Dias atrás, fui ao Shopping Bourbon Country assistir ao filme iraniano “A semente do fruto sagrado” e, na saída, fiquei comparando com o brasileiro “Ainda estou aqui”.[1]
Duas
formas bem distintas de realizar cinema de cunho político. Tudo muito explícito
no caso iraniano (centrado na família de um juiz que assina sentenças de morte aos
presos políticos durante uma conjuntura de manifestações contra a teocracia dos
aiatolás); tudo muito sutil no caso brasileiro (abordando a família de Rubens
Paiva, o ex-deputado preso ilegalmente, torturado e desaparecido pelos órgãos de
segurança do Regime Militar).
Cartaz do filme Ainda estou aqui. |
“Ainda estou aqui” é uma narrativa muito original – e magnífica – a respeito do modo como uma determinada família (em especial a esposa) encarou as arbitrariedades e violências do Regime Militar, principalmente quanto às técnicas utilizadas pelos militares para enfrentar os seus adversários políticos. No filme, a violência cometida pelos agentes de segurança não é explicitada. Na cena em que os agentes da Aeronáutica vão a casa do ex-deputado e o levam para interrogatório, nenhum deles porta metralhadoras (conforme está registrado pela documentação a respeito). O modo de representar o episódio (a cenografia da prisão) retirou as armas pesadas das mãos dos agentes e deixou apenas um revólver na mão de um deles, que logo é escondido embaixo da camisa.[2]
Esse
modo de construir o aprisionamento/sequestro (uma prisão ilegal, pois os
agentes não portavam ordem de prisão) me pareceu emblemático do tom da
narrativa fílmica (muito distinta da maioria dos filmes que abordam o Regime
Militar). A direção do filme “limpou” a cena do aprisionamento e esse modo de
representação me pareceu emblemático da narrativa. A violência não se explicita,
mas está colocada inteira no drama. Mas, ao final do filme, o espectador está
exausto com a crueldade dos agentes militares (e abismado com a beleza da
narrativa).
Pelos
milhões de brasileiros que têm ido ao cinema e aplaudido, quero crer que a
estratégia narrativa é eficaz. O pessoal sai comovido da sala. “Ditadura nunca
mais”, grita um e outro espectador, ao final.
O
filme iraniano, por sua vez, para alcançar o mesmo objetivo (a denúncia da violência
política) opta por explicitar os policiais sentando o pau nos manifestantes e,
desta maneira, criar o clima de tormento que atinge o juiz, sua esposa e as
duas filhas. A cena em que uma manifestante ferida no rosto é atendida (cena
longa, com close no rosto para melhor visualização dos movimentos lentos da pinça retirando as bolinhas de metal cravadas
na pele) é exemplar.
Foi
isso que pensei batendo pernas pela rua, entre o shopping e o meu prédio. Filmaço,
este que Walter Salles realizou e Fernanda Torres e Salton Melo representaram
com brilhantismo. Mas destaque especial para a cena muda da personagem Eunice
Paiva, interpretada por Fernanda Montenegro, no final: a viúva de Rubens Paiva na
cadeira de rodas, doente, na frente da TV, assistindo a um documentário sobre o
Regime Militar, e subitamente despertando para as atrocidades dos militares. Cena
antológica a respeito do horror – o horror! – que os regimes autoritários são
capazes de produzir.
[1] A
semente do fruto sagrado, direção e roteiro de Mohammad Rasoulof. Irã / Fr.
/ Alemanha, 2024, 167 min.; Ainda estou aqui, direção de Walter Salles, roteiro
de Murilo Hauser e Heitor Lorega. Br. / Fr., 2024, 135 min.
[2] No filme,
não fica claro que os agentes do aprisionamento de Rubens Paiva são da
Aeronáutica, apenas que são agentes da repressão. Na sequência, não há cena da
tortura, morte e desaparecimento do cadáver do ex-deputado. Conforme relatório
da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Rubens Paiva foi levado para a III
Zona Aérea, no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, e ali começou a tortura,
com o propósito de descobrir informações sobre Carlos Lamarca. Depois ele foi
transferido para o DOI-Codi do I Exército, onde foi morto. Posteriormente os
militares jogaram o seu cadáver no mar.