sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Agredida e humilhada

 

Era no tempo da campanha das Diretas-Já. Os organizadores marcaram uma passeata na beira da praia, em Capão da Canoa, e eu fui com um grupo de amigos.

Fomos e voltamos no mesmo dia. Fizemos a manifestação na beira do mar, incomodamos os veranistas com nossa cantilena política e depois uma amiga e eu fomos almoçar na casa de uma amiga dela. Nunca tinha visto a mulher nem jamais a encontraria novamente. Minha amiga falou que ela se sentia “oprimida pelo marido”, um sujeito machista e de pouca cultura, muito diferente dela, mulher culta e liberada. E foi com esse retrato do casal que entrei na casa deles.

Pois nós chegamos e eu fiquei com o maridão em torno da churrasqueira. Muito simpático, ele logo me estendeu um copo de caipirinha, um prato com salsichão, e iniciamos uma conversa sobre cinema. Recordo que falamos do filme “Parahyba, mulher macho”, da Tizuka Yamazaqui, que aborda o caso amoroso da Anayde Beiriz e João Dantas, o imbróglio que gerou o estopim para a Revolução de 1930. A polícia escancara a intimidade do casal e João Dantas se vinga na pessoa do governador, João Pessoa. Mete uma bala no sujeito. O maridão gostara do filme e queria saber a minha opinião como professor de História.

Depois nos sentamos nós quatro na mesa (os filhos adolescentes estavam em casa de amigos) e aí ele não falou mais nada. Apenas se levantava para buscar mais carne, trazia uns pedaços para a mulher – “Ó, este está no ponto que tu gostas” –, servia a mulher e depois a nós dois, minha amiga e eu. Comeu calado e até eu me calei, ouvindo a conversa animada das mulheres. Ambas muito esperançosas em relação a possibilidade de vitória da emenda que propunha eleições diretas para o próximo presidente da República.

Quando o almoço terminou, o marido pediu licença, disse que precisava sestear e foi para o quarto. Nós ficamos arrumando a mesa, limpando a louça, e depois nos sentamos na varanda, eu louco de vontade de dormir e às vezes dando umas cochiladas mesmo sentado numa poltrona. Pedi uma xícara de café bem forte e acho que isto ajudou a ficar com os olhos abertos e mais ou menos prestar atenção ao que elas conversavam.

De repente, a dona da casa diz, em voz baixa, que estava cansada de tanta humilhação, não aguentava mais. Talvez tenha achado que eu estivesse dormindo. E afirmou: “Vou encontrar um jeito de me separar”.

Na volta para Porto Alegre, minha amiga me desenhou o caso: o casamento durava quase vinte anos e a amiga se incomodava com diferença cultural entre ela e o marido e, principalmente, com o fato dele não entender a sua dedicação ao magistério e ao pós-graduação que estava cursando. “Resumindo, ela se sente agredida e humilhada pelo marido”, concluiu a minha amiga.

“Ele bate nela?”, eu perguntei. “Ora, Vitor”, falou a minha amiga, “não precisa bater para agredir. É o modo como ele trata a mulher. É um grosso. Não tem consideração. Não valoriza. Humilha.” Eu disse que conversara com o maridão enquanto ele assava a carne e que não o achara um sujeito grosso e sem cultura. “Tivemos um papo bacana, sobre cinema e História”, falei. Acrescentei que me chamou atenção o seu cuidado com a mulher, oferecendo a carne como ela gostava, e que um homem que agride e humilha a mulher não se comporta assim.

Minha amiga disse que aquilo era encenação e que eu tinha muito a aprender sobre as relações entre homem e mulher. Eu tinha 28 anos, estava casado pela primeira vez e minha mulher esperava nosso primeiro filho. Conhecia um pouco das queixas femininas, mas tudo muito vago. Aquela mulher, certamente, era a primeira que eu conhecia que se sentia “agredida e humilhada” pelo marido. Um caso sério, “objeto para pesquisa de campo”, como nós falávamos (estudantes de Ciências Sociais que fôramos).

Recordo disso porque voltamos a falar sobre o assunto diversas vezes. Nós dois tínhamos a pretensão de fazer ficção, já tínhamos publicado alguma coisa – ela, por sinal, um romance juvenil de muito sucesso – e me instigava a abordar a condição feminina.

“Os homens precisam despertar para o mundo das mulheres. Sair da redoma machista”, ela me disse certa vez. “Tenta ver o mundo com os olhos de uma mulher”, ela recomendava. Um exercício que poucos anos depois eu faria nas oficinas de criação literária do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, na PUC/RS: criar um personagem feminino, escrever do ponto de vista do sexo oposto. Tentei, escrevi e publiquei até alguns contos nesta perspectiva, mas jamais alcancei a complexidade de uma mulher que se sente agredida e humilhada, especialmente quando, de modo objetivo, ela nunca foi agredida fisicamente nem esculachada verbalmente.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Migrar: mudar de cidade e de moradia

 

O fenômeno migratório é central na formação da sociedade brasileira. No século XIX, as elites pensavam um modo de substituir a mão-de-obra escrava e apostaram na imigração europeia. Países europeus viviam transformações profundas, colocando as classes populares em situação de precariedade e foram essas populações – especialmente as da Itália – o alvo das políticas de imigração brasileira.

Como sou descendente de imigrantes italianos pelo lado paterno, este foi um tema que sempre me atraiu. Assunto de conversa de almoço de domingo. Meus avós paternos foram colonos em fazenda de café paulista e sempre quis entender isso. No ano passado, publiquei um romance que aborda uma família que tem origem nas levas de emigrantes italianos, “Os caminhos de Santa Teresa” (Ed. Bestiário), e me senti concretizando um projeto que nasceu nas conversas com meu pai...

Nos anos 1970, justo quando procurava entender a matriz migratória da minha família, despertei para as migrações realizadas no território brasileiro, aquelas das populações do campo e das pequenas cidades para as grandes capitais (Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre). Afinal, em 1967, minha família protagonizara algo que estava neste roteiro: a migração das cidades do interior do Estado (Pelotas, no caso) para a capital (Porto Alegre). Um caso tematizado pela sociologia e pela literatura – o penoso processo de adaptação das pessoas ao modo de vida urbano-industrial das metrópoles – dos quais cito dois exemplos que me marcaram: “O colapso do populismo”, de Octavio Ianni, e “Essa terra”, de Antônio Torres.

Vivenciei o processo migratório no privilegiado espaço das classes médias e, mais tarde, conheci aquele que se processava no âmbito das classes populares, na periferia de Porto Alegre. Em 1976, ainda estudante do Curso de História, lecionei meio ano numa escola particular de Cachoeirinha (num prédio horroroso, em construção) e, em 78, já formado, fui lecionar numa escola estadual em Alvorada (Grupo Escolar Júlio César Ribeiro de Souza). Escutava meus alunos falarem a respeito das suas origens rurais, caminhava pelas ruas dessas cidades, mas não tinha grande compreensão do que via. Me chocava a pobreza da população, a precariedade das moradias assim como da infraestrutura urbana.

No final de 1979, fui designado para uma escola de Canoas (Escola Estadual Afonso Charlier), e creio que aí tive uma experiência melhor. Lecionei quatro anos nesta escola e pude interagir com a população local, fora do ambiente escolar inclusive. Um dia, fui almoçar na casa de uns alunos e eles me contaram que tinham vindo do campo (do interior de Dom Pedrito ou de Cachoeira), tentavam plantar no entorno da casinha em que moravam no Bairro Mathias Velho e a terra não favorecia. “Terra muito pobre”, eles me explicaram. Procuravam reproduzir as práticas a que estavam habituados (o plantio de hortaliças, p.ex.) e “a coisa não vingava”. “O ambiente não era o mesmo”, diziam. Mesmo assim, tinham uma esperança danada quanto a melhorar de vida.

Hoje, quando me preparo para deixar a cidade do interior do Rio Grande do Sul (Santa Maria) em que vim morar há mais de três décadas, relembro esses fenômenos migratórios que sempre me atraíram. No início dos anos 90, fiz a migração da capital do Estado para o interior, na contramão das correntes migratórias para as grandes capitais. Tinha sido aprovado num concurso para professor, na UFSM, e mudei de cidade e de moradia. Sem exagero, vim “fugindo do Magistério Estadual”, isto é, buscando uma alternativa para os baixos salários pagos aos professores do Estado (no qual penei 13 anos). Lecionei 25 anos na Universidade, me aposentei, conquistei uma posição salarial mais confortável e agora volto para Porto Alegre.

Não estou na mesma condição do meu avô Vittorio, que saiu da Itália com 14 anos, acompanhando os pais, para vir trabalhar numa fazenda de café paulista, mas me lembro dele. Também não estou na situação dos meus alunos que deixaram o campo para virem morar na região metropolitana de Porto Alegre, mas também recordo deles. Isto é, de alguma maneira compartilho com eles a perplexidade e desassossego de quem muda de cidade, de moradia, e tanto tem receio quanto esperança em relação a nova vida.

Guardada as devidas proporções, estou realizando a mesma “revolução interna” de todo o migrante e sentindo a vida se transformar.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

A viúva Clicquot

 

Assisti ao filme sobre a mulher que criou o método clássico da produção do champagne: Nicole-Barbe Clicquot (1777-1866). Não sabia da sua existência. Um filme bonito, ambientado na França, no período napoleônico: “A viúva Clicquot: a mulher que formou um império”. Uma produção britânica (com atores britânicos e norte-americanos) e, consequentemente, falado em inglês.

Viúva Clicquot interpretada no filme por Haley Bennet.

O meu francês é rudimentar (aprendido no Ginásio e no Clássico), sou incapaz de compreender um filme francês sem legendas, mas gosto de ouvir a língua. Esses filmes com histórias francesas falados em inglês sempre me incomodam. Uma bobagem, claro. Não deixo de assisti-los por conta disso. Vi “Napoleão”, do Ridley Scott, e gostei (até dos exageros; alguns deles, cômicos).

O filme talvez apresente uma viúva demasiadamente emponderada e empreendedora. Mas convence. A atriz é muito boa, a narrativa é envolvente e bem convincente. Eu embarquei na história. Dei uma olhada no Google para conferir algumas informações e achei que o filme inventa pouco. Mas não desfaz o mito construído em torno dela. A mulher é fera no mundo dos negócios e eu saí do cinema convencido disso.

Nicole-Barbe Ponsardin se casou com François Clicquot, em 1798, e ficou viúva sete anos depois, com apenas 27 anos. O marido era um empresário do vinho (aumentou a produção da vinícola), fazia pesquisas para o melhoramento do seu produto, e, após sua morte, a viúva se colocou na direção dos negócios. E também no melhoramento do champagne. Foi a criadora do método champenoise, o método clássico da produção do champagne. E, segundo o filme, fez isso sozinha.

No filme, o sogro torce o nariz quando ela resolve se colocar no comando da empresa, mas parece que não foi bem assim. Ele bispou que ela tinha faro para negócios e lhe fez um empréstimo polpudo (de 835 mil euros, em valores atuais; R$ 4,5 milhões, na nossa moeda). Mas, no filme, fica legal ela enfrentando o poder masculino que excluía as mulheres do mundo empresarial. Havia até uma legislação que determinava isso. (A sociedade burguesa criada a partir da Revolução Francesa era menos favorável às mulheres do que o Antigo Regime.)

Na área comercial, no entanto, Madame Clicquot teve a colaboração de um jovem esperto, que furou o bloqueio comercial imposto pelo imperador Napoleão, e conseguiu levar algumas garrafas para a Rússia. O czar gostou da bebida e parece que foi aí o pulo do gato, isto é, a internacionalização do champagne, a criação do império indicado no subtítulo do filme. Quando a guerra com a Rússia terminou, Madame Clicquot passou a exportar para o mercado russo.

O final é apoteótico: a vinícola está crescendo com o fim das guerras napoleônicas e a viúva é chamada a um tribunal, que pretende impor a ela a legislação machista da época, isto é, retirá-la da direção da empresa. Ela não se mixa, enfrenta os juízes, e permanece no comando dos negócios. Uma empreendedora e tanto.

Saí do cinema com vontade de abrir uma garrafa Veuve Clicquot, sem saber, claro, que as mais baratas estão por volta de R$ 300,00, um precinho que não é pra qualquer um.

Madame Clicquot (1859-61) entre 82 e 84 anos.
Fonte: Wikipédia.


domingo, 25 de agosto de 2024

Revendo Roma

 

Depois de ler um romance de Natalia Ginzburg (“A cidade e a casa”) ambientado na Roma Velha (como diz uma das personagens), peguei o livro “Traçando Roma”, de Luis Fernando Veríssimo e Joaquim da Fonseca para rever a capital italiana.[1] Crônicas do Veríssimo a respeito da sua estadia na cidade, em 1986, e desenhos de Joaquim da Fonseca, de quando andou por lá, em 1992.

Diz o cronista que se conhece de verdade uma cidade, quando se estabelece, nela, uma rotina. Um projeto que o autor realizou, junto com a esposa e os três filhos, morando num apartamento em Monteverde Nuovo (próximo ao Trastevere) por alguns meses. Entre outras coisas, dirigindo pelas ruas da cidade, ambientando-se com o caos do trânsito romano. Acompanhando a polêmica em torno do estabelecimento de uma filial do McDonald’s na Piazza di Spagna, o embate com os restaurantes, o cuidado das autoridades para que não fosse desfigurado o espaço histórico, assim como o incomodo que o cheiro do fast-food provocava no costureiro Valentino (com ateliê em cima da loja). A área, por sinal, abriga um conjunto de lojas muito elegantes (Dior, Gucci e outras), a Via dei Condotti desemboca ali. Um espaço privilegiadíssimo.

Na Via dei Condotti se encontra o café mais antigo de Roma, o Caffe Greco (em funcionamento desde 1760), frequentado por Goethe, Stendhal, Keats, Shelley e Byron, em tempos idos, e muito requisitado por turistas atualmente. Especialmente por japoneses, aponta o cronista, uma nacionalidade que continua viajando até hoje, acompanhada (e talvez em maior número) por outros orientais: os ricos chineses. Várias vezes passei pelo local, em 2019, e lá estavam os turistas orientais fazendo fila na porta do café e nem ousei entrar. Só me animei num fim de tarde, quando não havia quase ninguém. Quando ia entrar no espaço ocupado com mesas e cadeiras (um salão muito chique), uma amiga me avisou que eu pagaria caro pelo luxo e me orientou a fazer o lanche no balcão. Bebi um café, comi um croissant, de pé, atendido por educados funcionários, visivelmente cansados (na certa devido ao horário, o café estava prestes a fechar).

O autor também aponta o costume da sesta, das 13 às 16 horas, como ainda muito praticado naqueles anos 80, mas não foi o que vivenciei quase quatro décadas depois. Com exceção de um quiosque ao lado do hotel (Hotel Regina Margherita, no bairro Università), onde eu comprava os bilhetes do metrô, não percebi nada que fechasse depois do almoço. Neste horário minhas aulas já tinham encerrado e eu pegava o metrô até a estação Coliseu para caminhar pela Roma Velha, onde tudo funcionava, claro, pois se trata da área turística por excelência.

Roma é uma cidade com diversas camadas de História – o tempo dos césares, dos papas medievais, do Renascimento, do Barroco, do Fascismo e dos filmes do Fellini – e não me canso de revisitá-la, isto é, ler a respeito e rever as centenas de fotos que tirei nas três semanas que passei por lá.

O livro traz inúmeros desenhos de Joaquim da Fonseca, indicando um outro olhar sobre a cidade, diferente daquele que o cronista desenvolve. Na capa, um exemplo dessas ilustrações, registrando a Ponte Sant’Angelo, que liga Roma ao Vaticano. Uma ponte com vários anjos (mandados colocar pelo papa Clemente IX, no século XVII), anjos que trazem os instrumentos da Paixão de Cristo: o chicote utilizado para espancar Jesus, a coroa de espinhos que foi colocada em sua cabeça, os cravos que o pregaram na cruz, a lança que transpassou seu corpo, etc. Diante desses anjos muitos de nós, turistas apressados (nem sempre com um guia nas mãos), se deslumbram, se maravilham, sem sequer desconfiar que eles indicam uma cena da tortura – a crucificação –, uma prática comum na Roma dos césares. A tortura que marcou uma das bases (o Cristianismo) da Civilização Ocidental.

Um dos anjos da Ponte Sant'Angelo carregando a lança que transpassou Cristo.




[1] VERÍSSIMO, Luis Fernando; FONSECA, Joaquim da. Traçando Roma. POA: Artes & Ofícios, 1993. 160 p.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Mudar de casa, carregar lembranças

 

A escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) tem um romance epistolar magnífico, “A cidade e a casa”, que se passa na virada dos anos 1970 para os 80.[1] Vários amigos trocam cartas entre si e o tema da mudança de cidade e especialmente de casa é recorrente. Os personagens principais são Giuseppe, que deixa Roma para morar em Princeton, e Lucrezia, que larga sua casa no campo para viver em Roma. Eles se mudam, mas carregam as antigas moradias na lembrança. Outros personagens gravitam em torno de Giuseppe e Lucrezia, a maioria deles trocando de endereço em algum momento da trama.

Giuseppe é um jornalista de meia idade que vende o seu apartamento em Roma para viver com o irmão, professor em Princeton. Nos seus planos, ele vai ser protegido pelo irmão e ter uma vida mais segura e muito melhor que a que leva na Itália. Nesse meio tempo, porém (entre a venda da casa e a viagem aos Estados Unidos), o irmão resolve se casar... e Giuseppe se descobre vivendo com o casal e não apenas com o irmão. Ele sente saudades do seu antigo endereço e ao mesmo tempo se percebe preso ao projeto de vida nos Estados Unidos. O apartamento de Roma vive dentro dele como uma espécie de fantasmagoria.

Lucrezia, por sua vez, uma mulher casada com quatro filhos e um casamento aberto, também muda de endereço. Ela vive numa casa de campo (denominada “As Margaridas”), se apaixona por outro homem e dessa vez resolve acabar com seu casamento. Digo “dessa vez” porque ela já tivera outros casos e isso não abalara sua relação com o marido (que acompanhou seu envolvimento com Giuseppe e se tornou amigo dele inclusive). A nova paixão, no entanto, enseja Lucrezia a outro projeto de vida e ela deixa “As Margaridas” para morar em Roma com os filhos e o novo amor. Mas logo se vê abandonada pelo amante e passa a lamentar a perda da antiga moradia. Mas segue em frente, procura se conformar à nova cidade e ao novo apartamento. É a personagem mais forte e determinada do romance.

É trocando de endereço que os personagens vivem.  Nada muito exagerado, mudando de cidade e de casa como a maioria de nós ao longo da vida. Refletindo sobre isso, Giuseppe escreve ao seu filho Alberico (que acaba de se mudar de Berlim para Roma): “As casas podem ser vendidas ou até abandonadas, mas ficam conservadas para sempre dentro de nós”. Uma síntese do que muitos personagens sentem, cada um ao seu modo.

É isso aí: as cidades e as casas são o cenário de nossas vidas precárias, sujeitas a constantes transformações. Mudanças de rota ocorrem a todo momento, mas parece que as casas ficam, as moradias permanecem. “Os tijolos são eternos”, escreve uma das personagens, moradora da Roma Velha, aquele perímetro onde estão as ruínas do antigo Império Romano, os palácios e igrejas do Renascimento e do Barroco, o Panteão, a Vila Borghese, a Piazza Navona, camadas e camadas de história, diversas referências ao passado.

Vista de Roma do alto da Escadaria da Praça de Espanha.

Nada mais emblemático que um romance que tenha a cidade e a casa como vetores seja ambientada na “Cidade Eterna”. Cidade que viveu esplendores e declínios, a maioria deles com belos monumentos, fontes, palácios e igrejas, registros que permanecem até hoje, capazes de encantar, fascinar.



[1] GINSBURG, Natalia. A cidade e a casa. São Paulo: Cia. das Letras, 2022. 298 p.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Nunca mais falar sobre política

 

Resolvi conversar sobre política com uma motorista de aplicativo e pintou um mal-entendido. Fiquei chateado.

Comecei a conversa perguntando se ela já tinha candidato à Prefeitura de Porto Alegre e ela respondeu que sim. Vai votar no Sebastião Melo. Prefere o partido Novo, mas acha que o candidato não tem chance e não vai desperdiçar o voto. Revelou-se uma antipetista visceral, “não podemos deixar essa gente ganhar”, e acrescentou que jamais votaria na Maria do Rosário, “defensora de bandidos”.

“Uma candidata à Prefeitura tem é que cuidar das pessoas de bem”, explicou. E a partir daí desfiou um rol de acusações ao PT, colocando-o como um partido de corruptos que desviam o dinheiro que poderia ir para a Educação, Saúde e Segurança.

Era uma moça simples, provavelmente cumpridora de longas jornadas de trabalho, repetindo os lugares comuns da conversa direitista, do antipetismo raiz, afirmando que os petistas “não defendem a população, o povo, e só querem nos enganar”.

Eu ouvi calado e por fim falei que entendia o PT como um partido como os outros, com um ideário, um programa, e gente de tudo quanto é tipo. “Nem mais nem menos corrupto que os demais partidos”, acentuei, tentando fazer a figura de sujeito moderado e boa praça, compreensivo. E perguntei qual o partido que ela considerava menos corrupto. “O PL”, ela respondeu. “Por que logo o PL, o partido do Valdemar da Costa Neto?”, rebati, procurando uma forma de dizer quem era esse espertalhão, dono de um partido de aluguel, capaz de qualquer coisa para ganhar dinheiro. Ela pareceu não saber quem era Valdemar da Costa Neto e eu me senti incapaz de dizer qualquer coisa, perplexo e paralisado por mais um “pobre de direita”.

A moça chegou ao meu endereço, eu desci, e, justo quando estava com os dois pés na calçada e fechava a porta do carro, desabafei: “Bá, mas o PL é foda, que coisa!” Segui em direção ao meu edifício, rindo, virei para trás e vi que ela estava parada, me olhando e voltei para falar com ela.

Voltei e perguntei se acontecera alguma coisa. Ela pediu para eu repetir o que dissera e menti que apenas falara que “o PL é terrível”. “Um partido horroroso, do meu ponto de vista, não quis te ofender, longe de mim, cada um pensa como quer, eu sou um sujeito que defende isso”, acrescentei.

Acho que ela pensou que eu a mandara se foder... e fiquei chateado com a sua desconfiança. “Longe de mim a intenção de te ofender, não pensa nisso”, insisti. E retomei o caminho do meu prédio, enfiei a chave na porta de entrada do edifício, lembrando dos meus alunos em Alvorada e Canoas, na virada dos anos 70 para os 80, gurizada humilde que repetia a conversa conservadora da época... Gente pobre e de direita, que coisa horrível, com os quais (pretensiosamente) eu pretendia desenvolver “um pensamento crítico em relação a sociedade em que vivemos”. Que arrogância!

Que merda!, digo agora. Nunca mais falar sobre política com quem não conheço. Nunca mais. Muito menos com motoristas de aplicativo, trabalhadores submetidos a condições de trabalho terríveis... e muitas vezes defensores do que muitos de nós chamamos de “novo e precário mundo do trabalho”. Defensores convictos, apoiadores de coração.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Bambino a Roma: ficção

 

“Bambino a Roma: ficção”, o último livro de Chico Buarque, tanto me agradou quanto desconcertou.[1] Leitura agradável e bem-humorada, li quase todo numa manhã.

O autor relembra a sua infância em Roma, nos anos 1953 a 55, quando o pai (Sérgio Buarque de Holanda) foi lecionar na Universidade de Roma e levou a família (a esposa e sete filhos). No entanto, o subtítulo do livro indica que o material a ser narrado não será tratado com os procedimentos de um memorialista ou de um autor de autobiografia... e isto me confundiu. Isto é, a estratégia narrativa do autor de romper com a fidelidade ao real não foi absorvida com tranquilidade. A imaginação no comando da narrativa ou, simplesmente, o real se confundindo com o imaginário, me deixou incomodado. Mas devo dizer que o resultado é muito bom, os últimos capítulos são um primor, e li com muito prazer.

A confusão talvez seja devido ao fato de eu ser um leitor “das antiga”, isto é, daqueles leitores que entendem que um autor, quando se propõe a narrar a infância (ou qualquer outro período ou episódio de sua vida), deve buscar uma aproximação com o real. Quando o texto sai desse roteiro, quando o narrador embaralha as fronteiras do real e do imaginário, me atrapalho.

No entanto, tenho lido escritores que seguem essa nova tendência literária (a da autoficção), como Annie Ernaux, Prêmio Nobel de 2022 (“Os anos” e “O lugar”) e Edouard Louis (“Lutas e metamorfoses de uma mulher”). São textos intrigantes, com boas histórias (no caso de “O lugar”, a relação da autora/narradora com o pai; no caso de “Lutas e metamorfoses...”, a relação do autor/narrador com a mãe), mas que me deixaram com uma pulga atrás da orelha: o que é verdadeiro nestes relatos?

Seja qual for a resposta, no entanto, devo repetir que, dentro deste novo gênero literário, foi o de Chico Buarque que mais me agradou. Certamente devido ao bom humor, ao modo como é indicado ao leitor que as lembranças estão sendo encaradas pelo viés do exagero, da fantasia, do imaginado e coisas assim. E o leitor que se arranje com o resultado.

Nos últimos capítulos, o ponto mais alto dessa narrativa, o narrador relata o seu regresso a Roma décadas depois (nos anos 2020), se dispõe a desvendar alguma experiência enigmática que viveu na infância, descreve o seu esforço em visitar o apartamento em que morou, deixa o leitor em suspense... e não revela coisa alguma a respeito desse mistério. Mas sem frustrar o leitor, indicando, talvez, a impossibilidade de alcançar/abordar a experiência infantil e deixando em aberto o encantamento da infância.

Um texto impactante para os leitores viciados em realismo (como eu, gente limitada, com dificuldade de aceitar as tendências do mundo contemporâneo, as novas formas de lidar com o real, muitas vezes por meio de “jogos de esconde-esconde e visibilidades enganadoras”). Mas nem por isso uma leitura menos prazerosa. A indicação de que há outras formas de encarar “a escrita de si”, outras maneiras de tratar as experiências de vida e a memória (muito diferentes das que eu, habitualmente, exercito neste blog).



[1] BUARQUE, Chico. Bambino a Roma: ficção. São Paulo: Cia. das Letras, 2024. 168 p.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Torturados e torturadores

 

A cineasta Lúcia Murat volta a abordar o tema da tortura no seu último filme, “O mensageiro”.[1] Na primeira cena, uma guerrilheira encapuzada é conduzida por um soldado a subir uma escada. Como ela tem uma perna com grave ferimento e não consegue dobrá-la, o soldado vai indicando cada um dos degraus, para ela subir com cuidado. Ao final da escada, o soldado-carcereiro mente que há mais um degrau, a moça ergue a perna saudável para galgá-lo, perde o equilíbrio ao não encontrar o degrau e se estatela no chão. O soldado sorri diante do sofrimento provocado gratuitamente. A moça grita de raiva e pergunta o que ele ganha com isso.

Está indicado, desta maneira, que a tortura não pode ser vista apenas como uma “técnica” da qual os militares se utilizam para a obtenção de informações dos prisioneiros, conforme os soldados-carcereiros vão comentar ao longo do filme. Não é uma “arma da guerra contrarrevolucionária”, como configurou a doutrina francesa durante a Guerra da Argélia, depois ensinada aos militares latino-americanos, aos militares brasileiros inclusive.[2] É um exercício de desumanidade, crueldade e sadismo, que extrapola os limites da luta militar.

E é em torno desse absurdo instrumentalizado pelos exércitos (e acho que não exagero se disser pelos exércitos do mundo inteiro) que o filme gira. O encarceramento de uma integrante da luta armada na Fortaleza de Santa Cruz da Barra, em Niterói (a fortaleza é filmada de diferentes ângulos, num deles se pode ler o seu nome), um encarceramento que envolve tortura, e a relação do encarcerado com o sistema prisional do Regime Militar (inclusive com a data indicada: 1969). Não há nenhuma cena de suplício, pau-de-arara, mas tudo está presente ao longo do filme de diferentes maneiras. Os soldados-carcereiros que a narrativa destaca não participam das sessões de tortura, apenas fazem a guarda dos prisioneiros políticos, e é a relação da prisioneira com eles que ganha relevo na narrativa. Em especial com um soldado que se sensibiliza com o aviltamento da guerrilheira e vem a ser o mensageiro do título, isto é, o sujeito que faz a ponte entre a prisioneira e a sua família.

Uma narrativa com dois polos ligados pela figura do mensageiro: o da fortaleza-prisão e o da família da prisioneira. Na fortaleza, o ingênuo soldado (atormentado com o modo truculento como o Exército conduz a luta contrarrevolucionária) se aproxima da prisioneira e a ajuda; do outro lado (fora da prisão), ele estabelece uma relação com a mãe da guerrilheira, procurando nela uma espécie de reparação por participar de uma estrutura militar que considera moralmente injustificável.

É uma narrativa lenta e sensível sobre um dos temas mais cabeludos da história brasileira recente: a tortura praticada pelos órgãos de segurança do Regime Militar. O sofrimento dos torturados, a investigação a respeito dos que participavam da prática da tortura (no caso, os que exerciam a função secundária de vigilância das prisões, os reles soldados, humanizando essas figuras inclusive) e a absolvição dos torturadores, isto é, o fato deles nunca terem sido criminalizados pela Justiça brasileira.

No final, no entanto, a estratégia narrativa me pareceu artificial: um corte abrupto no tempo e, muitas décadas depois, uma velha professora (possivelmente a ex-guerrilheira) discutindo filosoficamente a “questão da tortura” em sala de aula, citando Hanna Arendt e aventando diferentes possibilidades de abordagem do assunto. Um final que destoa da lenta e sensível narrativa do filme. Um final aberto, quem sabe. Talvez a indicação de que esse assunto não tem fim. Vai ser sempre uma ferida não cicatrizada.



[1] O MENSAGEIRO. Direção de Lúcia Murat, roteiro da diretora e Tunico Amâncio. Brasil, 2023. 110 min.

[2] A respeito desse assunto, ver o livro “A tortura como arma de guerra”, de Leneide Duarte-Plon (Ed. Civilização Brasileira, 2016, 294 p.), baseado em longa entrevista com o general Paul Aussarresses, militar francês que participou da Guerra da Argélia, teorizou a respeito da tortura e veio a lecionar sobre o assunto nas escolas de formação militar brasileiras.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Matriz camponesa

 

“O inverno só é bom pra quem pode ficar na cama”, me disse um colega, muitos anos atrás. Nós estávamos no campus da UFSM, era uma manhã fria de inverno e a cerração cobria o sol e até mesmo alguns prédios e árvores. Tudo cinzento, o mundo envolto numa névoa fina. Eu olhava a paisagem da porta de entrada do nosso prédio e dizia que aquele cenário era digno de um poema.

“Tu dizes isso porque nunca tiveste que acordar às quatro da manhã para ordenhar vacas. Sair de chinelo, quebrar o gelo do campo com os pés, entrar numa estrebaria cheirando a merda e depois ficar espremendo as tetas daqueles bichos. Nada poético, nunca vi poesia nisso.”

Não era a primeira vez que meu colega fazia o inventário dos sofrimentos que viveu quando guri, na pequena propriedade rural da família. Bisneto, neto e filho de colonos da região de Imigração Italiana, meu colega passou a infância e juventude trabalhando duro e imaginando como abandonar aquele mundo. Por volta dos quinze anos se enfiou num seminário, achando que tinha vocação religiosa.

“Até me enganei pensando que queria ser padre. Demorei para me dar conta de que não era isso que queria e, quando ficou claro, ouvi o padre-mestre dizer que eu não tinha caráter. Nenhum pingo de caráter, ele acentuou. Senti uma vergonha danada, mas segui em frente, saí do seminário e nunca voltei para a casa dos pais.”

Meu colega cumpriu uma sofrida trajetória para não sucumbir à herança rural dos antepassados. “Me incomodava a minha matriz camponesa”, ele me disse várias vezes.

Por isso lembrei da sua história ao ler o pequeno livro de Annie Ernaux, “O lugar”, no qual a escritora premiada pelo Nobel em 2022 narra a sua relação com o pai camponês.[1] Isto é, um pai de origem camponesa, que também ordenhou vacas às cinco da manhã e teve vida dura na Normandia, no início do século XX. Depois de trabalhar muito no campo se tornou operário e, mais tarde, proprietário de um pequeno bar e mercearia. Enriqueceu, se comparado aos seus familiares, mas nunca conseguiu raspar da pele, do seu jeito de falar, o que adquiriu na infância e juventude de camponês. Por conta disso, se sentiu inferiorizado até o final da vida (aos 68 anos).

Meu colega se sentia inferior? Não sei. Tornou-se professor universitário, fez pós-graduação, mas nunca esqueceu o passado rural. Tinha necessidade de falar disso. Relembrava a ordenha das vacas, o frio do inverno, o trabalho no cabo da enxada e a rusticidade do seu cotidiano. “Vida de merda”, dizia.

Conheci e convivi com outras pessoas que também tiveram infância no campo e sempre o mesmo relato de trabalho e precariedade. Às vezes com alguma brutalidade também (as surras dadas pelos pais, por exemplo). A maioria com origem na imigração italiana ocorrida no século XIX. Alguns até me olhando feio devido a minha origem na classe média urbana, a minha vivência de criança e adolescente cercada de confortos que eles só experimentaram na idade adulta.

Muito injusto esse mundo em que vivemos.

Mas devo dizer que meu colega, antes de se aposentar, comprou um sítio na mesma região em que nasceu. Um sítio com casa de material, banheiro na parte interna e até uma lareira. Um sítio para lazer. E imagino que ali ele reconfigurou a vida dura que teve e, nas manhãs frias de inverno, ficou na cama até tarde. Mas apenas imagino. Não sei o que se passa na cabeça de quem rompeu com a rude vida rural das colônias e se integrou ao universo confortável da classe média urbana. Não sei. Conheço apenas o que leio, escuto e acrescento com a minha imaginação. E recordo o meu colega falando que se acordava de madrugada para ordenhar vacas... tal qual o pai da escritora Annie Ernaux.

[1] ARNAUX, Annie. O lugar. São Paulo: Fósforo, 2021. 92 p.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Manet no Rio de Janeiro

 

Este é um blog de crônicas, feito de coisas que me passam pela cabeça: memórias, vivências, leituras, filmes, viagens. Às vezes alguma ficção. Tentativa de tornar claro aquilo que vivo e sinto.

Hoje comento um livro que me agradou muito: “Manet no Rio”, composto por cartas que Edouard Manet (1832-1883) escreveu aos seus familiares (especialmente sua mãe) quando viajava ao Brasil.[1] A correspondência do jovem Manet, mais comentários críticos a respeito delas, alguma coisa sobre a trajetória do pintor, e a reprodução de alguns dos seus quadros. Uma beleza de edição.

Em dezembro de 1848, Manet tem dezessete anos, é um aspirante à Marinha, e embarca num navio-escola no porto de Havre em direção ao Rio de Janeiro. Nem pensa em se tornar pintor, quer ser um “lobo do mar”. Mas desenhar já faz parte das suas habilidades e realiza caricaturas da tripulação assim como dá aulas de desenhos para os alunos a bordo.

A viagem vai de meados de dezembro de 1848 a março do ano seguinte. Muito tempo no mar, quase dois meses na Baía da Guanabara e passeios pela cidade do Rio. O registro sóbrio do cotidiano a bordo (inclusive dos safanões que leva do superior, dos pontapés que tem direito a dar nos serviçais) assim como observações a respeito da população da capital do Império brasileiro.

Manet se espanta diante da quantidade de negros nas ruas. “Todos eles escravos”, acentua. E comenta a proibição dos cativos usarem calçados e o costume de muitas negras andarem com o peito nu. As mulheres brancas pouco aparecem nas ruas e os homens são vistos como indolentes. Uma visão nada lisonjeira da população que vive no Brasil, tanto dos cativos quanto dos homens e mulheres livres.

Em relação ao palácio imperial na área urbana (não em relação ao palácio em São Cristóvão, que não visita), o entendimento de que se trata de “uma verdadeira biboca, uma coisa mesquinha”. A admiração maior é endereçada à natureza.

Numa carta a sua mãe, escreve: “Todas as quintas-feiras saímos [do navio ancorado na baía] (...) e fazemos excursões pelo campo, tomamos banho, almoçamos e jantamos ali mesmo (...). Os passeios são encantadores, assistimos ao espetáculo da natureza mais bela do mundo, dispomos de tantas frutas quanto quisermos (...).”

A autora do prefácio aponta que há estudos que indicam que a descoberta da luz tropical assim como da natureza brasileira foram importantes para o seu trabalho artístico. Mas o autor do posfácio diz que não: “um erro pensar que a sua passagem pelo Rio teve um impacto profundo em sua arte”. Foi depois, viajando pela Espanha e Itália que o pintor se deu conta da importância da luz.

Resta apontar, no entanto, que Manet era um parisiense e tudo indica que ao menos a natureza, vista como “a mais bela do mundo”, o tocou profundamente. E isto ele registra e compartilha com a mãe.

Aliás, é este carinho de Manet em relação a sua mãe que me chamou atenção e me encantou. A afeição de um jovem que fala para a sua mãe que não teve coragem de assistir a sua partida no porto de Havre. Uma mãe a quem ele se dirige com muita atenção, referindo a si próprio como “seu filho respeitoso”. Uma mãe com quem ele compartilha a sua vivência no mar e nos trópicos.

Um conjunto de cartas que desenham um jovem que almeja seguir a profissão de marinheiro, sem nenhuma preocupação (ainda) em relação ao mundo das artes. Um jovem abastado, bastante ligado à família, procurando criar o seu destino.

O que será que o levou à pintura? O que faz um jovem dar uma guinada na sua vida, deixar uma carreira comercial e enveredar pelo campo artístico?

O livro instiga em relação a isso. Dá vontade de compreender a trajetória de um artista brilhante.

"Almoço na relva" (Museu d'Orsay, 2019).

Quando tive a oportunidade de ver ao vivo “Almoço na relva”, no Museu d’Orsay, estava zonzo. Tirei a foto acima para registrar. Naquele dia, passeando pelo museu, eu já vira tantas obras impactantes, belíssimas, que não tinha mais condições de apreciar coisa alguma.



[1] MANET, Edouard. Manet no Rio. Tradução Régis Mikail, prefácio Alecsandra Matias, posfácio Felipe Martinez. São Paulo: Ercolano, 2023. 96 p.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Inês, uma mulher prevenida.

 

Inês é uma mulher cuidadosa. Tem um namorado chamado Roberto que mora fora da cidade, numa área semi rural, e, quando vai visitá-lo, avisa a sobrinha com quem deixou mapa e endereço.

Inês chegou aos 60 anos bem conservada, aparentando muito menos idade, com dois casamentos nas costas e, depois disso, um e outro namorados, “relacionamentos leves, sem maiores compromissos”, ela explica.

A casa de Roberto fica afastada da estrada e Inês mal escuta a passagem dos caminhões barulhentos que passam carregados de soja. Um silêncio que a encanta e assusta ao mesmo tempo.

Uma tarde o namorado pede para fotografá-la nua, ela acha graça, sente-se lisonjeada, e avisa: “Mas só da cintura pra cima.” O homem elogia os seus seios (dos quais se orgulha, pois sabe que na sua idade poucas os possuem tão firmes), e pousa para ele de brincos e colares, sentada numa poltrona, com o rosto de frente, de lado, enrolando os colares numa das mãos. “Uma verdadeira modelo”, Roberto incentiva. Depois ele acrescenta que a sua bunda também é linda, “mais durinha que a de muita guria”, quer fotografá-la também, e ela avisa, categórica: “Aí é demais, já disse.”

Quando adolescente, numa praia de rio, um namorado pediu para vê-la nua e ela se despiu. Tinha 18 anos, era virgem, o rapaz garantiu que só iria olhar e ela concordou. Tirou a roupa de costas e, quando virou para trás, viu que ele estava a pouca distância, com o sexo para fora das calças, apertando-o com uma das mãos, puxando-o para frente e para trás. O rapaz pediu que ela continuasse de costas, fizesse de conta que ia pegar alguma coisa no chão – “assim, mostrando toda a bunda” – e ela se achou obrigada a atender. Não sabia bem o que ele estava fazendo e se assustou quando alguma coisa líquida caiu nas suas pernas.

“O que é isso?”, ela perguntou. “Eu gozei”, ele respondeu, os olhos fechados de satisfação.

Ela foi até o rio se limpar e, mais de quarenta anos depois, lembra dessa cena ao se exibir para Roberto, cruzando e descruzando as pernas, fazendo caras e bocas. Mas não se sente mais obrigada a atender ao namorado ou a quem quer que seja. “Faço porque eu quero, porque me diverte. Afinal mudei, mudei muito,” ela conclui.

Depois se levanta, caminha pelo quarto, diz para ele deixar a máquina em cima da cômoda e se vira de costas. Abre bem as pernas, dobra as costas em direção ao chão e fala que era assim que um namorado de juventude pedia que ela fizesse.

“Eu ficava de costas, ele se excitava, se masturbava e às vezes até me respingava... Mas nunca transamos, eu não deixava. Eu queria casar virgem,” acrescenta, rindo.

O namorado se senta na beira da cama para melhor apreciar o corpo de Inês, repete os elogios à sua bunda e diz que ela “ainda merece uma homenagem”. Ajoelha-se para tocar o seu corpo, acariciar suas nádegas, beijá-las, enquanto Inês permanece na mesma posição, sentindo prazer em ter um homem que a admira e, mais do que isso, a deseja.

No entanto, Inês acha nojento “esse negócio de enfiar a cara na bunda”, jamais faria o mesmo com ele, mas deixa que ele faça. “Se passar dos limites, minha sobrinha sabe onde estou,” pensa. “Mas ela faria o quê?”, se pergunta na sequência. Está a mais de 20 quilômetros da cidade, numa área praticamente rural, com casas uma distante da outra, e, se aquele homem quiser, faz com ela o que bem entender.

Eles se conhecem há pouco tempo e Roberto é praticamente um desconhecido. Um homem determinado, que construiu a sua vida sem pestanejar, conquistou posição social confortável e não se curva diante de coisa alguma – muito menos de uma mulher, ela imagina. Inês gosta do seu perfil de homem tradicional, orgulhoso da sua condição de macho, mas às vezes se surpreende com os sinais de misoginia e homofobia que volta e meia ele expressa em atitudes e comentários. “Coisas que mudo com o tempo”, ela fantasia.

Então sente que ele a abraça por trás, a leva para a cama e a deita de bruços. Faz isso com certo vagar e muita determinação. Ela sabe o que ele pretende e se deixa conduzir. Estende-se no colchão macio, apoia o queixo, um braço para cada lado segurando as bordas da cama e empina o traseiro como ele pede. Tem medo de sentir dor, espera ele lubrificar o membro e aguarda. Sempre teme que ele faça o que todo o homem sonha... fica apreensiva e chega a temer o pior. Então se sente aliviada ao perceber que é a vagina que ele procura e relaxa. Na verdade, tenta relaxar, pois se conflitua entre o prazer de ter um homem que a deseja e o desprazer desse mesmo homem dominar o seu corpo e garantir o próprio gozo, “egoísta como todos os homens”.

“Ele mora numa casa com cerca elétrica,” disse para a sobrinha. “Tem sistema de alarme, mas é longe de tudo, um lugar tão silencioso que chega a dar medo. Quando não saímos para passear, ir a algum lugar, ficamos só nós dois, horas e horas.”

Inês fez um mapa para a sobrinha, indicou a localização da casa de Roberto e deu detalhes da sua construção. O muro de tijolos alaranjados, o portão pintado de verde, “tudo com cores vivas, não sei pra quê, tudo gritando.”

“E este mapa, nas tuas mãos, é uma garantia para mim,” ela disse. A sobrinha a escutou sem entender e perguntou: “Mas tu tens algum receio? Ele pode te fazer mal?” “Não”, Inês respondeu, “é só para o caso de acontecer alguma coisa. Afinal ele é homem e uma mulher precisa estar prevenida.”