sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Agredida e humilhada

 

Era no tempo da campanha das Diretas-Já. Os organizadores marcaram uma passeata na beira da praia, em Capão da Canoa, e eu fui com um grupo de amigos.

Fomos e voltamos no mesmo dia. Fizemos a manifestação na beira do mar, incomodamos os veranistas com nossa cantilena política e depois uma amiga e eu fomos almoçar na casa de uma amiga dela. Nunca tinha visto a mulher nem jamais a encontraria novamente. Minha amiga falou que ela se sentia “oprimida pelo marido”, um sujeito machista e de pouca cultura, muito diferente dela, mulher culta e liberada. E foi com esse retrato do casal que entrei na casa deles.

Pois nós chegamos e eu fiquei com o maridão em torno da churrasqueira. Muito simpático, ele logo me estendeu um copo de caipirinha, um prato com salsichão, e iniciamos uma conversa sobre cinema. Recordo que falamos do filme “Parahyba, mulher macho”, da Tizuka Yamazaqui, que aborda o caso amoroso da Anayde Beiriz e João Dantas, o imbróglio que gerou o estopim para a Revolução de 1930. A polícia escancara a intimidade do casal e João Dantas se vinga na pessoa do governador, João Pessoa. Mete uma bala no sujeito. O maridão gostara do filme e queria saber a minha opinião como professor de História.

Depois nos sentamos nós quatro na mesa (os filhos adolescentes estavam em casa de amigos) e aí ele não falou mais nada. Apenas se levantava para buscar mais carne, trazia uns pedaços para a mulher – “Ó, este está no ponto que tu gostas” –, servia a mulher e depois a nós dois, minha amiga e eu. Comeu calado e até eu me calei, ouvindo a conversa animada das mulheres. Ambas muito esperançosas em relação a possibilidade de vitória da emenda que propunha eleições diretas para o próximo presidente da República.

Quando o almoço terminou, o marido pediu licença, disse que precisava sestear e foi para o quarto. Nós ficamos arrumando a mesa, limpando a louça, e depois nos sentamos na varanda, eu louco de vontade de dormir e às vezes dando umas cochiladas mesmo sentado numa poltrona. Pedi uma xícara de café bem forte e acho que isto ajudou a ficar com os olhos abertos e mais ou menos prestar atenção ao que elas conversavam.

De repente, a dona da casa diz, em voz baixa, que estava cansada de tanta humilhação, não aguentava mais. Talvez tenha achado que eu estivesse dormindo. E afirmou: “Vou encontrar um jeito de me separar”.

Na volta para Porto Alegre, minha amiga me desenhou o caso: o casamento durava quase vinte anos e a amiga se incomodava com diferença cultural entre ela e o marido e, principalmente, com o fato dele não entender a sua dedicação ao magistério e ao pós-graduação que estava cursando. “Resumindo, ela se sente agredida e humilhada pelo marido”, concluiu a minha amiga.

“Ele bate nela?”, eu perguntei. “Ora, Vitor”, falou a minha amiga, “não precisa bater para agredir. É o modo como ele trata a mulher. É um grosso. Não tem consideração. Não valoriza. Humilha.” Eu disse que conversara com o maridão enquanto ele assava a carne e que não o achara um sujeito grosso e sem cultura. “Tivemos um papo bacana, sobre cinema e História”, falei. Acrescentei que me chamou atenção o seu cuidado com a mulher, oferecendo a carne como ela gostava, e que um homem que agride e humilha a mulher não se comporta assim.

Minha amiga disse que aquilo era encenação e que eu tinha muito a aprender sobre as relações entre homem e mulher. Eu tinha 28 anos, estava casado pela primeira vez e minha mulher esperava nosso primeiro filho. Conhecia um pouco das queixas femininas, mas tudo muito vago. Aquela mulher, certamente, era a primeira que eu conhecia que se sentia “agredida e humilhada” pelo marido. Um caso sério, “objeto para pesquisa de campo”, como nós falávamos (estudantes de Ciências Sociais que fôramos).

Recordo disso porque voltamos a falar sobre o assunto diversas vezes. Nós dois tínhamos a pretensão de fazer ficção, já tínhamos publicado alguma coisa – ela, por sinal, um romance juvenil de muito sucesso – e me instigava a abordar a condição feminina.

“Os homens precisam despertar para o mundo das mulheres. Sair da redoma machista”, ela me disse certa vez. “Tenta ver o mundo com os olhos de uma mulher”, ela recomendava. Um exercício que poucos anos depois eu faria nas oficinas de criação literária do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, na PUC/RS: criar um personagem feminino, escrever do ponto de vista do sexo oposto. Tentei, escrevi e publiquei até alguns contos nesta perspectiva, mas jamais alcancei a complexidade de uma mulher que se sente agredida e humilhada, especialmente quando, de modo objetivo, ela nunca foi agredida fisicamente nem esculachada verbalmente.

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