Alberto
teve um acidente de carro durante a juventude. Tinha 23 anos, bebeu demais numa
festa (eram os anos 80, não havia esse negócio de não dirigir alcoolizado),
estava com o carro do pai, com duas gurias dentro (uma ao seu lado, no banco da
frente, a outra no banco de trás), perdeu o controle numa curva (talvez
estivesse em alta velocidade, nunca soube direito, estava embriagado mesmo) e
bateu num caminhão. Os três ficaram feridos, o caminhoneiro não sofreu coisa
alguma. A guria que estava no lugar do carona fraturou a perna direita, a que
estava atrás bateu com a boca no banco da frente, ficou toda inchada, um dente
frouxo, ele bateu com a cabeça no parabrisa e perdeu muito sangue. Apenas isso, nenhuma morte.
Mas foi o suficiente. “Deu pra mim, escapamos por um triz”, falou. Nunca mais
retomou a direção. O carro ficou destruído, mas felizmente havia seguro total e
não deu prejuízo pro Velho. “Só as gurias se ferraram.”
Vinte
anos depois, casado, dois filhos, fez menção de comprar um carro para si
próprio e voltar a dirigir. “Fazer autoescola novamente”, disse, “começar do
zero”. Mas a mulher, motorista exemplar (dessas que nunca cometeram uma
infração), pôs objeções. “Tu precisa mudar, então”, ela falou, “tu é muito
distraído”. Já tinha visto ele pegar o carro dela, na praia, e não ficara
segura. Alberto levou em consideração o comentário da esposa (“Ela me conhece”)
e disse que iria pensar. “Tenho que encarar isso, mudar”, disse para a mulher. “Será
que fiquei traumatizado?”, perguntou para a esposa e ela falou: “Pode ser”. Mas
deixou o tempo passar, não encarou coisa nenhuma.
Pouco
tempo depois, numa conversa com a mulher na cozinha, os dois bebendo vinho,
ouviu ela dizer, brincando, que não queria ver ele andando sozinho dentro de um
carro. “Tu tá muito enxuto, ainda”, ela falou, rindo, “e, se a mulherada te ver
sozinho num carro, cai em cima”. Ele achou graça. “Não tô com tudo isso”, disse,
e deixou passar. Mas ficou com uma pulga atrás da orelha: “Será que é por isso
que ela não quer me ver dirigindo?”
Novamente
o tempo passou e Alberto não fez nada. Nenhuma atitude para mudar. Não pegou o
carro da mulher para se experimentar nem encarou a tal autoescola como
prometera. Viu os dois filhos tirarem carteira de motorista e, um dia, quando o
mais velho lhe dava uma carona, ouviu ele perguntar: “Pai, por que tu te
mixou?” Estavam apenas os dois dentro do Fiat do guri e ele não soube o que
responder. Pensou em dizer que ficara traumatizado com o acidente que teve na
juventude. “Deixei duas gurias machucadas”, começou a falar e desistiu. Não era
verdade. “Eu não fiquei traumatizado porra nenhuma”, pensou. “Um trauma de
araque, isso sim. Tenho 52 anos e me conheço um pouco. Posso enganar os
outros, mas não a mim mesmo.”
Naquele
dia, não conseguiu mais falar com o filho e pediu para ele deixá-lo na próxima quadra.
“Vê onde é melhor para tu parar”, falou. Depois saiu caminhando a esmo,
esqueceu o que tinha que fazer e repetiu para si mesmo várias vezes: “Sou um
cagão. E ainda por cima um marido obediente. Um merda.” E disse para si mesmo
que dessa vez iria mudar de verdade. Não ia se esconder atrás de um trauma de
araque, como chegara pensar e até a dizer.
Mas
fez a coisa de modo enviesado. Teve um
caso com uma colega de serviço, a esposa descobriu (depois se deu conta que
deixou o rabo de fora – “Inconscientemente, claro”, falou para o
psiquiatra) e quebraram os pratos. Ele saiu de casa. “Nosso casamento deu o que
tinha pra dar”, justificou, e tratou de reorganizar a vida. A colega foi apenas
um caso passageiro (“Carne nova para possibilitar uma vida nova”, falou na
psicoterapia) e uma das primeiras mudanças foi se conscientizar que não sofrera
trauma algum. Era um sujeito inseguro, submisso no casamento (“Porra, por que
eu sou assim?”, se questionou durante a psicoterapia) e pediu para o filho mais
velho lhe ensinar a dirigir novamente. “Talvez isso seja um negócio simbólico,
o jeito de eu me reconstruir”, falou para o psiquiatra, “ganhar autonomia ou
coisa assim”. O terapeuta achou que era um caminho.
“Acho
que ainda dá tempo”, disse para o filho, sentado na direção do Fiat do guri. O garotão riu, disse para o pai arrancar, fazer as mudanças adequadas. “Assim mesmo, Velhão”,
encorajou. E garantiu: “Tu ainda lembra como fazer. É como andar de
bicicleta. A gente não esquece.”
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