Li
outro dia que viajamos para construir lembranças. Na hora concordei. Mas depois
fiquei pensando e conclui que não. Viajamos para conhecer o mundo, sair do espaço restrito da nossa aldeia e alargar nossos horizontes. E, nesse
processo, adquirimos/construímos lembranças.
Chegar em Lisboa pela primeira vez, por exemplo, foi um deslumbramento completo. Parecia que eu estava adentrando no "vasto mundo" (aquele indicado por Drummond). Foi como se eu voltasse no tempo e recuperasse a minha vivência de estudante, as fantasias que criei quando guri (no Primário, no Ginásio) estudando as Grandes Navegações, a monarquia lusitana, o domínio português sobre o Brasil...
Naquela oportunidade, num dia de janeiro de 2012, eu almocei com minha antiga companheira não lembro onde, ela voltou para o hotel e eu fui visitar o Castelo de São Jorge. Nós tínhamos , à noite, um espetáculo de fado no Chiado, um jantar no restaurante São Carlos, e eu precisava estar no hotel por volta das 18 horas. Então visitei o castelo, depois peguei um bonde (eu queria passear de bonde), desci na Praça do Comércio e procurei um táxi.
Quando desci do bonde e me vi na famosa praça, entre o Arco do Triunfo da Rua Augusta de um lado e a estátua equestre de D. José I do outro, desbundei. Uma série de lembranças (livrescas, claro) me vieram a mente (o Terremoto de 1755 e a reconstrução de Lisboa, a formação do Império português e a dominação sobre as colônias) e pensei: "Então era aqui o centro do Império que tanto construiu como massacrou o Brasil?" Me dei conta de que era um brasileiro, originário de um país colonizado... Um país que, até hoje, se digladia com a herança do colonialismo...
Não foi uma sensação ruim. Foi muito boa. De certa maneira, eu estava no centro do mundo... do mundo que tanto estudara, imaginara e fantasiara. Sensacional!
Seguiu-se uma noite de fado e, depois, uma caminhada de três quadras até o Teatro São Carlos, por volta das dez da noite, as ruas da Misericórdia e Almeida Garret vazias, só o barulho dos nossos passos. Uma noite fria, escura e desafiante. Eu tinha o caminho na cabeça, estava com receio de me perder (era a primeira vez no Chiado), mas acertei a direção e chegamos lépidos e faceiros no restaurante do teatro.
Fernando Pessoa morara quando criança num prédio em frente, mas, naquela hora, eu não tinha clareza quanto a isso. Um pintor embriagado veio até nossa mesa, tentou nos vender uns quadros terríveis. Era um homem em estado deplorável (os dentes estragados) que nos contou a sua vida de privações, morando em Paris, voltando a Lisboa, morando mal, tentando viver da sua arte... e nos achando ricos para ajudá-lo. Que situação! Só nos livramos do artista porque o garçom interviu.
Voltei
anos depois ao Chiado, sozinho, igualmente à noite, batendo pernas pelo entorno
do teatro (sim, Fernando Pessoa morara no prédio em frente ao Teatro São Carlos)
e creio que cruzei com o mesmo artista com seus quadros de baixo do
braço, visivelmente alterado e
temi que me reconhecesse. Mas cruzamos um pelo outro na noite silenciosa, cada
um seguindo o seu destino.
Acho
que viajar é isso: ter essas experiências em lugares distantes, às vezes
exóticos, lugares que muitas vezes tomamos conhecimento primeiramente pela
literatura, pelo cinema, pela historiografia... e de repente nos vemos dentro
dele.
Não
viajamos para construir lembranças. Mas para sair da aldeia, ganhar o mundo ou,
ao menos, tentar ganhar, conhecer. Nesse processo, temos momentos especiais, que se
destacam do nosso cotidiano na aldeia em que vivemos, como um passeio de
bonde entre o Castelo de São Jorge e a Praça do Comércio, um espetáculo de fado
no Chiado, um jantar no Teatro São Carlos e o encontro com um pintor desvairado tentando nos
vender a sua arte horrorosa.
Teatro Nacional de São Carlos (2017). |
Obs.: procurei uma foto dessa primeira viagem a Portugal, em 2012, e não encontrei nenhuma. Alguma coisa houve no meu computador. Perdi esse arquivo de fotos.
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