quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Migrar: mudar de cidade e de moradia

 

O fenômeno migratório é central na formação da sociedade brasileira. No século XIX, as elites pensavam um modo de substituir a mão-de-obra escrava e apostaram na imigração europeia. Países europeus viviam transformações profundas, colocando as classes populares em situação de precariedade e foram essas populações – especialmente as da Itália – o alvo das políticas de imigração brasileira.

Como sou descendente de imigrantes italianos pelo lado paterno, este foi um tema que sempre me atraiu. Assunto de conversa de almoço de domingo. Meus avós paternos foram colonos em fazenda de café paulista e sempre quis entender isso. No ano passado, publiquei um romance que aborda uma família que tem origem nas levas de emigrantes italianos, “Os caminhos de Santa Teresa” (Ed. Bestiário), e me senti concretizando um projeto que nasceu nas conversas com meu pai...

Nos anos 1970, justo quando procurava entender a matriz migratória da minha família, despertei para as migrações realizadas no território brasileiro, aquelas das populações do campo e das pequenas cidades para as grandes capitais (Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre). Afinal, em 1967, minha família protagonizara algo que estava neste roteiro: a migração das cidades do interior do Estado (Pelotas, no caso) para a capital (Porto Alegre). Um caso tematizado pela sociologia e pela literatura – o penoso processo de adaptação das pessoas ao modo de vida urbano-industrial das metrópoles – dos quais cito dois exemplos que me marcaram: “O colapso do populismo”, de Octavio Ianni, e “Essa terra”, de Antônio Torres.

Vivenciei o processo migratório no privilegiado espaço das classes médias e, mais tarde, conheci aquele que se processava no âmbito das classes populares, na periferia de Porto Alegre. Em 1976, ainda estudante do Curso de História, lecionei meio ano numa escola particular de Cachoeirinha (num prédio horroroso, em construção) e, em 78, já formado, fui lecionar numa escola estadual em Alvorada (Grupo Escolar Júlio César Ribeiro de Souza). Escutava meus alunos falarem a respeito das suas origens rurais, caminhava pelas ruas dessas cidades, mas não tinha grande compreensão do que via. Me chocava a pobreza da população, a precariedade das moradias assim como da infraestrutura urbana.

No final de 1979, fui designado para uma escola de Canoas (Escola Estadual Afonso Charlier), e creio que aí tive uma experiência melhor. Lecionei quatro anos nesta escola e pude interagir com a população local, fora do ambiente escolar inclusive. Um dia, fui almoçar na casa de uns alunos e eles me contaram que tinham vindo do campo (do interior de Dom Pedrito ou de Cachoeira), tentavam plantar no entorno da casinha em que moravam no Bairro Mathias Velho e a terra não favorecia. “Terra muito pobre”, eles me explicaram. Procuravam reproduzir as práticas a que estavam habituados (o plantio de hortaliças, p.ex.) e “a coisa não vingava”. “O ambiente não era o mesmo”, diziam. Mesmo assim, tinham uma esperança danada quanto a melhorar de vida.

Hoje, quando me preparo para deixar a cidade do interior do Rio Grande do Sul (Santa Maria) em que vim morar há mais de três décadas, relembro esses fenômenos migratórios que sempre me atraíram. No início dos anos 90, fiz a migração da capital do Estado para o interior, na contramão das correntes migratórias para as grandes capitais. Tinha sido aprovado num concurso para professor, na UFSM, e mudei de cidade e de moradia. Sem exagero, vim “fugindo do Magistério Estadual”, isto é, buscando uma alternativa para os baixos salários pagos aos professores do Estado (no qual penei 13 anos). Lecionei 25 anos na Universidade, me aposentei, conquistei uma posição salarial mais confortável e agora volto para Porto Alegre.

Não estou na mesma condição do meu avô Vittorio, que saiu da Itália com 14 anos, acompanhando os pais, para vir trabalhar numa fazenda de café paulista, mas me lembro dele. Também não estou na situação dos meus alunos que deixaram o campo para virem morar na região metropolitana de Porto Alegre, mas também recordo deles. Isto é, de alguma maneira compartilho com eles a perplexidade e desassossego de quem muda de cidade, de moradia, e tanto tem receio quanto esperança em relação a nova vida.

Guardada as devidas proporções, estou realizando a mesma “revolução interna” de todo o migrante e sentindo a vida se transformar.

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