“Bambino
a Roma: ficção”, o último livro de Chico Buarque, tanto me agradou quanto desconcertou.[1]
Leitura agradável e bem-humorada, li quase todo numa manhã.
O
autor relembra a sua infância em Roma, nos anos 1953 a 55, quando o pai (Sérgio
Buarque de Holanda) foi lecionar na Universidade de Roma e levou a família (a
esposa e sete filhos). No entanto, o subtítulo do livro indica que o material a
ser narrado não será tratado com os procedimentos de um memorialista ou de um autor
de autobiografia... e isto me confundiu. Isto é, a estratégia narrativa do
autor de romper com a fidelidade ao real não foi absorvida com tranquilidade. A
imaginação no comando da narrativa ou, simplesmente, o real se confundindo com
o imaginário, me deixou incomodado. Mas devo dizer que o resultado é muito bom,
os últimos capítulos são um primor, e li com muito prazer.
A
confusão talvez seja devido ao fato de eu ser um leitor “das antiga”, isto é,
daqueles leitores que entendem que um autor, quando se propõe a narrar a
infância (ou qualquer outro período ou episódio de sua vida), deve buscar
uma aproximação com o real. Quando o texto sai desse roteiro, quando o narrador
embaralha as fronteiras do real e do imaginário, me atrapalho.
No
entanto, tenho lido escritores que seguem essa nova tendência literária (a da
autoficção), como Annie Ernaux, Prêmio Nobel de 2022 (“Os anos” e “O lugar”) e
Edouard Louis (“Lutas e metamorfoses de uma mulher”). São textos intrigantes, com
boas histórias (no caso de “O lugar”, a relação da autora/narradora com o pai;
no caso de “Lutas e metamorfoses...”, a relação do autor/narrador com a mãe),
mas que me deixaram com uma pulga atrás da orelha: o que é verdadeiro nestes
relatos?
Seja
qual for a resposta, no entanto, devo repetir que, dentro deste novo gênero literário,
foi o de Chico Buarque que mais me agradou. Certamente devido ao bom humor, ao
modo como é indicado ao leitor que as lembranças estão sendo encaradas pelo
viés do exagero, da fantasia, do imaginado e coisas assim. E o leitor que se
arranje com o resultado.
Nos
últimos capítulos, o ponto mais alto dessa narrativa, o narrador relata o seu regresso
a Roma décadas depois (nos anos 2020), se dispõe a desvendar alguma experiência
enigmática que viveu na infância, descreve o seu esforço em visitar o
apartamento em que morou, deixa o leitor em suspense... e não revela coisa
alguma a respeito desse mistério. Mas sem frustrar o leitor, indicando, talvez,
a impossibilidade de alcançar/abordar a experiência infantil e deixando em
aberto o encantamento da infância.
Um
texto impactante para os leitores viciados em realismo (como eu, gente
limitada, com dificuldade de aceitar as tendências do mundo contemporâneo, as
novas formas de lidar com o real, muitas vezes por meio de “jogos de
esconde-esconde e visibilidades enganadoras”). Mas nem por isso uma leitura menos
prazerosa. A indicação de que há outras formas de encarar “a escrita de si”,
outras maneiras de tratar as experiências de vida e a memória (muito diferentes
das que eu, habitualmente, exercito neste blog).
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