Para quem foi professor de História e gastou horas tentando entender a tradição golpista dos militares brasileiros (assim como a sua aceitação por parcelas significativas da sociedade), esta é uma semana excepcional. Um acontecimento histórico, pois é a primeira vez que militares são julgados por atos golpistas.
Para ficarmos no chamado Período Democrático
(1945-1964), os militares tramaram contra os presidentes eleitos Getúlio
Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart e nunca foram julgados por isso.[1]
Obtiveram êxito em relação ao último, em 1964, quando o depuseram do poder (com
aceitação de boa parte da sociedade civil) e construíram um domínio de 21 anos. Em 2018, voltaram ao núcleo do Governo Federal com a vitória eleitoral de Bolsonaro, armaram a sua continuidade por vias antidemocráticos (após a derrota
eleitoral de 2022) e agora respondem por isso.
Acompanho no Facebook alguns amigos que migraram
para a extrema-direita e leio que “não houve golpe”, pois “não houve tanques
das ruas”. Bolsonaro e seus generais não lideraram nenhum assalto ao poder e os
manifestantes que acamparam na frente dos quartéis pedindo “intervenção militar”
e depois atacaram a Praça dos Três Poderes estavam apenas exercendo seus
direitos de livre expressão e manifestação política. Nada mais fizeram do que uma livre
manifestação democrática.
Procuro compreender a ginástica mental desses
amigos para esconder a sua inclinação golpista e autoritária... mas não
consigo. São contrários ao jogo democrático liberal (não aceitam o resultado
das urnas, são contrários às decisões do Judiciário), mas não se percebem dessa
maneira. Se entendo o que dizem, não se pensam golpistas, muito menos autoritários
e nem de longe alinhados à tradição autoritária das Forças Armadas brasileiras. Quanto ao velho fascismo de Mussolini, então, se percebem completamente desvinculados.
Eu converso com uma colega (na faixa dos 70 anos) e
ela revela que não torce pela condenação de Bolsonaro e seus generais. Pergunto
se ela não se incomoda com a ideia de golpe de Estado tal qual foi arquitetado por Bolsonaro & sua trupe de generais e ela diz que “Lula é muito pior”. Não
explica o que é esse “pior” e recordo de uma amiga (namorada de um bolsonarista também idoso) minimizando os crimes políticos de Bolsonaro. “Seria
melhor que ele tivesse fugido”, ela diz, “para evitar essa confusão toda”. O namorado
reúne os amigos na sua casa e passam horas discutindo “a ditadura da toga”, “a ilegalidade
do julgamento”, “a falta de decência desse governo corrupto que afunda a
economia do país” e “o caos que se tornará o Brasil com a condenação e prisão de Bolsonaro”.
Respeito às regras da democracia liberal é o que
menos importa na cabeça dessa gente. Para esse pessoal, articulação de uma tomada
do poder por meios não democráticos é apenas “uma narrativa da esquerda”. Uma conversa
que me faz lembrar da velha direita dos anos 1970, que se assumia autoritária,
entendendo que esta é também uma opção civilizacional (tal qual teorizava o velho fascismo). O presidente Ernesto
Geisel, com seu projeto de “democracia conservadora”, não escondia isso.
“As massas populares não estão preparadas para a
democracia”, me falava um velho senhor, no final dos anos 1970, esgrimindo
argumentos que remontavam à antiga Grécia e a Platão. Hoje, talvez ele
defendesse a tentativa de golpe de janeiro de 2023 como uma alternativa
pragmática para deter o avanço da esquerda, mesmo uma esquerda democrática (que
chegou ao poder pela via eleitoral), pois, afinal, o que importa é o domínio das
classes altas, melhor preparadas para o exercício do poder ou coisa que valha.
O recém lançado livro do historiador Carlos Fico, excelente estudo sobre o autoritarismo das Forças Armadas brasileiras. Obra para ler e se estarrecer com a sua atualidade. |
[1] “Período
Democrático” é como os anos de 1945 a 64 são denominados em muitos manuais de
História do Brasil, como o de Bóris Fausto, publicado pela EDUSP em 1996 e ainda reeditado.