terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Filmaço!

            Dias atrás, fui ao Shopping Bourbon Country assistir ao filme iraniano “A semente do fruto sagrado” e, na saída, fiquei comparando com o brasileiro “Ainda estou aqui”.[1]

Duas formas bem distintas de realizar cinema de cunho político. Tudo muito explícito no caso iraniano (centrado na família de um juiz que assina sentenças de morte aos presos políticos durante uma conjuntura de manifestações contra a teocracia dos aiatolás); tudo muito sutil no caso brasileiro (abordando a família de Rubens Paiva, o ex-deputado preso ilegalmente, torturado e desaparecido pelos órgãos de segurança do Regime Militar).

Cartaz do filme Ainda estou aqui.

“Ainda estou aqui” é uma narrativa muito original – e magnífica – a respeito do modo como uma determinada família (em especial a esposa) encarou as arbitrariedades e violências do Regime Militar, principalmente quanto às técnicas utilizadas pelos militares para enfrentar os seus adversários políticos. No filme, a violência cometida pelos agentes de segurança não é explicitada. Na cena em que os agentes da Aeronáutica vão a casa do ex-deputado e o levam para interrogatório, nenhum deles porta metralhadoras (conforme está registrado pela documentação a respeito). O modo de representar o episódio (a cenografia da prisão) retirou as armas pesadas das mãos dos agentes e deixou apenas um revólver na mão de um deles, que logo é escondido embaixo da camisa.[2]

Esse modo de construir o aprisionamento/sequestro (uma prisão ilegal, pois os agentes não portavam ordem de prisão) me pareceu emblemático do tom da narrativa fílmica (muito distinta da maioria dos filmes que abordam o Regime Militar). A direção do filme “limpou” a cena do aprisionamento e esse modo de representação me pareceu emblemático da narrativa. A violência não se explicita, mas está colocada inteira no drama. Mas, ao final do filme, o espectador está exausto com a crueldade dos agentes militares (e abismado com a beleza da narrativa).

Pelos milhões de brasileiros que têm ido ao cinema e aplaudido, quero crer que a estratégia narrativa é eficaz. O pessoal sai comovido da sala. “Ditadura nunca mais”, grita um e outro espectador, ao final.

O filme iraniano, por sua vez, para alcançar o mesmo objetivo (a denúncia da violência política) opta por explicitar os policiais sentando o pau nos manifestantes e, desta maneira, criar o clima de tormento que atinge o juiz, sua esposa e as duas filhas. A cena em que uma manifestante ferida no rosto é atendida (cena longa, com close no rosto para melhor visualização dos movimentos lentos da pinça retirando as bolinhas de metal cravadas na pele) é exemplar.

Foi isso que pensei batendo pernas pela rua, entre o shopping e o meu prédio. Filmaço, este que Walter Salles realizou e Fernanda Torres e Salton Melo representaram com brilhantismo. Mas destaque especial para a cena muda da personagem Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Montenegro, no final: a viúva de Rubens Paiva na cadeira de rodas, doente, na frente da TV, assistindo a um documentário sobre o Regime Militar, e subitamente despertando para as atrocidades dos militares. Cena antológica a respeito do horror – o horror! – que os regimes autoritários são capazes de produzir.



[1] A semente do fruto sagrado, direção e roteiro de Mohammad Rasoulof. Irã / Fr. / Alemanha, 2024, 167 min.; Ainda estou aqui, direção de Walter Salles, roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega. Br. / Fr., 2024, 135 min.

[2] No filme, não fica claro que os agentes do aprisionamento de Rubens Paiva são da Aeronáutica, apenas que são agentes da repressão. Na sequência, não há cena da tortura, morte e desaparecimento do cadáver do ex-deputado. Conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Rubens Paiva foi levado para a III Zona Aérea, no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, e ali começou a tortura, com o propósito de descobrir informações sobre Carlos Lamarca. Depois ele foi transferido para o DOI-Codi do I Exército, onde foi morto. Posteriormente os militares jogaram o seu cadáver no mar.