segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Capa Preta, o Coisa Ruim: Satanás

             Em 1972 tive um encontro com Satanás. Ou melhor, o Coisa Ruim surgiu diante de mim como uma possibilidade real.

– O Demônio existe – me disse a Irmã Janete numa conversa privada, no pátio do Colégio Santa Clara, em Porto Alegre.

Ela me contou como ele tentara diversas freiras num convento da região colonial do Rio Grande do Sul. Ele, o Capa Preta, até deixara alguns arranhões nas religiosas. Mas não lembro se a Irmã Janete fora uma delas. A conversa era séria. A irmã estava falando para o meu bem, ela garantiu diversas vezes. Me avisando dos perigos da vida. Que eu não me arriscasse em questionar a existência das entidades malignas.

Naquele tempo eu recém completara 17 anos e há pouco mais de um ano integrava um grupo de jovens que se reunia nos fundos da igreja São Pedro, no bairro Floresta, em Porto Alegre. A Irmã Janete e o Padre Candinho eram os responsáveis pelo grupo; ela, representando a Igreja tradicional (freira do Colégio Santa Clara, que ficava na rua atrás da igreja), o Padre Candinho, a Igreja progressista.

A Irmã Janete com um discurso onde cabia o Satanás como representação do Mal e agente sobrenatural que se intromete entre os homens para os tentar e desencaminhar. O Padre Candinho, por sua vez, citando as resoluções da Conferência de Medellín (1968) e indicando uma teologia que se confrontava com a da Igreja tradicional. Uma teologia que refletia os dramas das sociedades latino-americanas (as desigualdades sociais, a opressão às classes populares, a existência dos regimes militares) e na qual o Mal não ganhava a representação do Satanás. O Mal era constituída pelas estruturas político-sociais que obstaculizavam a libertação dos homens.

O grupo de jovens a que eu pertencia se formara no final dos anos 60, no vácuo criado pela desestruturação das antigas organizações de juventude católicas (JOC, JUC, JEC) devido ao embate com o Regime Militar. Essas organizações se posicionaram contra o Golpe de 64, os governos militares e por isso foram desmanteladas. Nessa conjuntura surgiu o Movimento Estudantil Floresta (MEF), despretensioso grupo de jovens, sem maiores vinculações político-religiosas além da sua ligação com a paróquia São Pedro.

Segundo a Irmã Janete eu apresentava indícios de estar me desencaminhando e me chamara para uma conversa séria (sábado de tarde, no pátio do Colégio Santa Clara). Não recordo os detalhes da sua fala (o que ela entendia como o meu desencaminhamento) e ficou apenas a história do Coisa Ruim tentando as freiras e a ameaça de que ele bem poderia aparecer para um adolescente que estava questionando o caminho do bem.

Resisti bravamente à conversa da Irmã e nem sei como fiz isso. Lembro apenas que prendi o olho em algum ponto do pátio do colégio, iluminado pela luz da tarde, e ouvi calado. Não aceitei os argumentos da freira, mas não refutei. Saí de lá zonzo, as pernas bambas.

E talvez tenha sido ali a minha ruptura com a juventude católica e, com o tempo, com a própria Igreja.


No ano seguinte, 1973, o Padre Candinho deixou a paróquia, veio um novo sacerdote, Padre Zeno, que não se afinou com o que ainda existia do grupo de jovens da paróquia. Eu não participava mais e ouvia as notícias de longe.

Era um padre conservador e entrou em conflito com os jovens remanescentes. Deixou o grupo morrer, como escreveu mais tarde: “Era um grupo que já não servia mais e que era impossível reformar. Aplicamos a técnica da eutanásia (...) fizemos o grupo morrer lentamente, sem dor.”

No meu entendimento, era a Igreja tradicional que estava ocupando o espaço. Uma Igreja mais afinada com aquela que a Irmã Janete representava. Uma Igreja que talvez encampasse o discurso da existência de Satanás e o utilizasse como instrumento pedagógico.

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