Simone (vou chamar assim essa mulher que criei com alguns dados da realidade e outros tantos da imaginação) foi visitar o ex-marido, para acertar alguma coisa a respeito da filha adolescente de ambos, e a conversa saiu dos trilhos. A mulher resolveu dizer “umas verdades”.
“Tu
nunca me valorizou como mulher”, ela começou. “Os homens são assim: querem
dizer o que as mulheres devem fazer e arrasam com a autoestima delas”,
argumentou. “Casamento é uma merda, as mulheres sempre saem perdendo. Mas eu
não vou deixar barato. Nesses seis anos que estamos separados, eu me reconstruí,
recuperei a minha autoestima e hoje sou uma nova mulher”, anunciou.
Ele deixou que ela dissesse o que precisava dizer. “Não vou pôr mais lenha na fogueira”, justificou em voz baixa, sem saber se a mulher o escutava ou não. Viu a ex-esposa caminhar de uma ponta a outra da pequena sala do apartamento em que morava (um apartamento menor do que aquele em que viveram juntos, no qual ela ainda morava com a filha) e se surpreendeu com o fato dela ter ainda viva as queixas de quando estavam casados. Perguntou o que ele determinara que ela fizesse, o que ele impediu ela fazer. “Como é que eu te desvalorizava?”, insistiu. E a ex-mulher puxou um rol de episódios que explicitavam as agressões e humilhações do ex-marido.
“Um dia tu ficou furioso porque eu comprei lençóis novos para nossa cama, lençóis belíssimos, de fio egípcio, e bateste com a cabeça no espelho do banheiro. Bateste de raiva. Achaste que eu fizera uma compra inútil. Um absurdo, tu falavas e quebraste o vidro do armário do banheiro. Eu tive que repor. Tu nem pensaste nisso. No prejuízo que me causaste.”
Ele falou que não lembrava, que achava que não fora bem desse jeito, mas não insistiu nesse argumento. Não se defendeu. “Mas se tu tá dizendo...", falou. E ela retomou o assunto da autoestima ferida e recuperada, disse que
estava encontrando homens melhores e, com a voz baixa, inclinando a cabeça e escondendo o rosto (não olhando diretamente para o ex-marido), falou: “O Roberto até que fazia a coisa bem feita.
Fazia bem. Não deu certo porque ele é difícil. Um egoísta, um egocêntrico, um
horror.”
O
ex-marido sentiu alguma coisa batendo no osso do peito, apertando, doendo.
“Olha, aí já é demais”, quis dizer. “Ele trepa melhor do que eu, é isso?” Mas as
palavras não saiam da sua boca ("Não vou pôr querosene nessa história", pensou, se contendo), enquanto ela continuava falando sobre os novos
homens na sua vida. Ele conhecia dois ("Seriam mais de dois?"), com o Roberto ele conversara tempos atrás e o outro fora seu vizinho. Ela caminhava de uma ponta a outra da sala. “A vida continua, a fila anda”, ela dizia. E perguntava: “E tu, estás encontrando mulheres que te satisfaçam mais?”, conjugando os verbos corretamente e parando na frente dele, as duas mãos nos
quadris, e por fim levantando-as para o alto, num gesto de enfado. “Tá, tu não
vai falar, eu sei. Tu nunca quiseste conversar comigo de verdade”, ela disse. E
pegou a bolsa e uma sacola que deixara sobre o sofá, se preparando para sair.
O ex-marido se levantou, abriu a porta para ela ir embora. “Era isso que eu tinha para dizer, infelizmente era isso”, ela disse bem perto dele, olho no olho, cruzando a porta sem qualquer sinal de despedida (mesmo separados, costumavam se beijar no rosto) e tomando o rumo do corredor do prédio. Ele ficou olhando-a caminhar até a porta do elevador, tocar no botão para chamá-lo, esperar, entrar. Ouviu a porta do elevador se fechar, a máquina estalar para o elevador descer (a vida continuar, a fila andar), e perguntou a sim mesmo se também guardava tanto ressentimento... Se também tinha um discurso pronto a respeito da vida que tiveram juntos e do seu processo de reconstrução pessoal...
Enquanto ele se questionava, Simone saiu do prédio, pegou a chave do carro dentro da bolsa, abriu a porta, se sentou na frente da direção, com os olhos cheios de lágrimas. “Eu tô chorando, que merda!”, ela disse para si mesma, sem saber se estava aliviada ou não, afinal dissera tudo, mas não dissera tudo também, talvez fosse melhor não ter falado, mas agora já tinha dito e era melhor assim. “Foda-se.” Precisava dizer, mas talvez não devesse dizer. “Pronto, mas agora tá feito”, disse, dando a partida no automóvel, tomando o rumo da sua casa e da sua nova vida.
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