quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Mudar de casa, carregar lembranças

 

A escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) tem um romance epistolar magnífico, “A cidade e a casa”, que se passa na virada dos anos 1970 para os 80.[1] Vários amigos trocam cartas entre si e o tema da mudança de cidade e especialmente de casa é recorrente. Os personagens principais são Giuseppe, que deixa Roma para morar em Princeton, e Lucrezia, que larga sua casa no campo para viver em Roma. Eles se mudam, mas carregam as antigas moradias na lembrança. Outros personagens gravitam em torno de Giuseppe e Lucrezia, a maioria deles trocando de endereço em algum momento da trama.

Giuseppe é um jornalista de meia idade que vende o seu apartamento em Roma para viver com o irmão, professor em Princeton. Nos seus planos, ele vai ser protegido pelo irmão e ter uma vida mais segura e muito melhor que a que leva na Itália. Nesse meio tempo, porém (entre a venda da casa e a viagem aos Estados Unidos), o irmão resolve se casar... e Giuseppe se descobre vivendo com o casal e não apenas com o irmão. Ele sente saudades do seu antigo endereço e ao mesmo tempo se percebe preso ao projeto de vida nos Estados Unidos. O apartamento de Roma vive dentro dele como uma espécie de fantasmagoria.

Lucrezia, por sua vez, uma mulher casada com quatro filhos e um casamento aberto, também muda de endereço. Ela vive numa casa de campo (denominada “As Margaridas”), se apaixona por outro homem e dessa vez resolve acabar com seu casamento. Digo “dessa vez” porque ela já tivera outros casos e isso não abalara sua relação com o marido (que acompanhou seu envolvimento com Giuseppe e se tornou amigo dele inclusive). A nova paixão, no entanto, enseja Lucrezia a outro projeto de vida e ela deixa “As Margaridas” para morar em Roma com os filhos e o novo amor. Mas logo se vê abandonada pelo amante e passa a lamentar a perda da antiga moradia. Mas segue em frente, procura se conformar à nova cidade e ao novo apartamento. É a personagem mais forte e determinada do romance.

É trocando de endereço que os personagens vivem.  Nada muito exagerado, mudando de cidade e de casa como a maioria de nós ao longo da vida. Refletindo sobre isso, Giuseppe escreve ao seu filho Alberico (que acaba de se mudar de Berlim para Roma): “As casas podem ser vendidas ou até abandonadas, mas ficam conservadas para sempre dentro de nós”. Uma síntese do que muitos personagens sentem, cada um ao seu modo.

É isso aí: as cidades e as casas são o cenário de nossas vidas precárias, sujeitas a constantes transformações. Mudanças de rota ocorrem a todo momento, mas parece que as casas ficam, as moradias permanecem. “Os tijolos são eternos”, escreve uma das personagens, moradora da Roma Velha, aquele perímetro onde estão as ruínas do antigo Império Romano, os palácios e igrejas do Renascimento e do Barroco, o Panteão, a Vila Borghese, a Piazza Navona, camadas e camadas de história, diversas referências ao passado.

Vista de Roma do alto da Escadaria da Praça de Espanha.

Nada mais emblemático que um romance que tenha a cidade e a casa como vetores seja ambientada na “Cidade Eterna”. Cidade que viveu esplendores e declínios, a maioria deles com belos monumentos, fontes, palácios e igrejas, registros que permanecem até hoje, capazes de encantar, fascinar.



[1] GINSBURG, Natalia. A cidade e a casa. São Paulo: Cia. das Letras, 2022. 298 p.

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