segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Trauma de araque

 

Alberto teve um acidente de carro durante a juventude. Tinha 23 anos, bebeu demais numa festa (eram os anos 80, não havia esse negócio de não dirigir alcoolizado), estava com o carro do pai, com duas gurias dentro (uma ao seu lado, no banco da frente, a outra no banco de trás), perdeu o controle numa curva (talvez estivesse em alta velocidade, nunca soube direito, estava embriagado mesmo) e bateu num caminhão. Os três ficaram feridos, o caminhoneiro não sofreu coisa alguma. A guria que estava no lugar do carona fraturou a perna direita, a que estava atrás bateu com a boca no banco da frente, ficou toda enxada, um dente frouxo, ele bateu com a cabeça no parabrisa e perdeu muito sangue. Apenas isso, nenhuma morte. Mas foi o suficiente. “Deu pra mim, escapamos por um triz”, falou. Nunca mais retomou a direção. O carro ficou destruído, mas felizmente havia seguro total e não deu prejuízo pro Velho. “Só as gurias se ferraram.”

Vinte anos depois, casado, dois filhos, fez menção de comprar um carro para si próprio e voltar a dirigir. “Fazer autoescola novamente”, disse, “começar do zero”. Mas a mulher, motorista exemplar (dessas que nunca cometeram uma infração), pôs objeções. “Tu precisa mudar, então”, ela falou, “tu é muito distraído”. Já tinha visto ele pegar o carro dela, na praia, e não ficara segura. Alberto levou em consideração o comentário da esposa (“Ela me conhece”) e disse que iria pensar. “Tenho que encarar isso, mudar”, disse para a mulher. “Será que fiquei traumatizado?”, perguntou para a esposa e ela falou: “Pode ser”. Mas deixou o tempo passar, não encarou coisa nenhuma.

Pouco tempo depois, numa conversa com a mulher na cozinha, os dois bebendo vinho, ouviu ela dizer, brincando, que não queria ver ele andando sozinho dentro de um carro. “Tu tá muito enxuto, ainda”, ela falou, rindo, “e, se a mulherada te ver sozinho num carro, cai em cima”. Ele achou graça. “Não tô com tudo isso”, disse, e deixou passar. Mas ficou com uma pulga atrás da orelha: “Será que é por isso que ela não quer me ver dirigindo?”

Novamente o tempo passou e Alberto não fez nada. Nenhuma atitude para mudar. Não pegou o carro da mulher para se experimentar nem encarou a tal autoescola como prometera. Viu os dois filhos tirarem carteira de motorista e, um dia, quando o mais velho lhe dava uma carona, ouviu ele perguntar: “Pai, por que tu te mixou?” Estavam apenas os dois dentro do Fiat do guri e ele não soube o que responder. Pensou em dizer que ficara traumatizado com o acidente que teve na juventude. “Deixei duas gurias machucadas”, começou a falar e desistiu. Não era verdade. “Eu não fiquei traumatizado porra nenhuma”, pensou. “Um trauma de araque, isso sim. Tenho quase 50 anos e me conheço um pouco. Posso enganar os outros, mas não a mim mesmo.”

Naquele dia, não conseguiu mais falar com o filho e pediu para ele deixá-lo na próxima quadra. “Vê onde é melhor para tu parar”, falou. Depois saiu caminhando a esmo, esqueceu o que tinha que fazer e repetiu para si mesmo várias vezes: “Sou um cagão. E ainda por cima um marido obediente. Um merda.” E disse para si mesmo que dessa vez iria mudar de verdade. Não ia se esconder atrás de um trauma de araque, como chegara pensar e até a dizer.

Mas fez a coisa de modo enviesado.  Teve um caso com uma colega de serviço, a esposa descobriu (depois se deu conta que deixou o rabo de fora – “Inconscientemente, claro”, falou para o psiquiatra) e quebraram os pratos. Ele saiu de casa. “Nosso casamento deu o que tinha pra dar”, justificou, e tratou de reorganizar a vida. A colega foi apenas um caso passageiro (“Carne nova para possibilitar uma vida nova”, falou na psicoterapia) e uma das primeiras mudanças foi se conscientizar que não sofrera trauma algum. Era um sujeito inseguro, submisso no casamento (“Porra, por que eu sou assim?”, se questionou durante a psicoterapia) e pediu para o filho mais velho lhe ensinar a dirigir novamente. “Talvez isso seja um negócio simbólico, o jeito de eu me reconstruir”, falou para o psiquiatra, “ganhar autonomia ou coisa assim”. O terapeuta achou que era um caminho.

“Acho que ainda dá tempo”, disse para o filho, sentado na direção do Fiat do guri. O garotão riu, disse para o pai arrancar, fazer as mudanças adequadas. “Assim mesmo, Velhão”, encorajou. E garantiu: “Tu ainda lembra como fazer. É como andar de bicicleta. A gente não esquece.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário