a respeito das tarefas para a concretização do almejado socialismo. 
       – E o que a esquerda brasileira – ele perguntava – faz em relação a isso? 
       Eu não sabia o que responder e me sentia desafiado. Não era militante de partido político, apenas um sindicalista (se bem que, na época, o CPERS ainda não era sindicato) e eleitor entusiástico do PT. Achava que o partido estava comprometido com o socialismo e dizia o que se falava na época: 
       – Ora, não há tarefas específicas, não há um projeto claro. Há uma luta e as coisas vão se dar ao longo desse processo. 
       Eu dizia essas coisas vagas, mas que pareciam indicativos de um caminho a trilhar. Que conversa!         Não perdi o contato com esse amigo, mas mudamos. Em meados dos anos 90, nos reencontramos professores universitários – numa universidade do interior do Rio Grande do Sul – e ele não estava mais preocupado com o socialismo e se distanciava do assunto torcendo o nariz. 
       Dois anos atrás, na nossa última conversa, ele era um intelectual que equiparava nazismo com socialismo, vaticinava que a esquerda alimentava um projeto totalitário de Estado e seguia nessa toada. Era um cruzado na defesa da democracia e eu ri. Cadê o intelectual rigoroso com os conceitos do tempo de Magistério Estadual? Agora, eu era um esquerdista totalitário e ele, um autêntico democrata.
       Que diferença daquela noite em que saímos de uma escola de madeira, no Parque Minuano, e caminhamos quadras e quadras para encompridar a conversa! Discussão animada a respeito do socialismo, suas possibilidades ou não, e que hoje ele reduz a um projeto totalitário e ponto final. 
       As voltas que o mundo dá – penso até hoje, tentando entender o andar das carroças, como as abóboras vão se acomodando e vamos nos reposicionando na vida.

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