Era
no tempo da campanha das Diretas-Já. Os organizadores marcaram uma passeata na beira da praia,
em Capão da Canoa, e eu fui com um grupo de amigos.
Fomos
e voltamos no mesmo dia. Fizemos a manifestação na beira do mar, incomodamos os
veranistas com nossa cantilena política e depois uma amiga e eu fomos almoçar
na casa de uma amiga dela. Nunca tinha visto a mulher nem jamais a encontraria
novamente. Minha amiga falou que ela se sentia “oprimida pelo marido”, um
sujeito machista e de pouca cultura, muito diferente dela, mulher culta e
liberada. E foi com esse retrato do casal que entrei na casa deles.
Pois
nós chegamos e eu fiquei com o maridão em torno da churrasqueira. Muito
simpático, ele logo me estendeu um copo de caipirinha, um prato com salsichão,
e iniciamos uma conversa sobre cinema. Recordo que falamos do filme “Parahyba,
mulher macho”, da Tizuka Yamazaqui, que aborda o caso amoroso da Anayde Beiriz
e João Dantas, o imbróglio que gerou o estopim para a Revolução de 1930. A polícia escancara a intimidade do casal e João Dantas se vinga na pessoa do governador, João Pessoa. Mete uma bala no sujeito. O maridão gostara do filme e queria saber a minha opinião como professor de História.
Depois
nos sentamos nós quatro na mesa (os filhos adolescentes estavam em casa de
amigos) e aí ele não falou mais nada. Apenas se levantava para buscar mais
carne, trazia uns pedaços para a mulher – “Ó, este está no ponto que tu gostas”
–, servia a mulher e depois a nós dois, minha amiga e eu. Comeu calado e até eu
me calei, ouvindo a conversa animada das mulheres. Ambas muito esperançosas em
relação a possibilidade de vitória da emenda que propunha eleições diretas
para o próximo presidente da República.
Quando
o almoço terminou, o marido pediu licença, disse que precisava sestear e foi
para o quarto. Nós ficamos arrumando a mesa, limpando a louça, e depois nos
sentamos na varanda, eu louco de vontade de dormir e às vezes dando umas
cochiladas mesmo sentado numa poltrona. Pedi uma xícara de café bem forte e
acho que isto ajudou a ficar com os olhos abertos e mais ou menos prestar
atenção ao que elas conversavam.
De
repente, a dona da casa diz, em voz baixa, que estava cansada de tanta
humilhação, não aguentava mais. Talvez tenha achado que eu estivesse dormindo.
E afirmou: “Vou encontrar um jeito de me separar”.
Na
volta para Porto Alegre, minha amiga me desenhou o caso: o casamento durava
quase vinte anos e a mulher se incomodava com diferença cultural entre ela e o
marido e, principalmente, com o fato dele não entender a sua dedicação ao
magistério e ao pós-graduação que estava cursando. “Resumindo, ela se sente
agredida e humilhada pelo marido”, concluiu a minha amiga.
“Ele
bate nela?”, eu perguntei. “Ora, Vitor”, falou a minha amiga, “não precisa
bater para agredir. É o modo como ele trata a mulher. É um grosso. Não
tem consideração. Não valoriza. Humilha.” Eu disse que conversara com o maridão
enquanto ele assava a carne e que não o achara um sujeito grosso e sem cultura.
“Tivemos um papo bacana, sobre cinema e História”, falei. Acrescentei que me
chamou atenção o seu cuidado com a mulher, oferecendo a carne como ela gostava,
e que um homem que agride e humilha a mulher não se comporta assim.
Minha
amiga disse que aquilo era encenação e que eu tinha muito a aprender sobre as
relações entre homem e mulher. Eu tinha 28 anos, estava casado pela primeira vez e minha mulher
esperava nosso primeiro filho. Conhecia um pouco das queixas
femininas, mas tudo muito vago. Aquela mulher, certamente, era a primeira que
eu conhecia que se sentia “agredida e humilhada” pelo marido. Um caso sério, “objeto
para pesquisa de campo”, como nós falávamos (estudantes de Ciências Sociais que
fôramos).
Recordo
disso porque voltamos a falar sobre o assunto diversas vezes. Nós dois tínhamos
a pretensão de fazer ficção, já tínhamos publicado alguma coisa – ela, por
sinal, um romance juvenil de muito sucesso – e me instigava a abordar a
condição feminina.
“Os
homens precisam despertar para o mundo das mulheres. Sair da redoma machista”,
ela me disse certa vez. “Tenta ver o mundo com os olhos de uma mulher”, ela
recomendava. Um exercício que poucos anos depois eu faria nas oficinas de
criação literária do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, na PUC/RS: criar um
personagem feminino, escrever do ponto de vista do sexo oposto. Tentei, escrevi
e publiquei até alguns contos nesta perspectiva, mas jamais alcancei a
complexidade de uma mulher que se sente agredida e humilhada,
especialmente quando, de modo objetivo, ela nunca foi agredida fisicamente nem esculachada
verbalmente.
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