sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Torturados e torturadores

 

A cineasta Lúcia Murat volta a abordar o tema da tortura no seu último filme, “O mensageiro”.[1] Na primeira cena, uma guerrilheira encapuzada é conduzida por um soldado a subir uma escada. Como ela tem uma perna com grave ferimento e não consegue dobrá-la, o soldado vai indicando cada um dos degraus, para ela subir com cuidado. Ao final da escada, o soldado-carcereiro mente que há mais um degrau, a moça ergue a perna saudável para galgá-lo, perde o equilíbrio ao não encontrar o degrau e se estatela no chão. O soldado sorri diante do sofrimento provocado gratuitamente. A moça grita de raiva e pergunta o que ele ganha com isso.

Está indicado, desta maneira, que a tortura não pode ser vista apenas como uma “técnica” da qual os militares se utilizam para a obtenção de informações dos prisioneiros, conforme os soldados-carcereiros vão comentar ao longo do filme. Não é uma “arma da guerra contrarrevolucionária”, como configurou a doutrina francesa durante a Guerra da Argélia, depois ensinada aos militares latino-americanos, aos militares brasileiros inclusive.[2] É um exercício de desumanidade, crueldade e sadismo, que extrapola os limites da luta militar.

E é em torno desse absurdo instrumentalizado pelos exércitos (e acho que não exagero se disser pelos exércitos do mundo inteiro) que o filme gira. O encarceramento de uma integrante da luta armada na Fortaleza de Santa Cruz da Barra, em Niterói (a fortaleza é filmada de diferentes ângulos, num deles se pode ler o seu nome), um encarceramento que envolve tortura, e a relação do encarcerado com o sistema prisional do Regime Militar (inclusive com a data indicada: 1969). Não há nenhuma cena de suplício, pau-de-arara, mas tudo está presente ao longo do filme de diferentes maneiras. Os soldados-carcereiros que a narrativa destaca não participam das sessões de tortura, apenas fazem a guarda dos prisioneiros políticos, e é a relação da prisioneira com eles que ganha relevo na narrativa. Em especial com um soldado que se sensibiliza com o aviltamento da guerrilheira e vem a ser o mensageiro do título, isto é, o sujeito que faz a ponte entre a prisioneira e a sua família.

Uma narrativa com dois polos ligados pela figura do mensageiro: o da fortaleza-prisão e o da família da prisioneira. Na fortaleza, o ingênuo soldado (atormentado com o modo truculento como o Exército conduz a luta contrarrevolucionária) se aproxima da prisioneira e a ajuda; do outro lado (fora da prisão), ele estabelece uma relação com a mãe da guerrilheira, procurando nela uma espécie de reparação por participar de uma estrutura militar que considera moralmente injustificável.

É uma narrativa lenta e sensível sobre um dos temas mais cabeludos da história brasileira recente: a tortura praticada pelos órgãos de segurança do Regime Militar. O sofrimento dos torturados, a investigação a respeito dos que participavam da prática da tortura (no caso, os que exerciam a função secundária de vigilância das prisões, os reles soldados, humanizando essas figuras inclusive) e a absolvição dos torturadores, isto é, o fato deles nunca terem sido criminalizados pela Justiça brasileira.

No final, no entanto, a estratégia narrativa me pareceu artificial: um corte abrupto no tempo e, muitas décadas depois, uma velha professora (possivelmente a ex-guerrilheira) discutindo filosoficamente a “questão da tortura” em sala de aula, citando Hanna Arendt e aventando diferentes possibilidades de abordagem do assunto. Um final que destoa da lenta e sensível narrativa do filme. Um final aberto, quem sabe. Talvez a indicação de que esse assunto não tem fim. Vai ser sempre uma ferida não cicatrizada.



[1] O MENSAGEIRO. Direção de Lúcia Murat, roteiro da diretora e Tunico Amâncio. Brasil, 2023. 110 min.

[2] A respeito desse assunto, ver o livro “A tortura como arma de guerra”, de Leneide Duarte-Plon (Ed. Civilização Brasileira, 2016, 294 p.), baseado em longa entrevista com o general Paul Aussarresses, militar francês que participou da Guerra da Argélia, teorizou a respeito da tortura e veio a lecionar sobre o assunto nas escolas de formação militar brasileiras.

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