A
cineasta Lúcia Murat volta a abordar o tema da tortura no seu último filme, “O
mensageiro”.[1] Na
primeira cena, uma guerrilheira encapuzada é conduzida por um soldado a subir
uma escada. Como ela tem uma perna com grave ferimento e não consegue dobrá-la,
o soldado vai indicando cada um dos degraus, para ela subir com cuidado. Ao
final da escada, o soldado-carcereiro mente que há mais um degrau, a moça ergue
a perna saudável para galgá-lo, perde o equilíbrio ao não encontrar o degrau e
se estatela no chão. O soldado sorri diante do sofrimento provocado
gratuitamente. A moça grita de raiva e pergunta o que ele ganha com isso.
Está
indicado, desta maneira, que a tortura não pode ser vista apenas como uma
“técnica” da qual os militares se utilizam para a obtenção de informações dos
prisioneiros, conforme os soldados-carcereiros vão comentar ao longo do filme.
Não é uma “arma da guerra contrarrevolucionária”, como configurou a doutrina
francesa durante a Guerra da Argélia, depois ensinada aos militares
latino-americanos, aos militares brasileiros inclusive.[2]
É um exercício de desumanidade, crueldade e sadismo, que extrapola os limites da
luta militar.
E
é em torno desse absurdo instrumentalizado pelos exércitos (e acho que não
exagero se disser pelos exércitos do mundo inteiro) que o filme gira. O
encarceramento de uma integrante da luta armada na Fortaleza de Santa Cruz da
Barra, em Niterói (a fortaleza é filmada de diferentes ângulos, num deles se
pode ler o seu nome), um encarceramento que envolve tortura, e a relação do
encarcerado com o sistema prisional do Regime Militar (inclusive com a data
indicada: 1969). Não há nenhuma cena de suplício, pau-de-arara, mas tudo está
presente ao longo do filme de diferentes maneiras. Os soldados-carcereiros que
a narrativa destaca não participam das sessões de tortura, apenas fazem a
guarda dos prisioneiros políticos, e é a relação da prisioneira com eles que
ganha relevo na narrativa. Em especial com um soldado que se sensibiliza com o
aviltamento da guerrilheira e vem a ser o mensageiro do título, isto é, o
sujeito que faz a ponte entre a prisioneira e a sua família.
Uma
narrativa com dois polos ligados pela figura do mensageiro: o da
fortaleza-prisão e o da família da prisioneira. Na fortaleza, o ingênuo soldado
(atormentado com o modo truculento como o Exército conduz a luta
contrarrevolucionária) se aproxima da prisioneira e a ajuda; do outro lado
(fora da prisão), ele estabelece uma relação com a mãe da guerrilheira, procurando
nela uma espécie de reparação por participar de uma estrutura militar que
considera moralmente injustificável.
É
uma narrativa lenta e sensível sobre um dos temas mais cabeludos da história
brasileira recente: a tortura praticada pelos órgãos de segurança do Regime
Militar. O sofrimento dos torturados, a investigação a respeito dos que
participavam da prática da tortura (no caso, os que exerciam a função
secundária de vigilância das prisões, os reles soldados, humanizando essas
figuras inclusive) e a absolvição dos torturadores, isto é, o fato deles nunca terem
sido criminalizados pela Justiça brasileira.
No
final, no entanto, a estratégia narrativa me pareceu artificial: um corte abrupto
no tempo e, muitas décadas depois, uma velha professora (possivelmente a
ex-guerrilheira) discutindo filosoficamente a “questão da tortura” em sala de
aula, citando Hanna Arendt e aventando diferentes possibilidades de abordagem do
assunto. Um final que destoa da lenta e sensível narrativa do filme. Um final
aberto, quem sabe. Talvez a indicação de que esse assunto não tem fim. Vai ser
sempre uma ferida não cicatrizada.
[1]
O MENSAGEIRO. Direção de Lúcia Murat, roteiro da diretora e Tunico Amâncio.
Brasil, 2023. 110 min.
[2] A
respeito desse assunto, ver o livro “A tortura como arma de guerra”, de Leneide
Duarte-Plon (Ed. Civilização Brasileira, 2016, 294 p.), baseado em longa
entrevista com o general Paul Aussarresses, militar francês que participou da
Guerra da Argélia, teorizou a respeito da tortura e veio a lecionar sobre o
assunto nas escolas de formação militar brasileiras.
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