quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Autoritarismo em questão

             Para quem foi professor de História e gastou horas tentando entender a tradição golpista dos militares brasileiros (assim como a sua aceitação por parcelas significativas da sociedade), esta é uma semana excepcional. Um acontecimento histórico, pois é a primeira vez que militares são julgados por atos golpistas.

Para ficarmos no chamado Período Democrático (1945-1964), os militares tramaram contra os presidentes eleitos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart e nunca foram julgados por isso.[1] Obtiveram êxito em relação ao último, em 1964, quando o depuseram do poder (com aceitação de boa parte da sociedade civil) e construíram um domínio de 21 anos. Em 2018, voltaram ao núcleo do Governo Federal com a vitória eleitoral de Bolsonaro, armaram a sua continuidade por vias antidemocráticos (após a derrota eleitoral de 2022) e agora respondem por isso.

Acompanho no Facebook alguns amigos que migraram para a extrema-direita e leio que “não houve golpe”, pois “não houve tanques das ruas”. Bolsonaro e seus generais não lideraram nenhum assalto ao poder e os manifestantes que acamparam na frente dos quartéis pedindo “intervenção militar” e depois atacaram a Praça dos Três Poderes estavam apenas exercendo seus direitos de livre expressão e manifestação política. Nada mais fizeram do que uma livre manifestação democrática.

Procuro compreender a ginástica mental desses amigos para esconder a sua inclinação golpista e autoritária... mas não consigo. São contrários ao jogo democrático liberal (não aceitam o resultado das urnas, são contrários às decisões do Judiciário), mas não se percebem dessa maneira. Se entendo o que dizem, não se pensam golpistas, muito menos autoritários e nem de longe alinhados à tradição autoritária das Forças Armadas brasileiras. Quanto ao velho fascismo de Mussolini, então, se percebem completamente desvinculados.

Eu converso com uma colega (na faixa dos 70 anos) e ela revela que não torce pela condenação de Bolsonaro e seus generais. Pergunto se ela não se incomoda com a ideia de golpe de Estado tal qual foi arquitetado por Bolsonaro & sua trupe de generais e ela diz que “Lula é muito pior”. Não explica o que é esse “pior” e recordo de uma amiga (namorada de um bolsonarista também idoso) minimizando os crimes políticos de Bolsonaro. “Seria melhor que ele tivesse fugido”, ela diz, “para evitar essa confusão toda”. O namorado reúne os amigos na sua casa e passam horas discutindo “a ditadura da toga”, “a ilegalidade do julgamento”, “a falta de decência desse governo corrupto que afunda a economia do país” e “o caos que se tornará o Brasil com a condenação e prisão de Bolsonaro”.

Respeito às regras da democracia liberal é o que menos importa na cabeça dessa gente. Para esse pessoal, articulação de uma tomada do poder por meios não democráticos é apenas “uma narrativa da esquerda”. Uma conversa que me faz lembrar da velha direita dos anos 1970, que se assumia autoritária, entendendo que esta é também uma opção civilizacional (tal qual teorizava o velho fascismo). O presidente Ernesto Geisel, com seu projeto de “democracia conservadora”, não escondia isso.

“As massas populares não estão preparadas para a democracia”, me falava um velho senhor, no final dos anos 1970, esgrimindo argumentos que remontavam à antiga Grécia e a Platão. Hoje, talvez ele defendesse a tentativa de golpe de janeiro de 2023 como uma alternativa pragmática para deter o avanço da esquerda, mesmo uma esquerda democrática (que chegou ao poder pela via eleitoral), pois, afinal, o que importa é o domínio das classes altas, melhor preparadas para o exercício do poder ou coisa que valha.

O recém lançado livro do historiador Carlos Fico, excelente estudo
sobre o autoritarismo das Forças Armadas brasileiras. Obra para ler
e se estarrecer com a sua atualidade.


[1] “Período Democrático” é como os anos de 1945 a 64 são denominados em muitos manuais de História do Brasil, como o de Bóris Fausto, publicado pela EDUSP em 1996 e ainda reeditado.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Golpistas no banco dos réus

 

Bolsonaro nunca escondeu a sua inclinação autoritária. Quando ele era um simples deputado federal, medíocre quanto ao seu desempenho na Câmara Federal, mas incisivo na sua apologia ao Regime Militar e à repressão da esquerda em geral, eu o citava nas aulas de História da América Latina como uma excrescência do período das ditaduras dos anos 1960, 70 e 80. Entendia que era irreversível o processo de adesão (ou pelo menos de aceitação) das Forças Armadas latino-americanas em relação à democracia liberal (nisso incluído o jogo eleitoral, a posse do candidato eleito, fosse ele quem fosse) e via Bolsonaro como um tipo folclórico, a sombra de um passado tenebroso que jamais retornaria.

Como me enganei. Não entendia, por exemplo, que a grande maioria das Forças Armadas brasileiras não via problema na tortura e tomou como um ultraje as investigações da Comissão da Verdade nomeando os torturadores do Regime Militar, executores de uma prática fundamental no combate às oposições, em especial a esquerda armada. Não sabia que os militares ainda consideravam os mecanismos da tortura como arma legítima para o enfrentamento dos inimigos e a sala de tortura como uma espécie de campo de batalha no qual o inimigo pode ser combatido. Não entendia que as técnicas bárbaras de repressão continuavam no horizonte das Forças Armadas brasileiras.

Foi uma surpresa, então, quando os militares construíram a candidatura Bolsonaro, a excrescência autoritária. Fato que se evidenciou para mim com os tuítes do general Villas Bôas em abril de 2018.

Mas dizer que “se evidenciou" é um exagero. Passei a desconfiar. Eu não conseguia acreditar que os militares estavam almejando retornar ao núcleo do poder.

Seja como for, a partir daí, mudou minha percepção da cena política e me assustei. Assisti a extrema-direita exercitar as suas técnicas de militância nas redes sociais (que capacidade de atormentar um adversário!) e fiquei com medo. Exagerando, achei que a coisa um dia podia sobrar pra mim.

Às vésperas do 7 de setembro de 2021, quando escutei meus vizinhos comentarem “é agora, vamos calar o STF”, arrepiei. Os caras estão pensando em insurreição, pensei, o Estado burguês não dá conta das suas demandas, eles querem mais. Mas sempre achando que estava incorrendo em fantasia. Ora, o neofascismo se consolidando na Presidência da República! Até quando surgiram os acampamentos na frente dos quartéis, pedindo intervenção militar para impedir o Lula de tomar posse, após a derrota eleitoral de Bolsonaro em outubro de 2022, desconfiei que a coisa não era pra valer. Será que regrediremos a 1964? Não pode.

Vi meus vizinhos irem bater o ponto no acampamento na frente do quartel da 6ª Brigada de Infantaria Blindada (na avenida Borges de Medeiros, em Santa Maria – cidade onde, então, eu morava) e fui lá duas vezes com a máquina fotográfica para registrar o evento. Levei a máquina dentro da mochila, mas não tive coragem de usá-la. Achei que os manifestantes podiam me identificar como petralha e virem pra cima de mim. Não quis encarar. Uma pena, pois esse registro faz falta.

6ª Brigada de Infantaria Blindada (antigo 7º RI). Era nesse gramado,
à direita, que estava o acampamento bolsonarista pedindo intervenção militar.
Fonte: Brenner Santa Maria (2013).
 

Relembro tudo isso agora porque, enquanto escrevo, a tropa de choque dessa trama golpista está no banco dos réus e tudo indica que será condenada: os oito líderes da tentativa golpista: o ex-presidente, cinco oficiais altamente graduados (um da Marinha, quatro do Exército), mais dois civis, sendo um deles ex-diretor da ABIN. Pela primeira vez na história da República, militares golpistas com chances de seres presos. Um fato inédito "nunca antes visto na história brasileira".

Mesmo que venham a ser anistiado daqui a alguns anos - como sempre foram ao longo da República - é um fato a se comemorar. Quem preza o jogo democrático liberal tem diante de si um fato inédito. O Estado democrático burguês resiste ao ataque fascista.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Os eunucos negros

 

Sou desses turistas que não largam a máquina fotográfica. Ao viajar, vou registrando quase tudo o que vejo e muitas vezes caminho e já vou pensando no melhor ângulo. Olho, observo, planejo a foto, e depois volto para clicar. Mas às vezes deixo passar. Simplesmente observo o local, a paisagem ou o ambiente, muitas vezes incomodado por alguma coisa.

Pois foi justamente isso que aconteceu, quando visitei o principal palácio do antigo Império Otomano (o Palácio Topkapi, em Istambul, em 2022), e adentrei o espaço dos eunucos negros, o primeiro pátio do harém. Me deparei com os alojamentos desses escravos mutilados... e paralizei. Um cartaz indicava a sua importância no local: guardas e administradores das esposas, concubinas e odaliscas do soberano. Lembrei que, além do sultão, nenhum outro homem entrava no recinto e eles garantiam isso. Uma navalha cortara os seus pênis e testículos, e dessa maneira eles se transformavam em serviçais confiáveis aos olhos do sultão. Deixavam de ser uma ameaça e passavam a ser o quê, esses homens mutilados?

Os demais eunucos (os eunucos brancos, que também exerciam funções de guarda e administração em outros espaços do palácio menos importantes que o harém) não sofriam uma castração tão radical. Perdiam os testículos, ficavam com o pênis, e há quem diga que alguns conseguiam uma ereção.

Jogos de poder não são brincadeira. Ao se constituírem estraçalham corações, mentes e até corpos. Em certas circunstância, uns perdem as bolas; outros, as bolas e o pau.

Os eunucos negros eram trazidos da África (Sudão, Etiópia e Egito); os brancos, da região do Cáucaso (Geórgia e Armênia); e tinham tratamento diferenciado.

Pavorosa, a história dessa gente. A dos negros, então, absurda. Eles tinham sido meninos no Sudão e na Abissínia, escravizados e submetidos a essa cirurgia na puberdade (geralmente no Egito), cortados com navalhas de pouca precisão, “anestesiados” com álcool, ópio e compressas frias, cauterizados com ferro em brasas, e a maioria (entre 70 a 80%) morriam de infecção ou hemorragia. Os que sobreviviam eram levados a Istambul, ganhavam voz fina e geralmente ficavam obesos e disformes (neste último caso, devido ao desenvolvimento anormal dos ossos).

Alguns se tornavam chefes da guarnição dos eunucos e adquiriam um poder que os ombreavam a vizires e generais. Houve casos de eunucos poderosos e famosos, como Beshir Agha (durante o reinado do sultão Mahmud I, entre 1730 e 1754), mas a maioria apenas serviu ao sultão, engordou, rezou (eles se tornavam muito religiosos) e aprendeu a urinar de modo pouco natural para um homem. Pessoas mutiladas.

Foi essa história que me horrorizou e paralisou naquele pátio do Palácio Topkapi. Não fotografei o local. Pulei essa parte e a relembrei outro dia, quando pensava a respeito desses terrores masculinos: os da castração e que muitas vezes se efetivaram ao longo da História, na China, na Igreja Católica (para preservar as vozes agudas dos meninos, nos corais) e também no Império Otomano.

No episódio do passeio turístico pelo Topkapi, logo superei o espanto e as reflexões sombrias, pois o local é belíssimo. E, no imenso labirinto que é esse complexo palaciano (por volta de 400 quartos), me deparei com um salão imperial (com destaque para o trono sobre um estrado), de decoração luxuosa e primorosa, utilizado tanto para cerimônias oficiais quanto para o entretenimento das mulheres e do sultão. Que deviam se divertir à beça naquele local, protegidos por homens negros mutilados, sem pênis e sem testículos.

Salão imperial. Palácio Topkapi, Istambul.


terça-feira, 12 de agosto de 2025

San Martín, monumento nacional

 

É cacoete de professor de História: sou instigado por monumentos de praças e avenidas. Figuras equestres, então, me fisgam completamente. A de Bento Gonçalves, na Avenida João Pessoa, em Porto Alegre; a de Marco Aurélio, na praça do Campidoglio, em Roma; a de José de San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires. Sinto como se houvesse algo a decifrar. Entro no clima.

Esses monumentos de figuras histórias (geralmente homens, imperadores ou generais, que se destacaram na guerra e na política) não foram construídas à toa. São personagens que se transformaram em mitos e servem a propósitos grandiosos. Além do papel histórico que de fato exerceram (governando, comandando tropas), ganharam uma função simbólica a ser exercida para muito além de suas humanas e precárias vidas. Bento Gonçalves passou a encarnar os ideais autonomistas do povo sul-rio-grandense; Marco Aurélio, a grandeza do Império Romano conduzido com determinação e sabedoria; San Martín, a unidade do movimento de independência que resultou na criação do Estado Nacional argentino.

O modo como essas figuras humanas se transformaram em mitos e passaram a dominar o imaginário de uma coletividade, uma nação ou império, é assunto que arrasta historiadores e poetas e dá assunto para uma vida inteira.

Quando estive em Buenos Aires, dias atrás, logo no primeiro dia, caminhei com a minha companheira pela Calle Florida e fomos até a Plaza San Martín. Era um dia frio, ensolarado e de céu azul, e não deu outra: fiquei fascinado pela figura do herói platino, em bronze, montado no seu cavalo, a espada erguida, no alto e no centro da praça.  Escultura criada por volta de 1878 (ano do centenário de nascimento do herói), quando já estava consolidado Estado argentino (assim como iniciava a mitificação de San Martín), e a figura ainda irradia sua áurea de Libertador pelo local.

Monumento a San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires.

Este sentimento e curiosidade me acompanharam a viagem inteira e fiquei puxando a memória a respeito da sua figura histórica... atento às diversas referências feitas a ele nos mais variados logradouros públicos. Não há como escapar de San Martín, assim como, no Rio Grande do Sul, não deixamos de ouvir e ler os nomes de Bento Gonçalves, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.

José de San Martín foi filho de espanhóis (o pai era da elite administrativa da colônia), nasceu em Yapejú (1778), no atual norte da Argentina, e cedo sua família regressou a Espanha. Teve formação militar na Metrópole e se destacou nas guerras contra Napoleão na Península Ibérica. Envolveu-se com a Maçonaria e regressou a terra natal (1812) para lutar contra o domínio colonial, obtendo grande êxito nas campanhas militares que liderou, em especial no Chile e no Peru.

Curiosamente, depois de um encontro com Simón Bolívar, em Guayaquil (no atual Equador, em 1822), se retirou da cena política, se auto-exilou na França e lá viveu seus últimos anos. Morreu em 1850. Não há registros sobre a conversa com Bolívar, mas se supõe que os dois líderes (Bolívar, republicano; San Martín, monarquista) não se entenderam e o argentino abriu mão de tudo, deixando o campo livre para o seu aliado.

Minha viagem seguiu de Buenos Aires para Mendoza, fiz um passeio turístico pela Cordilheira dos Andes e, súbito, ouvi a guia anunciar que estávamos nas “rutas sanmartinianas”. Isto é, no famoso itinerário das tropas de San Martín na Campanha do Chile, etapa importante da guerra da independência: a de solapar o domínio espanhol na América. Vencer os realistas na Capitania do Chile (o que se concretizou nas batalhas de Chacabuco e Maipú) e depois avançar sobre o principal bastião da resistência espanhola, o Vice-reinado do Peru (o que também se efetivou em novas vitórias militares).

Caminhando no gélido vale da Cordilheira, me deparei com uma pequena ponte do século XVIII (Ponte de Picheuta, devidamente restaurada por arqueólogos de uma universidade local), utilizada pelas tropas de San Martín na Campanha do Chile. Por volta de 5.400 homens compunham o efetivo militar sob o comando do Libertador, a grande maioria arregimentada a força, precariamente vestidos e armados (muito distantes das representações gloriosas de soldados uniformizados presentes nos relevos magníficos dos monumentos públicos), e essa multidão atravessou aquela ponte. Soldados que pouco ou nada sabiam do que se passava na cabeça dos seus chefes militares. A plebe rude que dá a vida para a glória dos grandes generais.

Ponte de Picheuta, na Cordilheira dos Andes.

Resumindo: vivenciei naquele pequeno vale, nas margens do rio Picheuta, diante de outro monumento da guerra da independência, uma experiência muito distinta daquela que vivi na artística praça de Buenos Aires. Experiências que se complementam, uma delas encenada em bronze requintadamente moldada, a outra feita com pedra selada com argamassa. Numa delas o mito elaborado com sofisticação; em outra, o mito em estado mais cru, mais próximo ao horror que foi a guerra anticolonial, que se prolongou por longos quinze anos (1810 a 1825) e até hoje preenche páginas e páginas de livros, absorve historiadores e encanta turistas.

sábado, 9 de agosto de 2025

Vinho com gelo

 

Na primeira vez em que estive em Buenos Aires, em janeiro de 1977, o câmbio era tremendamente favorável à moeda brasileira e me chamaram atenção os baldinhos de gelo colocados nas mesas dos restaurantes junto com o vinho. Eu era estudante universitário, tinha pouca grana e quase nada sabia sobre consumo e fruição de vinhos. Foi a minha primeira viagem internacional.

Eu trabalhava há pouco tempo como balconista numa filial da Livraria do Globo (na Rua 24 de Outubro, em Porto Alegre) e uma amiga me convenceu de que “era agora ou nunca”. “Nunca mais teremos uma oportunidade dessas”, ela me disse, se referindo ao valor da nossa moeda frente ao peso argentino. Meu ganho mensal não passava de um salário-mínimo e ela garantiu que era o suficiente para uma semana.

Encaramos a viagem de ônibus, passamos por Chuí, Montevidéu e pegamos o aliscafo em Colônia.[1] Nossa hospedagem foi num modesto hotel próximo ao porto (decadente, naquela época; hoje, o reformado Puerto Madero) e achei ótimo. Pensáramos que “pintaria um clima entre nós”, mas não rolou e permanecemos amigos. Ela arranjou um namorado portenho (minha amiga não perdia tempo) e algumas vezes saíamos os três a peregrinar por praças e pizzarias. O rapaz tinha ligações com a esquerda estudantil, nos colocava a par do golpe militar ocorrido no ano anterior e, principalmente, das prisões arbitrárias que vinham acontecendo.

Eu estava concluindo o Curso de História, achava que entendia alguma coisa sobre as ditaduras militares na América Latina e hoje vejo que minha compreensão era rasa, muito rasa. Não fazia ideia da truculência dos órgãos de segurança, das torturas e dos desaparecimentos.

Na terça-feira retrasada, quando estava em Buenos Aires almoçando nas Galerias Pacífico (justamente abaixo dos famosos afrescos, no hall central), observei um senhor encher seu copo de vinho com cubos de gelos e recordei... essa primeira viagem ao mundo portenho e esse estranho costume: o gelo no copo de vinho. Não vi isso em nenhum outro lugar, nem em Buenos Aires nem em La Plata e Mendoza, e não avalio a abrangência dessa prática.

Em Mendoza, estive em três vinícolas sofisticadas (Vigil, Zuccardi e Catena Zapata) e, em nenhuma delas, houve referência a esse costume. Talvez uma esquisitice de alguns portenhos, imagino agora.

Vinícola Catena Zapata - agosto de 2025.

Tentei contar isso para minha companheira, mas não deu tempo. Tanta coisa para falar, comentar, que esse assunto se perdeu no caminho. Bebemos brancos e tintos (mais tintos do que brancos) e em nenhum momento algum garçom nos perguntou se queríamos gelo. Acho que perceberam que não éramos “bárbaros”.



[1] Não encontrei a palavra “aliscafo” nos dicionários Aurélio e Houaiss, mas era assim que se falava, quando não se queria dizer “ferry-boat”.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Apenas um turista na Argentina

 

Estive na Argentina durante nove dias e bati pernas por Buenos Aires, La Plata e Mendoza. Postei fotos no Facebook durante a viagem e um ex-aluno me perguntou se percebi as mudanças que o presidente Milei está causando no país. Respondi que não, pois era apenas um turista, viajando com minha companheira, desses que chegam de avião, ficam em bons hotéis e, no caso de Buenos Aires, vão a um balé no Teatro Colón, bebem vinho na Avenida 9 de Julio, almoçam no Puerto Madero e visitam museus de arte (o MALBA e o Museu de Belas Artes).

Puerto Madero, com a Puente de la Mujer ao fundo.

Se fosse a um evento acadêmico e conversasse com professores de universidades estatais, certamente saberia dos impactos da política presidencial na educação e na ciência. Afinal, segundo o noticiário, os salários dos professores foram arrochados e alguns estão debandando. A situação também é crítica na área científica e, só no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, quatro mil postos de trabalhos foram eliminados.

Enxugar a máquina pública é a palavra de ordem presidencial – “um gênio”, segundo um motorista que nos conduziu pelas vinícolas de Mendoza – e por volta de 10% dos funcionários públicos dançaram. Além da educação, ciência e previdência (a situação dos aposentados é terrível), a saúde pública também é alvo de cortes e cruzamos com manifestantes contrários a esta situação.

Em duas ocasiões, em La Plata e em Mendoza, nos deparamos com pequenos grupos de pessoas protestando contra um projeto de lei que atinge os profissionais que atendem deficientes. Em La Plata, atravessamos uma dessas manifestações em frente a um prédio do poder legislativo, o qual admirávamos pela beleza e monumentalidade, e súbito paramos para entender o que era aquela gente com cartazes. Dois dos manifestantes em cadeiras de roda.

Em Buenos Aires, minha companheira e eu fomos a Estación Constituición, pegar o trem para La Plata, e senti um descompasso entre o prédio monumental e o estado dos trens e da população. Achei os trens precários e os usuários, muito modestos, enquanto o prédio ainda lembrava o esplendor do período agroexportador. Uma impressão que já tivera vinte anos atrás, mas me pareceu pior. Vendo os vendedores que cruzavam os vagões (com produtos em caixas de papelão amarrados com cordões e em cestos de vime), tive a impressão de estar na Bolívia, presenciando uma cena “latino-americana raiz”, isto é, subdesenvolvida. Na volta, escolhemos o ônibus, que nos garantiram ser mais confortável e rápido (o que se comprovou integralmente).

Como disse ao meu ex-aluno, eu era apenas um turista. Desses que viajam com a companheira e privilegiam os bons momentos: um espetáculo no Teatro Colón (mesmo que seja nas galerias), uma garrafa de Malbec na Avenida 9 de Julio, uma caminhada noturna pela Avenida Córdoba e os desdobramentos felizes que essas vivências agradáveis produzem.

Milei e sua serra ultra neoliberal passaram ao largo. Só não esqueci de José Hernández e Domingo Sarmiento (autores de "Martin Fierro" e "Facundo", respectivamente), dos quais encontrei referências em praças, monumentos e até na conversa com um motorista de Uber, nem de Borges e Cortázar, diversas vezes presentes em livrarias e espaços de memória.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

As gurias do Rococó

 

No início da década de 1970, quando era estudante do Julinho (Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre), a professora de História da Arte dividiu a turma em grupos e cada um apresentou um período da arte ocidental: o Gótico, o Renascimento, o Rococó, e por aí vai. Não tenho certeza a respeito de qual escola artística meu grupo precisou dar conta (talvez o Barroco), mas as gurias que se sentavam a minha frente apresentaram o Rococó e disto jamais esqueci.

Eram quatro moças entre 16 e 18 anos (estávamos no segundo ou terceiro ano do Colegial) e duas delas eu achava excepcionalmente bonitas. Quando elas ficaram na frente da turma, na hora da apresentação, uma delas (de pele muito branca) abriu um enorme livro com reproduções de pinturas, mostrou o quadro “Madame de Pompadour”, pintado por François Boucher, e fiquei deslumbrado. Na minha fantasia de adolescente, minha colega se tornou a encarnação desse ideal de beleza aristocrática que frequenta nossos contos de fadas, romances e filmes.

"Madame de Pompadour" (1759), de François de Boucher.

Na verdade, as quatro integrantes do grupo passaram a ter atributos daquele estilo artístico que floresceu na corte de Luís XV, na França. E não apenas aos meus olhos, pois no conceito da turma elas se tornaram “as gurias do Rococó”. Eram suaves, graciosas e sensuais (como os trabalhos artísticos apresentados), cada uma ao seu jeito de simples meninas do colegial.

Estou exagerando? Certamente. No entanto foi desse modo que elas ficaram no meu imaginário. Não me apaixonei por nenhuma delas, mas como poeta aprendiz que era, aprendendo a versejar tanto quanto a admirar a Beleza (com inicial maiúscula), coloquei-as no meu panteão de beldades. Eu lia e relia Hermann Hesse e gostava muito de um conto de sua autoria, intitulado “O Poeta”, no qual o personagem preferia olhar a beleza de longe, como espectador solitário, a se envolver com ela.[1]

Dessa maneira, François Boucher, Jean-Honoré Fragonard e Antoine Watteau entraram no meu radar de interesse. Eu frequentava uma das bibliotecas da escola, numa sala no subsolo do bloco principal, com belíssimas coleções de arte, e as folheava com interesse. Alguns títulos eram em francês e eu lia com enorme dificuldade.

Hoje, é engraçado pensar que o adolescente que eu era (ainda envolvido com a Igreja Católica e, ao mesmo tempo, atraído pelo rock e a Contracultura) fosse capaz de ter interesse pela arte mais frívola do Ocidente, aquela que vicejou na França do Absolutismo, no reinado de Luís XV, e teve Boucher e Watteau como expoentes máximos. Curioso.

Quando visitei o Museu do Louvre, em 2019, passei apressado por um dos mais sensuais quadros de Boucher, “Diana no banho”, e só dei uma espiada. O museu já ia fechar, minha antiga companheira e eu estávamos no Louvre desde a abertura, faltava ver a “Monalisa” e corremos até a sua sala. Mas a divina Diana, pintada por Boucher, não me deixou passar ileso. “Estou aqui”, ela sussurrou (erguendo seu delicado pezinho nu) e eu a olhei de canto de olho.

"Diana no banho" (1742), de François Boucher.

Quando penso nisso (que pecado não ter parado e referenciado a divina deusa), lembro também das “gurias do Rococó” e das horas que passei na biblioteca do Julinho folheando livros de arte, procurando naquelas imagens um guia para desvendar o mundo. Imagens que até hoje me povoam e enfeitiçam.



[1] No conto citado, um poeta chinês observa uma festa do outro lado do rio, deseja estar lá, gozar a alegria, mas opta por “assistir àquilo tudo como um espectador sensível” e, mais tarde, apresentar a cena “numa poesia perfeita”. Dia do bulício da vida, ele opta por “refletir o mundo [...] na poesia.” (HESSE, Hermann. Contos. RJ: Civilização Brasileira, 1970.)

terça-feira, 22 de julho de 2025

Minha avó Aymée

 

Minha avó se chamava Aymée, mas era conhecida como Meca. Ela gostava de ouvir radionovela depois do almoço, enquanto lavava a louça na cozinha. Eu tinha dez anos idade, morava no mesmo quarteirão, ia visitá-la com frequência e ficava fascinado vendo-a absorvida pelas novelas.

O rádio, colocado em cima da geladeira, enchia a cozinha de sons e eu ouvia o ruído de três batidas numa porta e uma voz feminina e chorosa dizer: “Paulo Roberto, é você?” Escutava o som da porta sendo aberta, acompanhada de uma voz masculina: “Sim, Maria Augusta, sou eu. Vim ver como você se encontra.”

As vozes eram sempre solenes, dramáticas, eu não achava graça naquilo, não entendia, mas ficaram gravadas na minha memória. A trilha sonora de meu mundo familiar.

De noite, na minha casa, passavam novelas na TV (a televisão era uma novidade, o pai recém comprara um aparelho) e a vó Meca aparecia para assistir. Recordo da abertura d“O Sheik de Agadir”, com o herói da história empinando um cavalo branco no deserto e, na sequência, cenas de intriga e outras bem melosas, de abraços e beijos. Eu novamente não entendia grande coisa, mas me fascinava o entusiasmo da vó.

Minha mãe, por sua vez, torcia o nariz por essa preferência da sua mãe.  Na certa uma implicância pelo modo exagerado como a vó Meca conduzia a própria vida: tudo sempre pintado com cores dramáticas, a vida transformada em “fita de cinema” ou novela mexicana.

Mais tarde, soube que ela se sentia vítima de “grandes injustiças” e isto marcara a sua vida. Injustiças que, provavelmente, estavam ligadas às histórias do seu pai. Ela nascera de uma “ligação” da sua mãe Antonieta com um “jornalista mulato”, a qual durara poucos anos e resultara em dois filhos, seguida por um novo casamento da mãe com um “engenheiro italiano”. O padrasto perfilhara os filhos da nova esposa, mas estabelecera uma condição: colocar uma pedra em cima da memória do pai natural das crianças.

Minha avó foi criada desse jeito e tudo indica que sempre sentiu um certo desconforto por esse “silenciamento” em torno do seu pai biológico. Mas nunca falou claramente a respeito do assunto. Desde mocinha minha mãe lidou com esses mistérios da sua mãe e só depois dela morrer conseguiu conversar a respeito. “Tua vó Meca certamente ficou traumatizada pelas histórias em torno do seu pai natural”, a minha mãe divagava, sem ter certeza de muita coisa.

Pois lembrei da minha avó lendo o romance “Chuva de papel”, de Martha Batalha (Cia. das Letras, 2023, 220 p.), em especial ao entrar em contato com o drama da personagem Glória: o seu desejo de trazer à tona a própria história. Glória é uma velha senhora que, no tempo da pandemia do Covid 19, procura fazer da sua trajetória uma autobiografia, mas encrenca ao torná-la uma narrativa possível de ser impressa. Ela quer contar o seu drama de menina que assistiu ao pai morrer de modo dramático (uma parada cardíaca num almoço de Páscoa), de mocinha que acompanhou a mãe fazendo promessa para conseguir novo marido, do médico casado que a desvirginou e a tomou como amante durante anos, controlando a sua vida, e tem dificuldade em colocar isso em palavras. Dramas miúdos de uma menina, moça e mulher muito simples que sofreu em silêncio durante vários anos e a muito custo se tornou dona do próprio destino.

Lembrei da minha avó e de suas histórias nebulosas, ambas sofrendo em silêncio suas dores de mulher em relação ao pai e aos homens em geral. Glória procurando colocá-las em palavras, transformá-las em texto escrito na velhice, enquanto minha avó as levou para o túmulo... deixando para o neto o “compromisso” de um dia esclarecer o que houve. O neto que sintonizou com o seu olhar enfeitiçado, seus ares às vezes distantes e chorosos, enquanto escutava radionovelas na cozinha, lavando a louça.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Galeria dos Lanceiros

 

Quem foi a Florença certamente andou pela Piazza della Signoria, bateu os olhos nas esculturas da Loggia dei Lanzi (Galeria dos Lanceiros) e talvez tenha se espantado com a violência das esculturas. São impactantes, belas e inesquecíveis.

Galeria dos Lanceiros. Ao fundo, "Perseu", de Cellini.

Perseu com a cabeça decapitada da Medusa, Hércules sentando o porrete no centauro Nessus (que antes tentara seduzir a sua esposa Dejanira), Pirro sequestrando Polixena, com o irmão dela morto aos seus pés, enquanto Hécuba (a mãe da jovem) se arrasta agarrada às pernas do guerreiro aqueu, mais o fabuloso conjunto escultórico do rapto de uma sabina. Um romano agarra e ergue no ar uma jovem sabina (para depois levá-la para sua cama, na sua humilde choupana, como eram as habitações dos primitivos habitantes de Roma), enquanto um musculoso sabino se prosta, vencido, aos seus pés.

"Rapto da Sabina", de Giombologna. 

Violência pra mais de metro, se poderia dizer. Heróis da mitologia greco-romano se movimentando sem freios e cumprindo trajetórias de crueldade, representados por brilhantes artistas: Benvenuto Cellini, em “Perseu” (1554), Pio Fedi, em “Rapto de Polixena” (1865), Giambologna, em “Hércules em luta com o centauro Nessus” (1599) e “Rapto da Sabina” (1583).

"Hércules em luta com o centauro Nessus", de Giombologna
e Pietro Francavilla.

Em “Hércules em luta com o centauro”, Giambologna teve a colaboração de Pietro Francavilla, uma informação geralmente esquecida nos livros de história da arte, mas não no quadro/legenda da galeria, indicando títulos, datas e autorias das esculturas.

Pois eu visitei Florença num dia frio e ensolarado de fevereiro de 2017, entrei nessa galeria, ergui os olhos justo para o “Rapto da sabina” e levei um susto. A beleza da escultura (os corpos nus em movimento, em luta, em completa tensão) me fisgou e demorei a entender o que estava vendo. Várias lembranças, como um thriller de filme, passaram pela minha cabeça. Muito além de apreciar uma obra-prima da arte ocidental eu estava contemplando a representação de uma lenda da fundação da Roma antiga... dessas que os guris da minha geração, criados na sala escura dos cinemas, tomaram conhecimento na infância.

“Rapto das sabinas” (1961) foi um desses filmes do cinema italiano (pródigo, naquela época, em enfocar temas do Mundo Antigo) que passava nas matinês do Cine Guarany, em Pelotas, e que eu assistia com a maior seriedade. Eu ia a essas sessões de cinema com meu pai e o cravava de perguntas na saída. Queria saber detalhes da trama, dos personagens, do registro histórico, e o pai se esmerava em responder. Quando chegávamos em casa, ele ia na estante consultar alguma enciclopédia, abria o volume na minha frente, lia trechos, me mostrava gravuras e minha imaginação alucinava. Um mundo inteiro se desenhava aos meus olhos, indicando o início de uma viagem que venho realizando até hoje.

No caso do rapto das sabinas, o impacto foi tremendo. Um episódio brutal, dado como verdadeiro pelo historiador Tito Lívio (e assim entendido pelo menino que eu era), mas inegavelmente uma lenda. Roma vivia os seus primórdios, era governada por Rômulo, o primeiro dos seus reis, e faltavam mulheres para aquele bando de homens selvagens que queriam formar um reino. Precisavam de mulheres que servissem de esposas, mães, e que garantissem a consolidação e crescimento do povoado. A solução foi realizar uma festa, convidar as famílias das aldeias próximas (habitadas pelos Sabinos) e, a um sinal determinado de Rômulo, capturar as mulheres e expulsar os seus pais, maridos e irmãos. Um rapto, uma violência. A formação de uma grande cidade (de um dos esteios da nossa civilização) a partir do aprisionamento de várias mulheres que, ao final (ao menos na lenda, na conversa de Tito Lívio) aceitaram a sua nova condição e passaram a conviver pacificamente com os novos maridos.

Na Galeria dos Lanceiros, em Florença, esse filme me passou pela cabeça. Me tocou o conjunto das violências representadas – cabeças decepadas, centauros massacrados, mulheres raptadas, violentadas – e fiquei fascinado. Embasbacado com o modo maravilhoso, artístico, como todo esse universo de fúrias & paixões ganhou vida naquele espaço. Por séculos e séculos, gerações de homens e mulheres se escandalizaram e se deliciaram com aquelas representações e eu era mais um nessa multidão, vivendo o espetáculo dos horrores dos primórdios da nossa civilização...

"Rapto de Polixena", de Pio Fedi.

Afinal, monstros precisaram ser vencidos, sacrifícios tiveram de ser realizados (Prolixena foi morta para que os navios aqueus tivessem bons ventos no regresso à Grécia) e mulheres sabinas urgiam ser raptadas de seus pais ou maridos para que Roma se erguesse. Ou, pelo menos, assim foi escrita e desenhada a História no nosso imaginário.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Malinowski na Avenida Osvaldo Aranha

 

Os trobriandeses, habitantes do arquipélago das Trobriand (no Oceano Pacífico, próximo à Nova Guiné), não estabeleciam nenhuma relação entre o esperma e a concepção dos bebês. Eles acreditavam que as crianças nasciam de um processo que hoje chamamos de partenogênese, isto é, sem que o óvulo feminino fosse fecundado. Segundo suas crenças, os filhos entravam pela cabeça das mulheres, encarnados num espírito chamado Waiwaia, desciam até o ventre e, a partir daí, iniciavam a gestação. Os homens eram dispensáveis nesse processo.

Isso é o que relata Bronislaw Malinowski, que estudou esse povo na década de 1910 (durante a Primeira Guerra Mundial), e que tomei conhecimento nas aulas de Antropologia, quando era estudante de História. Malinowski se propôs a entender o ponto de vista dos nativos, procurou reproduzir o seu entendimento do mundo e a professora dava aulas apaixonadas a respeito do método criado por ele: a etnografia. Um método que pretendia um mergulho no universo cultural dos povos analisados. Ou, ao menos, uma tentativa de aproximação e envolvimento com as culturas encontradas fora do eixo da Civilização Ocidental.

Malinowisk com os nativos de Tronbriand.
Fonte: Wikipédia. 

Encerrada as aulas, eu saia com um colega (Aléxis Borloz) a caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha (o curso funcionava no Parque da Redenção, só se transferiu para o Campus de Viamão em 1977) e divagávamos a respeito do assunto. Os povos primitivos (“selvagens”, como muitas vezes se falava) nos encantavam. Nós nos sentíamos atraídos por tudo que se distanciasse da nossa civilização de matriz europeia, visto por nós como “decadente”. Além do mais, esses povos primitivos encontrados pelos europeus ao longo dos séculos XIX e XX (como os trobriandeses) se tornaram referência para conhecer os grupos caçadores-coletores do Paleolítico. Funcionavam como uma espécie de guia para outras formas de organização sociopolítica, anteriores à Grécia e Roma. Indicavam, por exemplo, sistemas matriarcais, modelos de organização de poder nos quais as mulheres não estavam excluídas. E crenças como essas, que omitiam a participação dos homens na gestação dos bebês, colaboravam para estabelecer a centralidade das mulheres na organização familiar e política.

Conversas empolgantes, ao longo da Avenida Osvaldo Aranha, na saída das aulas. Verdadeiras discussões a respeito das quais mais recordo o entusiasmo do que qualquer outra coisa. Eu andava a ler “O segundo sexo”,  de Simone de Beauvoir (sem concluir o último volume), folheava “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de Engels, e, de forma mais sistemática, estudava as abordagens de Gordon Childe (autor obrigatório nas disciplinas de Pré-história e Antiguidade) a respeito das revoluções Neolítica, Urbana e o surgimento das Civilizações. Misturava isso com Malinoswski (sem ler “Os Argonautas do Pacífico” do início ao fim) e falava, discutia, polemizava com meu amigo.

Os homens demoraram a compreender que o sêmen que eles ejaculavam durante a relação sexual tinha papel na gestação e isso teve consequência na organização social. Eles só descobriram a sua função quando passaram a domesticar os animais (durante a Revolução Neolítica), observá-los em cativeiro e se dar conta de que, se não acontecesse o acasalamento, nada de surgir novas ovelhas, novos cabritos e bezerros. Uma observação que contribuiu para reorganizar a estrutura de poder nas sociedades de agricultores que então construíam aldeias, cidades, estabeleciam distinções sociais e desigualdades. Um processo muito complexo no qual os homens se impuseram perante as mulheres, subordinando-as, tornando-as inferiores a eles, e “se achando”. Aos poucos, substituindo o matriarcado pelo patriarcalismo...

Conversa que não tinha fim entre os jovens estudantes que éramos. Até Érico Veríssimo entrava em pauta, por meio da crítica de Floriano Cambará, personagem de “O tempo e o vento”, a respeito da sociedade machista do Rio Grande do Sul. Uma paixão que compartilhávamos, isto é, o gosto pela obra de Veríssimo.

No início dos anos 80, o meu amigo defendeu dissertação no Mestrado de Antropologia, na UFRGS, sobre a Contracultura em Porto Alegre e o surgimento dos "malucos", jovens de comportamentos desviantes (como ele procurara ser). Eu tentei ingresso no mesmo curso, não fui classificado e encarei o Mestrado em Letras, na PUC, defendendo dissertação sobre o Grupo Quixote, um grupo literário porto-alegrense. Caminhos diferentes, mas que, de alguma maneira, tiveram origem nas observações de Malinowski a respeito dos trobriandeses, nas suas crenças sobre a gestação de bebês e as diferentes formas de se inventar a vida. Caminhos que fomos criando, enquanto batíamos pernas e conversávamos pela Avenida Osvaldo Aranha.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Sonhar com Paris

 

João Alberto completou 70 anos e pertence a uma geração que estudou francês no Ginásio e no Curso Clássico. Cedo ganhou familiaridade com o imaginário francês e passou a admirar seus artistas. Leu Baudelaire, Flaubert e Maupassant (em tradução), assistiu aos filmes de Godard e Truffaut, e sonhou em ser poeta. Até fez alguns poemas e ganhou concurso literário quando estudante. Mas um primo escritor lhe avisou que a coisa não era fácil e ele guardou a literatura para os finais de semana e, por fim, a esqueceu.

Dedicou-se a advocacia, abriu escritório e ganhou dinheiro, o suficiente para possuir um apartamento na cidade, uma casa na praia, trocar de carro regularmente e até financiar o da esposa. Deu vida boa para os três filhos e eles puderam cursar a universidade sem trabalhar e só sair de casa só quando tiveram renda para bancar a própria sobrevivência. Com o seu talento para as letras jamais conseguiria coisa igual.

Mas aos 70 anos se deu conta que um velho sonho não desaparecera: conhecer Paris. Navegar pelo Sena como os personagens de Maupassant, cruzar na rua por mulheres fascinantes como nos poemas de Baudelaire, amar num quartinho minúsculo como num filme de Godard. Viajara pouco, sendo Buenos Aires e Cancún os seus únicos destinos no exterior, esse último devido à insistência da esposa, que dissera que “todo mundo conhece, é maravilhoso”.

Naquela viagem a Cancún, aos 60 anos, se deu conta que perdera a paixão pela vida e entrara em outra etapa da existência. Gostava de trabalhar, isso sim, e eventualmente lia algum romance. Naquela temporada mexicana, fizera um sexo protocolar com a esposa e depois a assistira caminhar pelo quarto, abrir as cortinas para o mar do Caribe e a ouvir falar de outras viagens que precisavam realizar.

– A Europa, João Alberto, aquele tour que sonhamos tantas vezes: Lisboa, Madri, Paris.

– Não, eu não sirvo para isso – ele disse, sentando-se na cama, servindo-se de uma garrafa de vinho branco mergulhada num balde de gelo. – Vai com as amigas, tu vais te divertir mais. Eu virei um chato.

– Um acomodado, isso sim. Um velho, muito antes da hora. Tu podias reagir.

Ele riu e não falaram mais no assunto. Ela viajou para a França, Itália e Egito, sempre com as amigas, enviando cartões postais no princípio (como ele pedira) e depois apenas fotos pelo WhatsApp.

Agora, com 70 anos nas costas, João Alberto retoma um velho sonho de estudante, mas não quer a companhia da esposa. “Uma viagem romântica”, ele imagina, com uma companhia que lhe acenda antigos ardores. Pensou encontrar isso em Rosângela, uma cliente de 47 anos, que ele atendeu num caso de separação litigiosa, e tem conversado com ela a respeito. Uma noite eles beberam espumante no apartamento dela, fizeram amor e ele recitou Baudelaire. O francês saiu estropiado, mas lembrou-se da tradução e ela o abraçou com um carinho inédito para ele.

“Minha doce irmã, / Pensa na manhã / Em que iremos, numa viagem / Amar a valer, / Amar e morrer. / No país que é a tua imagem! / (...) / Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor.”[1]

Assistindo a um filme na Netflix descobriu que há congressos acadêmicos na área do Direito, na Universidade de Sorbonne, e inventou que é este o seu próximo passo: a inscrição num evento universitário, o pretexto para a almejada viagem. Falou com um dos sócios do escritório e ele, que é professor universitário, ficou de lhe acertar os detalhes.

– Claro que não iremos juntos – ele avisou Rosangela. – Eu irei primeiro e te esperarei no Charles De Gaulle. Reservarei um quarto num hotel de Montemartre, um passeio no Bateaux Mouches, um jantar na Torre Eiffel e as obrigatórias visitas ao Louvre e ao D’Orsay.

Rosangela riu e não soube se devia acreditar ou não. “É um farsante tirando onda comigo”, ela pensou, “mas vou embarcar na fantasia. Por que não?” Sentiu que aqueles planos o entusiasmavam, o tornavam mais ardente na cama e era disso que precisava. Rosangela explicou que não estudara francês na escola – “Uma disciplina que a reforma educacional suprimiu” –, que sempre preferiu o universo da língua inglesa, conheceu Nova Iorque, Miami, mas apreciava a cultura europeia.

– Tudo que tu falas é novidade para mim. Estou aprendendo contigo.

João Alfredo se alvoroçava se imaginando em Paris e lembrava o adolescente que fora frequentando a biblioteca da escola para ler a respeito da cultura francesa. Sentia voltar a antiga admiração pelos assuntos tradicionais do universo francês – o escândalo provocado por “Flores do Mal”, o processo judicial causado por “Madame Bovary”, a revolução desencadeada pelos impressionistas – e achava graça que isso ainda fazia sentido para ele... Sentia também a força do sexo lhe vir renovada (turbinada, é claro, por um comprimido azul) e racionalmente decidiu manter a fantasia da viagem até quando pudesse suportar. Talvez fosse o último delírio da sua vida e não se impediria de sonhar. Cultivaria com zelo e carinho esse projeto de viagem com a amante, cuidando para não abalar seu casamento, a vida que construíra com empenho e sacrifício. Nem a esposa gostaria disso e lhe agradeceria muito se a mantivesse ignorante em relação ao assunto.



[1] “O convite à viagem”, tradução de Ivan Junqueira.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

A criança da casa

 

Tornei-me um usuário de aplicativos de transporte e às vezes converso com os motoristas. Nem sempre. Não tenho um padrão para isso. Mas gosto quando acontece uma conversa e pintam boas histórias.

Semana atrás foram os córregos que existiam em Porto Alegre e, hoje, estão canalizados. No bairro Boa Vista, por exemplo (onde moro atualmente), até o início dos anos 1980 havia um pequeno arroio com peixes e a gurizada usava para tomar banho, me garantiu um motorista. Ele era um desses garotos. Depois veio o Shopping Iguatemi, a abertura da Avenida Nilo Peçanha, o fim dos chalezinhos de madeira, a construção de edifícios bacanas, a canalização do arroio e tudo mudou. Difícil rastrear por onde passava esse “veio de água” a que o motorista se referiu.

Outro dia foram as novas relações que se estabeleceram entre os humanos e os animais domésticos. “Hoje é o gato que manda lá em casa”, afirmou o motorista. “Ninguém doma um bicho desses, é diferente dos cachorros”, ele adiantou, dizendo que tem três cães, um gato, e sabe bem o que é isso. “Os cachorros são mais obedientes”, garantiu.

Eu perguntei se ele era casado, se morava em casa e tinha filhos e ele respondeu item por item. Era casado, morava numa casa com pátio e não tinha filho. “Eu sou a criança da casa”, ele disse, “não tenho jeito pra cuidar um pentelho e a mulher entende isso”, arrematou.

A criança da casa... Puxa vida. Um homem que aparenta 40 anos e, ao que tudo indica, se nega a crescer. Eu não soube mais o que falar e ele continuou conversando. Perguntou se podia parar numa casa veterinária (precisava pegar um remédio para o cachorro salsichinha, que estava com dor na coluna) e eu disse que não tinha problema. “Não tenho pressa”, garanti. Ele estacionou, levou dois minutos para descer e trazer o medicamento, e depois continuou falando dos animais domésticos da sua casa. Adorava a bicharada.

“Com eles eu não me incomodo de dar toda a atenção do mundo. Mas com um filho eu não teria paciência. Criança é muito exigente. Já basta eu”, concluiu. E eu não prestei mais atenção no que ele falava. Fiquei imaginando qual seria a conversa da mulher. Que mulher aguenta um cara desses?, me perguntei. Deve ser outra apaixonada por cães e gatos, imaginei, senão não ia dar liga. Iam viver brigando.

Mas lembrei de uma tese de doutorado a respeito do comportamento feminino (de mulheres paulistanas de classe média) que apresenta uma série de casos de mulheres que nem perguntaram aos maridões se eles queriam ou não ter filhos. Engravidaram e pronto, os homens que assumissem os rebentos e aí que se tornassem pais ausentes, os desnaturados. Talvez a mulher do motorista, um dia, siga esse roteiro e, numa tacada, o destrone da sua condição de criança da casa. O homem vai enlouquecer.