Histórias de família se perdem. Os netos, por exemplo,
raramente sabem a trajetória dos seus avós e bisavós. Eu pouco sei. Meu pai
morreu quando eu tinha 22 anos e hoje, com 64, às vezes embaralho as histórias que
ele contava relativas aos meus avós paternos.
Eles vieram da Itália, no final do século XIX, e se
conheceram em São Paulo, numa fazenda de café. O vô era do norte, da região do
Vêneto, da cidade de Adria. A vó era do sul, mas eu nunca soube de qual localidade.
Calábria? Uma vez ouvi alguém especular a respeito.
Ambos trabalharam em fazendas de café, no estado de
São Paulo, que era o destino da maioria dos imigrantes italianos que chegavam
ao Brasil, no final do século XIX e início do XX. Mão de obra para substituir o trabalho escravo. Mão de obra barata. Segundo um fazendeiro paulista, 1/3 mais barata que a de um escravo.
O vô chegou em agosto de 1888. Tinha catorze anos. Desembarcou
no porto de Santos, subiu de trem até a cidade de São Paulo e foi hospedado na
Hospedaria do Imigrante. Vinha com o pai, a mãe e uma irmã de três anos de idade. A família passou alguns dias na Hospedaria e logo foi para Sorocaba, para
trabalhar numa propriedade da família Prestes.
Hospedaria do Imigrante, em São Paulo (2016).
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Uma tia contou que eles (a família do meu avô) ficaram
muito espantados quando souberam que as casas onde moravam, na fazenda, fora
moradia de negros. Negros escravos. A figura do negro tinha alguma coisa de
pavorosa para eles. Provavelmente a escravidão também – que tinha sido extinta
meses antes deles se estabelecerem em Sorocaba.
Tempos atrás eu visitei uma fazenda de café paulista –
Fazenda Santa Maria do Monjolinho, em São Carlos – e conheci as tais senzalas
reformadas para receber as famílias italianas. As senzalas divididas em “apartamentos”
de dois quartos, sala e cozinha. Um padrão de habitação provavelmente inferior
à moradia dos camponeses no Vêneto.
Faço essa comparação lembrando as casas dos
pastorinhos de Fátima, em Portugal, que estão preservadas (e visitei em 2012).
Moradias da década de 1910, de simples camponeses portugueses – que imagino semelhantes às
dos camponeses italianos do final do XIX. Casas de paredes de pedra, com assoalho
de madeira, tudo muito rústico, mas visivelmente superior a uma senzala
reformada, de paredes de tijolos e assoalho de chão batido.
Antiga senzala da Fazenda Santa Maria do Monjolinho, em São Carlos (2016). |
Interior da senzala, reformada para receber os imigrantes (2016). O assoalho de tijolo
foi colocado muito depois, segundo a guia da fazenda.
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O pai contava que eles viviam da terra, na Itália. Pequena
propriedade rural que não dava para grande coisa. Mas que garantiu que o avô
estudasse e fosse alfabetizado. Um dia, ele jogou um tinteiro no professor e
foi expulso da escola.
Essa última história o pai contou no final de um
almoço de domingo, enquanto nós dois terminávamos o vinho. Meus dois irmãos já
tinham saído da mesa, a mãe retirava os pratos e às vezes fazia um
comentário, acrescentava um detalhe.
O vô fora expulso da escola e obrigado a trabalhar. Um
dos serviços fora o de servente de obra. No caso, de construção de pontes na
cidade de Veneza – não muito distante de Adria.
Uma das funções do avô era carregar os pregos (ou
parafusos) para os operários colocarem nas vigas de ferro que constituíam as
pontes. O pai contava isso como se fosse uma história engraçada. Um dia o tio Victor contou a mesma história e o tom era o mesmo: o de um caso divertido.
O cômico, para eles, talvez fosse imaginar o velho Vittorio
(esse o nome do meu avô), então um menino de 10 ou 12 anos, carregando um prego
(ou parafuso) por meio de uma espécie de pinça e cuidando para não cair. O prego
(ou parafuso) fora aquecido, estava muito quente, e precisava chegar desse
jeito até o operário que o esperava para colocar entre as vigas de ferro.
– O velho tinha que se equilibrar na ponte em
construção – dizia meu pai – e cuidar para não se queimar nem deixar a peça cair.
A graça estava aí: o velho, então um menino, passando
um perrengue danado. Equilibrando-se numa ponte em construção, “piando fino” - expressão que meu pai gostava de usar para se referir a alguém passando por uma situação difícil. Adulto, Vittorio se tornou um homem severo, exigente, que deu
surras homéricas (de cinta) nos filhos.
Histórias de família se perdem. Quando lembradas, são
servidas em porções pequenas, que mudam de feitio ao sabor do vento.
Estou encantada de saber um pouco mais da nossa história e do q quanto ela é rica em detalhes, vivências e emoções. Obrigada por compartilhar conosco.
ResponderExcluirMuito bom, Vitor! Uma delícia tua crônica.
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