“O
inverno só é bom pra quem pode ficar na cama”, me disse um colega, muitos anos
atrás. Nós estávamos no campus da UFSM, era uma manhã fria de inverno e a
cerração cobria o sol e até mesmo alguns prédios e árvores. Tudo cinzento, o
mundo envolto numa névoa fina. Eu olhava a paisagem da porta de entrada do
nosso prédio e dizia que aquele cenário era digno de um poema.
“Tu
dizes isso porque nunca tiveste que acordar às quatro da manhã para ordenhar
vacas. Sair de chinelo, quebrar o gelo do campo com os pés, entrar numa
estrebaria cheirando a merda e depois ficar espremendo as tetas daqueles
bichos. Nada poético, nunca vi poesia nisso.”
Não
era a primeira vez que meu colega fazia o inventário dos sofrimentos que viveu
quando guri, na pequena propriedade rural da família. Bisneto, neto e filho de
colonos da região de Imigração Italiana, meu colega passou a infância e
juventude trabalhando duro e imaginando como abandonar aquele mundo. Por volta dos quinze anos se
enfiou num seminário, achando que tinha vocação religiosa.
“Até
me enganei pensando que queria ser padre. Demorei para me dar conta de que não
era isso que queria e, quando ficou claro, ouvi o padre-mestre dizer que
eu não tinha caráter. Nenhum pingo de caráter, ele acentuou. Senti uma vergonha danada, mas segui em frente, saí do seminário e nunca voltei para a casa
dos pais.”
Meu
colega cumpriu uma sofrida trajetória para não sucumbir à herança rural dos
antepassados. “Me incomodava a minha matriz camponesa”, ele me disse várias
vezes.
Por isso lembrei da sua história ao ler o pequeno livro de Annie Ernaux, “O
lugar”, no qual a escritora premiada pelo Nobel em 2022 narra a sua relação com
o pai camponês.[1]
Isto é, um pai de origem camponesa, que também ordenhou vacas às cinco da manhã
e teve vida dura na Normandia, no início do século XX. Depois de trabalhar
muito no campo se tornou operário e, mais tarde, proprietário de um pequeno bar
e mercearia. Enriqueceu, se comparado aos seus familiares, mas nunca conseguiu
raspar da pele, do seu jeito de falar, o que adquiriu na infância e juventude
de camponês. Por conta disso, se sentiu inferiorizado até o final da vida (aos
68 anos).
Meu
colega se sentia inferior? Não sei. Tornou-se professor universitário, fez pós-graduação, mas nunca esqueceu o passado rural. Tinha
necessidade de falar disso. Relembrava a ordenha das vacas, o frio do inverno, o
trabalho no cabo da enxada e a rusticidade do seu cotidiano. “Vida de merda”, dizia.
Conheci
e convivi com outras pessoas que também tiveram infância no campo e sempre o
mesmo relato de trabalho e precariedade. Às vezes com alguma brutalidade também
(as surras dadas pelos pais, por exemplo). A maioria com origem na imigração
italiana ocorrida no século XIX. Alguns até me olhando feio devido a minha
origem na classe média urbana, a minha vivência de criança e adolescente cercada
de confortos que eles só experimentaram na idade adulta.
Muito
injusto esse mundo em que vivemos.
Mas devo dizer que meu colega, antes de se aposentar, comprou um sítio na mesma região em que nasceu. Um sítio com casa de material, banheiro na parte interna e até uma lareira. Um sítio para lazer. E imagino que ali ele reconfigurou a vida dura que teve e, nas manhãs frias de inverno, ficou na cama até tarde. Mas apenas imagino. Não sei o que se passa na cabeça de quem rompeu com a rude vida rural das colônias e se integrou ao universo confortável da classe média urbana. Não sei. Conheço apenas o que leio, escuto e acrescento com a minha imaginação. E recordo o meu colega falando que se acordava de madrugada para ordenhar vacas... tal qual o pai da escritora Annie Ernaux.
[1] ARNAUX, Annie. O lugar. São Paulo: Fósforo, 2021. 92 p.
Nenhum comentário:
Postar um comentário