quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Guerras e revoluções (2)

 

A guerra é uma atividade masculina e as mulheres estão excluídas desse campo. Desde os tempos antigos foi assim, afirma a maioria dos historiadores, apesar de já haver contestação a respeito e os arqueólogos (em especial as arqueólogas feministas) estarem encontrando vestígios de mulheres guerreiras entre os citas, os celtas e os vikings.[1] Seja como for, fomos criados ouvindo a cantilena de que o exercício das armas é um “privilégio dos homens”. Só os homens vão para a guerra, porque eles são mais capazes, superiores, patati-patatá, e assim até o final dos tempos.

Naquelas rodas de conversa que vivi durante os verões da infância (os mais velhos sentados em cadeiras na calçada, na frente de suas casas, repassando histórias antigas), impossível imaginar mulheres guerreiras nas peleias sul-rio-grandenses. Se alguém tocasse no assunto, rapidamente alguém saltaria vociferando:  “Isso é coisa de macho, mulher não foi feita para essa brutalidades, a sua estrutura biológica e psicológica não a prepara para a atividade guerreira”.

Pois lembrei dessa conversa lendo um ensaio de Virginia Woolf publicado em 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando se respirava a possibilidade de um novo conflito bélico na Europa.[2] A escritora assistira ao entusiasmo masculino diante da eclosão da Primeira Guerra, a mortandade que veio na sequência, a incapacidade da sociedade da época em enveredar para outras formas de comportamento, sem a valorização do patriotismo guerreiro, e estava preocupada com essa corrente militarista, alimentada por “um hitlerismo subconsciente no coração dos homens”.

Na feliz síntese da autora, a guerra era um campo exclusivamente masculino, fonte de grandes emoções para os homens e meio de vazão da virilidade. Os homens seriam incapazes de desmontar essa armadilha criada por eles mesmos (a perspectiva da guerra, moldando seus corpos e mentes, levando-os à crueldade e à morte) e só as mulheres poderiam mudar isso. Virginia Woolf via o surgimento de um número crescente de mulheres independentes (mulheres instruídas que trabalhavam e ganhavam a própria vida), desvinculadas dos valores patriarcais e, por isso mesmo, com condições de enfrentar a tradição militarista que o poder masculino enaltecia. Mulheres independentes capazes de desmontarem a ordem patriarcal e, na sequência, a ênfase na guerra como atividade necessária para o exercício da virilidade.

Em 1940, durante um bombardeio nazista em Londres, a escritora refletiu a respeito do assunto (ao som das bombas explodindo pela cidade) e concluiu que eram apenas homens os que estavam lutando naquele momento, em especial os pilotos da RAF e os da Luftwaffe. As mulheres poderiam também entrar na luta (deveriam, segundo a autora), mas com outras armas: a da persuasão e da reeducação dos valores dominantes. Reeducação não apenas dos homens, instintivamente levados às práticas militares (prisioneiros dessa tradição), mas também das mulheres que aderiam aos valores patriarcais (as que encaravam o casamento como profissão e, dessa maneira, permaneciam vinculadas aos valores masculinos).

Lido hoje, tive a sensação de uma proposta muito otimista e irrealizável. As mulheres, só por serem mulheres e independentes/críticas da lógica patriarcal, seriam capazes dessa transformação radical? Os homens topariam ouvi-las, veriam sentido em escutá-las? Segundo a autora, essas mulheres transformariam a sociedade por meio de uma educação na qual as artes do domínio, da guerra e da acumulação de riquezas seriam substituídas por valores e práticas de caráter humanístico. Uma conversa bonita, é verdade, mas fantasiosa. Pensando em como a roda do mundo tem girado, com a guerra na Ucrânia, o massacre em Gaza e esta "guerra de baixa intensidade" protagonizada pelos EUA no litoral da Venezuela e Colômbia, só vejo a lógica militar se impondo e, para sustentar esse militarismo, o tradicional discurso da força, do domínio e da valentia, tal qual como eu ouvia quando criança.

A guerra não é mais uma prática exclusivamente masculina, as mulheres estão sendo incorporadas nas forças armadas de diversos países, e continua no horizonte das disputas pelo poder sobre territórios e riquezas. O guri que eu era e escutava aquelas gauchadas ocorridas nas revoluções de 1893 e 1923 tinha motivos para se assustar. Difícil escapar desse lado sombrio da humanidade.



[1] PATOU-MATHIS, Marylène. O homem pré-histórico também é mulher: uma história da invisibilidade das mulheres. RJ: Rosa dos tempos, 2022. Segundo a autora, já dá para contestar a consagrada ideia de as amazonas eram um mito grego. “Hoje, mais de mil túmulos citas e de tribos aparentadas (sármatas) foram descobertas da Bulgária à Mongólia e, em certas necrópoles, as mulheres armadas ocupam cerca de 37% do total de túmulos.” (p. 198)

[2] WOOLF, Virginia. As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra: patriarcado e militarismo. BH: Autêntica,  2019.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Guerras e revoluções (1)

 

Na década de 1960, eu morava na zona do porto, em Pelotas, e no verão, ao anoitecer, as pessoas colocavam cadeiras na calçada. Os mais velhos se reuniam para conversar e eu gostava de ouvir suas histórias, especialmente quando o assunto enveredava para as guerras e revoluções que ocorreram no Rio Grande do Sul. Criança, eu achava que aquilo tudo acontecera há pouco tempo e fora até presenciado & vivido pelo meu pai, meu avô e os vizinhos.

Era o período inicial do Regime Militar, de caça e perseguição aos comunistas, e levei anos para distinguir esses acontecimentos recentes daqueles outros, a Guerra da Cisplatina, a Revolução Farroupilha, a Revolução Federalista e a de 1923. Guerras e revoluções se colocavam diante de mim como uma herança histórica que se prolongava no presente e exigiam resposta. Eu não escaparia dessa experiência, imaginava. A roda do mundo era essa: guerras e revoluções a exigirem dos homens comprometimento e valentia. O serviço militar como a primeira prova a ser enfrentada.

– Aí tu vais ver o que é bom pra tosse – alguém dizia, indicando o que me esperava no futuro: o aprendizado com as armas, as sofridas jornadas em manobras militares e o domínio do corpo e da mente para o enfrentamento militar com o inimigo. Experiências limites nas quais se confirmaria (ou não) a minha virilidade.

Minha avó colocava a revista Cruzeiro na roda e apontava as fotos dos soldados brasileiros (por volta de três mil), enviados pelo presidente Castelo Branco, para participar de uma intervenção militar na República Dominicana, liderada pelos EUA/OEA. Ela atualizava o tema “guerras e revoluções”, tirava-o do século XIX e início do XX, e trazia-o para a contemporaneidade.

A República Dominicana fora “tomada por comunistas”, segundo as proclamações da OEA (Organização dos Estados Latino-Americanos), e era preciso colocar essa gente a correr, “salvar os valores da Civilização Ocidental”. Ouvi muito essas lorotas. Essa invasão durou pouco mais de um ano (1965 e 66), provocou dois mil mortos e consolidou uma ditadura que reprimiu as forças democráticas populares (difícil chamá-las de comunistas). Minha avó temia que o seu filho (então capitão do Exército) fosse enviado para a ilha caribenha e tratava do assunto com olhos aflitos.

Por outro lado, meu pai cochichava com minha mãe a respeito do irmão brizolista, que desaparecera logo após o Golpe Militar de 1964, “envolvido na subversão”, e só um ano depois deu as caras. Nem a família sabia por onde andara. Fora preso, desaparecido, inclusive numa fortaleza na Baía da Guanabara (o Forte da Laje, ele me contou anos mais tarde), e apareceu num quartel de Pelotas, onde fui visitá-lo com uma das suas irmãs (a tia Landa).

Guerras e revoluções da história sul-rio-grandense eram assunto nas rodas de conversas, nos verões da minha infância, e se atualizavam com o Golpe Militar, as perseguições políticas, e o alinhamento brasileiro aos Estados Unidos na “luta contra o comunismo”. Criança, eu fui instigado pelo tema e levei anos para entender do que se tratava. Além dos fatos políticos-militares, eles indicavam a construção de um comportamento masculino ao qual eu estava fadado a cumprir. Um dia, os acontecimentos iriam exigir coragem e valentia daquele menino franzino que eu era. Crescer, tornar-se um homem, era aprender a manejar armas (uma faca, um revólver, um fuzil) e saber arriscar a vida em combate. Haja capacidade para tantos desafios.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Hermes, motorista de aplicativo

 

Fiz uma viagem de Uber até o Shopping do Pontal e o motorista me falou da sua vida. Li no aplicativo que ele se chamava Hermes, perguntei se os seus pais gostavam de mitologia grega e ele disse que não. O nome era uma homenagem a um tio. Mas disse que há uns anos atrás namorou uma professora de História e ela lhe falou a respeito dessa divindade do Mundo Antigo.

Era uma mulher sofisticada e culta, recém separada, e uma amiga comum fez uma ponte entre os dois. “Ela já teve dois casamentos, que eu não entendi direito como terminaram, mas é boa pessoa, tu vais ver”, ela me disse.

Hermes foi conferir a mulher que, “apesar dos 54 anos, estava bem na foto" e gostou. Tiveram um relacionamento rápido e ele aprendeu coisas sobre mitologia grega que nem suspeitava. Afinal fora um menino de cidade do interior, estudara mal e porcamente em escolas duvidosas e pouco sabia de História, quanto mais de História Antiga. Quando ela lhe contou que Hermes era o deus grego do comércio, protetor dos viajantes, ficou lembrando do seu tio, um simples caminhoneiro, carregando a madeira das matas da região missioneira para tudo quanto era lugar. Um negocião, na época.

“Meu nome é por causa desse tio, não tem coisa alguma a ver com mitologia. Meu velho gostava dele. E gostava também de política, me puxando mais tarde para o partido dele e botando pilha pra eu entrar na peleia, coisa que eu até achei que ia dar certo. Mas me dei mal”, ele explicou. Quando namorou a professora, estava saindo dessa fase da política. Um dia foi para a casa dela (uma casa que fora do pai dela, comprada com muito suor), bebeu demais, os dois sentados numa varanda que dava para um pátio arborizado, e foi aí que ele pôs tudo a perder entre os dois.

“Ela era complicada, não beijava direito, não se entregava. Eu pensei deixá-la mais relaxada com um pouco de bebida e a estratégia deu errado. Acabei tomando um porre, dormindo no sofá da varanda, enquanto ela se fechava dentro do antigo quarto do pai dela, puta da vida comigo”, ele falou, rindo.

Tomei nota dessa história depois que cheguei ao meu destino (numa mesa de cafeteria) e agora repasso nessa crônica. Anotações a respeito de Hermes, que um dia militou na política partidária, não engrenou (não conseguiu um cargo, uma função remunerada, uma fatia do bolo) e hoje é motorista de aplicativo. Sabe que seu nome remete a uma divindade grega, condutor de viajantes pelos mais variados caminhos, e às vezes desconfia que está, enfim, cumprindo o seu destino: o de conduzir passageiros pelo mundo, mais especificamente pela cidade de Porto Alegre.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Pelotas, Segunda Guerra Mundial

Terminei de ler “Trincheira tropical: a Segunda Guerra Mundial no Rio”, de Ruy Castro (Cia. das Letras, 2025,  414 p.) e lembrei do que meus pais falavam a respeito do conflito mundial. Eles nasceram na década de 1920 (o pai, em 1924; a mãe, 1925) e eu gostava de os ouvir falar a respeito dessa guerra, que coincidiu com o tempo em que eram jovens.

O livro de Ruy é centrado na cidade do Rio de Janeiro, mas remete ao que era vivido no Brasil inteiro e por isso a associação. Meus pais viviam em Pelotas e igualmente experimentavam a ditadura do Estado Novo (1937-45), a simpatia de muitas figuras do governo pelo nazi-fascismo e a difícil transição da política externa brasileira de uma posição pró-Eixo para uma adesão efetiva ao bloco dos Aliados (EUA, Grã-Bretanha, URSS).  

Em agosto de 1942, quando ocorreram os afundamentos de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães na costa do litoral brasileiro, minha mãe tinha 16 anos, já era professora primária e lecionava no Círculo Operário. “Alunos terríveis”, ela contava. Sabia da guerra na Europa “porque todo mundo falava”, mas não tinha uma ideia clara do conflito. Só compreendeu mesmo muito mais tarde, lendo livros e assistindo filmes.

Quando presenciou as depredações de lojas e residências de alemães e italianos que ocorreram na cidade (uma reação da população diante do afundamento de navios mercantes brasileiros por submarinos do Eixo), ficou horrorizada. Nunca esqueceu a invasão da casa de uma das suas professoras da Escola Complementar, filha de alemães, uma solteirona austera que alguns passaram a chamar de “nazista”. Dizia que viu invadirem, depredarem a sua casa e saírem carregando latas de óleo que a professora guardava na dispensa. “Prova”, segundo os invasores, de que ela se preparava para a escassez de alimentos que ocorreria quando o Brasil entrasse na guerra.

“E eram figuras respeitáveis que faziam e diziam isso”, a mãe explicava, acrescentando que conhecia um dos “senhores” que saíra carregando uma lata de óleo da casa da professora. Uma cena que ficou gravada na sua memória e ela nunca conseguiu esquecer.

Meu pai, por sua vez, filho de imigrantes italianos que chegaram em São Paulo no final do século XIX, nunca tocava no assunto. Ouvia minha mãe falar e ficava mudo. Tinha 17 anos naquele fatídico agosto de 1942, estudava numa escola católica (Colégio Gonzaga) e deve ter sentido de perto a fúria dos brasileiros. Mas não falava. Nunca comentou o assunto.

O Brasil enviou soldados para a Itália em 1944, para enfrentar o nazi-fascismo, e disso ele gostava de falar. Do Quinto Exército Norte-americano, ao qual a Força Expedicionária Brasileira estava subordinada. Da tomada de Monte Castelo. Dos pracinhas. E dos descendentes de italianos que foram convocados, se preparam para a guerra e não chegaram a embarcar. Ele devia conhecer alguém.

Mas meu pai morreu em 1978 e não tivemos tempo de retomar o assunto, como fiz, várias vezes, com minha mãe. Um dia perguntei a ela sobre esses descendentes de italianos que foram convocados para a FEB, se o pai conhecia alguns deles e ela não sabia. "Havia certas coisas sobre as quais o teu pai não falava", ela me disse. "O que os italianos e seus descendentes viveram, enquanto o Brasil estava na guerra com a Itália, esse era desses assuntos em que ele silenciava." 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Giuseppe Garibaldi, anticlerical

 

Giuseppe Garibaldi foi revolucionário italiano do século XIX. Maçom, anticlerical furioso e republicano engajado na luta pela unificação italiana. Sua trajetória envolveu participações em guerras em dois continentes, na Europa (Itália e França), na América do Sul (Brasil e Uruguai) e é geralmente lembrado por isso. Um guerrilheiro.

Mas, no início do século XX, entre os imigrantes italianos e seus descendentes, na região de colonização do Rio Grande do Sul, ele era um símbolo do enfrentamento ao poder da Igreja Católica. Em Silveira Martins (Quarta Colônia da Imigração Italiana no RGS) a criação de um monumento a Garibaldi na praça central da cidade, em 1910, evidenciou isto. Foi uma afronta à igreja local e o pároco Schwinn acusou o golpe, anotando o nome de seus idealizadores e os denominando “garibaldinos”. Em torno do monumento, embates calorosos entre católicos e anticlericais.

Lendo uma biografia a respeito do personagem (Garibaldi: herói dos dois mundos, de Maurício Oliveira, Ed. Contexto, 2013) recordei as discussões a respeito de Garibaldi, no Brasil, em especial entre os imigrantes. Um tema que até hoje não me abandonou. Impossível deixar de escrever a respeito.

Garibaldi nasceu em Nice, em 1807, e se criou na beira do porto. (A cidade já fora italiana, naquele tempo pertencia a França e assim permanece até hoje.) Não teve educação esmerada, mas o pai (pequeno comerciante marítimo) garantiu-lhe alguns professores particulares e, com um deles, o menino aprendeu a admirar as glórias do Império Romano. Aos 17 anos, já trabalhando na marinha comercial, visitou Roma pela primeira vez e ficou impactado com a pompa das cerimônias religiosas contrastando com a pobreza da maioria da população. A experiência lhe provocou sentimentos contraditórios e marcou o início de uma obsessão: aquela deveria ser a capital do futuro Estado italiano.

Aos 27 anos (1834) envolveu-se numa tentativa de revolta no Reino da Sardenha (liderada pela recém-criada Jovem Itália, de Giuseppe Mazzini), quase foi preso, condenado a morte, e fugiu para a América do Sul. Deu com os costados no Rio de Janeiro, encontrou outros italianos exilados e se envolveu na luta de rebeldes republicanos da província do Rio Grande do Sul (a Revolução Farroupilha). Ganhou carta de corso, se tornou responsável pela criação de uma esquadra naval para os revoltosos (que nunca passou de três embarcações) e protagonizou feitos notáveis, como a tomada de Laguna.

Encerrada a sua participação na revolta (1841) seguiu para o Uruguai (nesta época, casado com Anita) e prestou serviços à República deste país na guerra contra Manuel Rosas (presidente da Argentina). Novos feitos militares e, inclusive, a admiração do comandante da força naval adversária.

Em 1848, voltou a Itália, acreditando que a conjuntura estava mais madura para a unificação.  Sua condenação fora suspensa pelo rei da Sardenha, que começava, então, a se movimentar por uma Itália unida. Garibaldi era visto como possível aliado, mas também alguém a temer devido ao seu republicanismo.

Era um tempo de revoltas liberais e nacionalistas por toda a Europa e uma delas aconteceu em Roma. Os revoltosos chamaram Garibaldi a participar, o revolucionário atendeu ao pedido e acabou enfrentando os exércitos da França e do Reino das Duas Sicílias que vieram acudir ao papa (restaurar o Estado Pontifício). Não foi derrotado, mas obrigado a fugir com seus soldados para salvar a pele. (Nesta fuga, morre a sua esposa Anita.)

 Garibaldi enfrenta um novo exílio e volta em 1860, convidado por revoltosos sicilianos a liderar um movimento contra o Reino das Duas Sicílias, talvez o maior feito da sua vida. Recebe o sinal verde de Vittorio Emanuele II (rei de Piemonte), mas não o seu apoio oficial. Segue em frente com seus “camisas vermelhas” (Legião Italiana), obtém vitórias militares estrondosas, toma Palermo, Nápoles e entrega todo o fruto desta conquista ao rei de Piemonte, o qual, colocando-o em segundo plano, cria o Reino da Itália.

A partir daí, sua estrela de revolucionário foi apagada. Não aceitou as prebendas que visavam apaziguá-lo (torná-lo um príncipe, por exemplo) e se retirou para a sua propriedade particular na ilha Caprera. Estava decepcionado, mas não deixava de ter planos, inclusive o de conquistar Roma, que considerava a capital ideal do novo Estado italiano. Fez tentativas nesse sentido, fracassou, foi preso, criando uma comoção internacional pela sua libertação. É nesta conjuntura que Alexandre Dumas organiza e publica as memórias do herói (Memórias de Garibaldi, Editora L&PM, 1999). Quase um romance folhetinesco.

Quando a tomada de Roma aconteceu, em 1870, o rei Vittorio Emanuele deixou-o de lado, pois não queria o novo estado contaminado pelo radicalismo anticlerical nem republicano.

Até o final de sua vida, Garibaldi permaneceu coerente com suas ideias. Furibundo em relação ao poder da Igreja. No leito de morte, xingava os padres. Apesar de forte sentimento religioso (herdado da mãe, a quem sempre admirou), detestava a religião organizada e via no padre “o mais atroz inimigo do gênero humano”. Enxergava os sacerdotes como “descendentes de Torquemada” (o célebre inquisidor da Espanha) e entendia que, “somente em estado de loucura ou grave ignorância”, alguém podia pedir proteção a essa gente.

Certamente era este Garibaldi que os imigrantes italianos do Rio Grande do Sul cultuavam: o anticlerical radical, que sonhava uma nação italiana unificada sem a interferência dos podres poderes papais.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Autoritarismo em questão

             Para quem foi professor de História e gastou horas tentando entender a tradição golpista dos militares brasileiros (assim como a sua aceitação por parcelas significativas da sociedade), esta é uma semana excepcional. Um acontecimento histórico, pois é a primeira vez que militares são julgados por atos golpistas.

Para ficarmos no chamado Período Democrático (1945-1964), os militares tramaram contra os presidentes eleitos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart e nunca foram julgados por isso.[1] Obtiveram êxito em relação ao último, em 1964, quando o depuseram do poder (com aceitação de boa parte da sociedade civil) e construíram um domínio de 21 anos. Em 2018, voltaram ao núcleo do Governo Federal com a vitória eleitoral de Bolsonaro, armaram a sua continuidade por vias antidemocráticos (após a derrota eleitoral de 2022) e agora respondem por isso.

Acompanho no Facebook alguns amigos que migraram para a extrema-direita e leio que “não houve golpe”, pois “não houve tanques das ruas”. Bolsonaro e seus generais não lideraram nenhum assalto ao poder e os manifestantes que acamparam na frente dos quartéis pedindo “intervenção militar” e depois atacaram a Praça dos Três Poderes estavam apenas exercendo seus direitos de livre expressão e manifestação política. Nada mais fizeram do que uma livre manifestação democrática.

Procuro compreender a ginástica mental desses amigos para esconder a sua inclinação golpista e autoritária... mas não consigo. São contrários ao jogo democrático liberal (não aceitam o resultado das urnas, são contrários às decisões do Judiciário), mas não se percebem dessa maneira. Se entendo o que dizem, não se pensam golpistas, muito menos autoritários e nem de longe alinhados à tradição autoritária das Forças Armadas brasileiras. Quanto ao velho fascismo de Mussolini, então, se percebem completamente desvinculados.

Eu converso com uma colega (na faixa dos 70 anos) e ela revela que não torce pela condenação de Bolsonaro e seus generais. Pergunto se ela não se incomoda com a ideia de golpe de Estado tal qual foi arquitetado por Bolsonaro & sua trupe de generais e ela diz que “Lula é muito pior”. Não explica o que é esse “pior” e recordo de uma amiga (65 anos, namorada de um bolsonarista, 71) minimizando os crimes políticos de Bolsonaro. “Seria melhor que ele tivesse fugido”, ela diz, “para evitar essa confusão toda”. O namorado reúne os amigos na sua casa e passam horas discutindo “a ditadura da toga”, “a ilegalidade do julgamento”, “a falta de decência desse governo corrupto que afunda a economia do país” e “o caos que tomará conta do país com a condenação e prisão de Bolsonaro”.

Respeito às regras da democracia liberal é o que menos importa na cabeça dessa gente. Para esse pessoal, articulação de uma tomada do poder por meios não democráticos é apenas “uma narrativa da esquerda”. Uma conversa que me faz ter saudades da velha direita dos anos 1970, que se assumia autoritária, entendendo que esta é uma opção civilizacional, tal qual teorizava o velho fascismo. O presidente Ernesto Geisel, com seu projeto de “democracia conservadora”, não escondia isso.

“As massas populares não estão preparadas para a democracia”, me falava um tiozão, no final dos anos 1970, esgrimindo argumentos que remontavam à antiga Grécia e a Platão. Hoje, talvez ele defendesse a tentativa de golpe de janeiro de 2023 como uma alternativa pragmática para deter o avanço da esquerda, mesmo uma esquerda democrática (que chegou ao poder pela via eleitoral), pois, afinal, o que importa é o domínio das classes altas, melhor preparadas para o exercício do poder ou coisa que valha.

Seja como for, há ventos novos no ar. Consolida-se em parte da população a defesa das instituições democráticas como elas estão codificadas na Constituição de 1988 e segue o barco. Que Bolsonaro e sua trupe golpista permaneça condenada e impossibilitada de atuar no front político.

O recém lançado livro do historiador Carlos Fico, excelente estudo
sobre o autoritarismo das Forças Armadas brasileiras. Obra para ler
e se estarrecer com a sua atualidade.


[1] “Período Democrático” é como os anos de 1945 a 64 são denominados em muitos manuais de História do Brasil, como o de Bóris Fausto, publicado pela EDUSP em 1996 e ainda reeditado.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Golpistas no banco dos réus

 

Bolsonaro nunca escondeu a sua inclinação autoritária. Quando ele era um simples deputado federal, medíocre quanto ao seu desempenho na Câmara Federal, mas incisivo na sua apologia ao Regime Militar e à repressão da esquerda em geral, eu o citava nas aulas de História da América Latina como uma excrescência do período das ditaduras dos anos 1960, 70 e 80. Entendia que era irreversível o processo de adesão (ou pelo menos de aceitação) das Forças Armadas latino-americanas em relação à democracia liberal (nisso incluído o jogo eleitoral, a posse do candidato eleito, fosse ele quem fosse) e via Bolsonaro como um tipo folclórico, a sombra de um passado tenebroso que jamais retornaria.

Como me enganei. Não entendia, por exemplo, que a grande maioria das Forças Armadas brasileiras não via problema na tortura e tomou como um ultraje as investigações da Comissão da Verdade nomeando os torturadores do Regime Militar, executores de uma prática fundamental no combate às oposições, em especial a esquerda armada. Não sabia que os militares ainda consideravam os mecanismos da tortura como arma legítima para o enfrentamento dos inimigos e a sala de tortura como uma espécie de campo de batalha no qual o inimigo pode ser combatido. Não entendia que as técnicas bárbaras de repressão continuavam no horizonte das Forças Armadas brasileiras.

Foi uma surpresa, então, quando os militares construíram a candidatura Bolsonaro, a excrescência autoritária. Fato que se evidenciou para mim com os tuítes do general Villas Bôas em abril de 2018.

Mas dizer que “se evidenciou" é um exagero. Passei a desconfiar. Eu não conseguia acreditar que os militares estavam almejando retornar ao núcleo do poder.

Seja como for, a partir daí, mudou minha percepção da cena política e me assustei. Assisti a extrema-direita exercitar as suas técnicas de militância nas redes sociais (que capacidade de atormentar um adversário!) e fiquei com medo. Exagerando, achei que a coisa um dia podia sobrar pra mim.

Às vésperas do 7 de setembro de 2021, quando escutei meus vizinhos comentarem “é agora, vamos calar o STF”, arrepiei. Os caras estão pensando em insurreição, pensei, o Estado burguês não dá conta das suas demandas, eles querem mais. Mas sempre achando que estava incorrendo em fantasia. Ora, o neofascismo se consolidando na Presidência da República! Até quando surgiram os acampamentos na frente dos quartéis, pedindo intervenção militar para impedir o Lula de tomar posse, após a derrota eleitoral de Bolsonaro em outubro de 2022, desconfiei que a coisa não era pra valer. Será que regrediremos a 1964? Não pode.

Vi meus vizinhos irem bater o ponto no acampamento na frente do quartel da 6ª Brigada de Infantaria Blindada (na avenida Borges de Medeiros, em Santa Maria – cidade onde, então, eu morava) e fui lá duas vezes com a máquina fotográfica para registrar o evento. Levei a máquina dentro da mochila, mas não tive coragem de usá-la. Achei que os manifestantes podiam me identificar como petralha e virem pra cima de mim. Não quis encarar. Uma pena, pois esse registro faz falta.

6ª Brigada de Infantaria Blindada (antigo 7º RI). Era nesse gramado,
à direita, que estava o acampamento bolsonarista pedindo intervenção militar.
Fonte: Brenner Santa Maria (2013).
 

Relembro tudo isso agora porque, enquanto escrevo, a tropa de choque dessa trama golpista está no banco dos réus e tudo indica que será condenada: os oito líderes da tentativa golpista: o ex-presidente, cinco oficiais altamente graduados (um da Marinha, quatro do Exército), mais dois civis, sendo um deles ex-diretor da ABIN. Pela primeira vez na história da República, militares golpistas com chances de seres presos. Um fato inédito "nunca antes visto na história brasileira".

Mesmo que venham a ser anistiado daqui a alguns anos - como sempre foram ao longo da República - é um fato a se comemorar. Quem preza o jogo democrático liberal tem diante de si um fato inédito. O Estado democrático burguês resiste ao ataque fascista.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Os eunucos negros

 

Sou desses turistas que não largam a máquina fotográfica. Ao viajar, vou registrando quase tudo o que vejo e muitas vezes caminho e já vou pensando no melhor ângulo. Olho, observo, planejo a foto, e depois volto para clicar. Mas às vezes deixo passar. Simplesmente observo o local, a paisagem ou o ambiente, muitas vezes incomodado por alguma coisa.

Pois foi justamente isso que aconteceu, quando visitei o principal palácio do antigo Império Otomano (o Palácio Topkapi, em Istambul, em 2022), e adentrei o espaço dos eunucos negros, o primeiro pátio do harém. Me deparei com os alojamentos desses escravos mutilados... e paralizei. Um cartaz indicava a sua importância no local: guardas e administradores das esposas, concubinas e odaliscas do soberano. Lembrei que, além do sultão, nenhum outro homem entrava no recinto e eles garantiam isso. Uma navalha cortara os seus pênis e testículos, e dessa maneira eles se transformavam em serviçais confiáveis aos olhos do sultão. Deixavam de ser uma ameaça e passavam a ser o quê, esses homens mutilados?

Os demais eunucos (os eunucos brancos, que também exerciam funções de guarda e administração em outros espaços do palácio menos importantes que o harém) não sofriam uma castração tão radical. Perdiam os testículos, ficavam com o pênis, e há quem diga que alguns conseguiam uma ereção.

Jogos de poder não são brincadeira. Ao se constituírem estraçalham corações, mentes e até corpos. Em certas circunstância, uns perdem as bolas; outros, as bolas e o pau.

Os eunucos negros eram trazidos da África (Sudão, Etiópia e Egito); os brancos, da região do Cáucaso (Geórgia e Armênia); e tinham tratamento diferenciado.

Pavorosa, a história dessa gente. A dos negros, então, absurda. Eles tinham sido meninos no Sudão e na Abissínia, escravizados e submetidos a essa cirurgia na puberdade (geralmente no Egito), cortados com navalhas de pouca precisão, “anestesiados” com álcool, ópio e compressas frias, cauterizados com ferro em brasas, e a maioria (entre 70 a 80%) morriam de infecção ou hemorragia. Os que sobreviviam eram levados a Istambul, ganhavam voz fina e geralmente ficavam obesos e disformes (neste último caso, devido ao desenvolvimento anormal dos ossos).

Alguns se tornavam chefes da guarnição dos eunucos e adquiriam um poder que os ombreavam a vizires e generais. Houve casos de eunucos poderosos e famosos, como Beshir Agha (durante o reinado do sultão Mahmud I, entre 1730 e 1754), mas a maioria apenas serviu ao sultão, engordou, rezou (eles se tornavam muito religiosos) e aprendeu a urinar de modo pouco natural para um homem. Pessoas mutiladas.

Foi essa história que me horrorizou e paralisou naquele pátio do Palácio Topkapi. Não fotografei o local. Pulei essa parte e a relembrei outro dia, quando pensava a respeito desses terrores masculinos: os da castração e que muitas vezes se efetivaram ao longo da História, na China, na Igreja Católica (para preservar as vozes agudas dos meninos, nos corais) e também no Império Otomano.

No episódio do passeio turístico pelo Topkapi, logo superei o espanto e as reflexões sombrias, pois o local é belíssimo. E, no imenso labirinto que é esse complexo palaciano (por volta de 400 quartos), me deparei com um salão imperial (com destaque para o trono sobre um estrado), de decoração luxuosa e primorosa, utilizado tanto para cerimônias oficiais quanto para o entretenimento das mulheres e do sultão. Que deviam se divertir à beça naquele local, protegidos por homens negros mutilados, sem pênis e sem testículos.

Salão imperial. Palácio Topkapi, Istambul.


terça-feira, 12 de agosto de 2025

San Martín, monumento nacional

 

É cacoete de professor de História: sou instigado por monumentos de praças e avenidas. Figuras equestres, então, me fisgam completamente. A de Bento Gonçalves, na Avenida João Pessoa, em Porto Alegre; a de Marco Aurélio, na praça do Campidoglio, em Roma; a de José de San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires. Sinto como se houvesse algo a decifrar. Entro no clima.

Esses monumentos de figuras histórias (geralmente homens, imperadores ou generais, que se destacaram na guerra e na política) não foram construídas à toa. São personagens que se transformaram em mitos e servem a propósitos grandiosos. Além do papel histórico que de fato exerceram (governando, comandando tropas), ganharam uma função simbólica a ser exercida para muito além de suas humanas e precárias vidas. Bento Gonçalves passou a encarnar os ideais autonomistas do povo sul-rio-grandense; Marco Aurélio, a grandeza do Império Romano conduzido com determinação e sabedoria; San Martín, a unidade do movimento de independência que resultou na criação do Estado Nacional argentino.

O modo como essas figuras humanas se transformaram em mitos e passaram a dominar o imaginário de uma coletividade, uma nação ou império, é assunto que arrasta historiadores e poetas e dá assunto para uma vida inteira.

Quando estive em Buenos Aires, dias atrás, logo no primeiro dia, caminhei com a minha companheira pela Calle Florida e fomos até a Plaza San Martín. Era um dia frio, ensolarado e de céu azul, e não deu outra: fiquei fascinado pela figura do herói platino, em bronze, montado no seu cavalo, a espada erguida, no alto e no centro da praça.  Escultura criada por volta de 1878 (ano do centenário de nascimento do herói), quando já estava consolidado Estado argentino (assim como iniciava a mitificação de San Martín), e a figura ainda irradia sua áurea de Libertador pelo local.

Monumento a San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires.

Este sentimento e curiosidade me acompanharam a viagem inteira e fiquei puxando a memória a respeito da sua figura histórica... atento às diversas referências feitas a ele nos mais variados logradouros públicos. Não há como escapar de San Martín, assim como, no Rio Grande do Sul, não deixamos de ouvir e ler os nomes de Bento Gonçalves, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.

José de San Martín foi filho de espanhóis (o pai era da elite administrativa da colônia), nasceu em Yapejú (1778), no atual norte da Argentina, e cedo sua família regressou a Espanha. Teve formação militar na Metrópole e se destacou nas guerras contra Napoleão na Península Ibérica. Envolveu-se com a Maçonaria e regressou a terra natal (1812) para lutar contra o domínio colonial, obtendo grande êxito nas campanhas militares que liderou, em especial no Chile e no Peru.

Curiosamente, depois de um encontro com Simón Bolívar, em Guayaquil (no atual Equador, em 1822), se retirou da cena política, se auto-exilou na França e lá viveu seus últimos anos. Morreu em 1850. Não há registros sobre a conversa com Bolívar, mas se supõe que os dois líderes (Bolívar, republicano; San Martín, monarquista) não se entenderam e o argentino abriu mão de tudo, deixando o campo livre para o seu aliado.

Minha viagem seguiu de Buenos Aires para Mendoza, fiz um passeio turístico pela Cordilheira dos Andes e, súbito, ouvi a guia anunciar que estávamos nas “rutas sanmartinianas”. Isto é, no famoso itinerário das tropas de San Martín na Campanha do Chile, etapa importante da guerra da independência: a de solapar o domínio espanhol na América. Vencer os realistas na Capitania do Chile (o que se concretizou nas batalhas de Chacabuco e Maipú) e depois avançar sobre o principal bastião da resistência espanhola, o Vice-reinado do Peru (o que também se efetivou em novas vitórias militares).

Caminhando no gélido vale da Cordilheira, me deparei com uma pequena ponte do século XVIII (Ponte de Picheuta, devidamente restaurada por arqueólogos de uma universidade local), utilizada pelas tropas de San Martín na Campanha do Chile. Por volta de 5.400 homens compunham o efetivo militar sob o comando do Libertador, a grande maioria arregimentada a força, precariamente vestidos e armados (muito distantes das representações gloriosas de soldados uniformizados presentes nos relevos magníficos dos monumentos públicos), e essa multidão atravessou aquela ponte. Soldados que pouco ou nada sabiam do que se passava na cabeça dos seus chefes militares. A plebe rude que dá a vida para a glória dos grandes generais.

Ponte de Picheuta, na Cordilheira dos Andes.

Resumindo: vivenciei naquele pequeno vale, nas margens do rio Picheuta, diante de outro monumento da guerra da independência, uma experiência muito distinta daquela que vivi na artística praça de Buenos Aires. Experiências que se complementam, uma delas encenada em bronze requintadamente moldada, a outra feita com pedra selada com argamassa. Numa delas o mito elaborado com sofisticação; em outra, o mito em estado mais cru, mais próximo ao horror que foi a guerra anticolonial, que se prolongou por longos quinze anos (1810 a 1825) e até hoje preenche páginas e páginas de livros, absorve historiadores e encanta turistas.

sábado, 9 de agosto de 2025

Vinho com gelo

 

Na primeira vez em que estive em Buenos Aires, em janeiro de 1977, o câmbio era tremendamente favorável à moeda brasileira e me chamaram atenção os baldinhos de gelo colocados nas mesas dos restaurantes junto com o vinho. Eu era estudante universitário, tinha pouca grana e quase nada sabia sobre consumo e fruição de vinhos. Foi a minha primeira viagem internacional.

Eu trabalhava há pouco tempo como balconista numa filial da Livraria do Globo (na Rua 24 de Outubro, em Porto Alegre) e uma amiga me convenceu de que “era agora ou nunca”. “Nunca mais teremos uma oportunidade dessas”, ela me disse, se referindo ao valor da nossa moeda frente ao peso argentino. Meu ganho mensal não passava de um salário-mínimo e ela garantiu que era o suficiente para uma semana.

Encaramos a viagem de ônibus, passamos por Chuí, Montevidéu e pegamos o aliscafo em Colônia.[1] Nossa hospedagem foi num modesto hotel próximo ao porto (decadente, naquela época; hoje, o reformado Puerto Madero) e achei ótimo. Pensáramos que “pintaria um clima entre nós”, mas não rolou e permanecemos amigos. Ela arranjou um namorado portenho (minha amiga não perdia tempo) e algumas vezes saíamos os três a peregrinar por praças e pizzarias. O rapaz tinha ligações com a esquerda estudantil, nos colocava a par do golpe militar ocorrido no ano anterior e, principalmente, das prisões arbitrárias que vinham acontecendo.

Eu estava concluindo o Curso de História, achava que entendia alguma coisa sobre as ditaduras militares na América Latina e hoje vejo que minha compreensão era rasa, muito rasa. Não fazia ideia da truculência dos órgãos de segurança, das torturas e dos desaparecimentos.

Na terça-feira retrasada, quando estava em Buenos Aires almoçando nas Galerias Pacífico (justamente abaixo dos famosos afrescos, no hall central), observei um senhor encher seu copo de vinho com cubos de gelos e recordei... essa primeira viagem ao mundo portenho e esse estranho costume: o gelo no copo de vinho. Não vi isso em nenhum outro lugar, nem em Buenos Aires nem em La Plata e Mendoza, e não avalio a abrangência dessa prática.

Em Mendoza, estive em três vinícolas sofisticadas (Vigil, Zuccardi e Catena Zapata) e, em nenhuma delas, houve referência a esse costume. Talvez uma esquisitice de alguns portenhos, imagino agora.

Vinícola Catena Zapata - agosto de 2025.

Tentei contar isso para minha companheira, mas não deu tempo. Tanta coisa para falar, comentar, que esse assunto se perdeu no caminho. Bebemos brancos e tintos (mais tintos do que brancos) e em nenhum momento algum garçom nos perguntou se queríamos gelo. Acho que perceberam que não éramos “bárbaros”.



[1] Não encontrei a palavra “aliscafo” nos dicionários Aurélio e Houaiss, mas era assim que se falava, quando não se queria dizer “ferry-boat”.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Apenas um turista na Argentina

 

Estive na Argentina durante nove dias e bati pernas por Buenos Aires, La Plata e Mendoza. Postei fotos no Facebook durante a viagem e um ex-aluno me perguntou se percebi as mudanças que o presidente Milei está causando no país. Respondi que não, pois era apenas um turista, viajando com minha companheira, desses que chegam de avião, ficam em bons hotéis e, no caso de Buenos Aires, vão a um balé no Teatro Colón, bebem vinho na Avenida 9 de Julio, almoçam no Puerto Madero e visitam museus de arte (o MALBA e o Museu de Belas Artes).

Puerto Madero, com a Puente de la Mujer ao fundo.

Se fosse a um evento acadêmico e conversasse com professores de universidades estatais, certamente saberia dos impactos da política presidencial na educação e na ciência. Afinal, segundo o noticiário, os salários dos professores foram arrochados e alguns estão debandando. A situação também é crítica na área científica e, só no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, quatro mil postos de trabalhos foram eliminados.

Enxugar a máquina pública é a palavra de ordem presidencial – “um gênio”, segundo um motorista que nos conduziu pelas vinícolas de Mendoza – e por volta de 10% dos funcionários públicos dançaram. Além da educação, ciência e previdência (a situação dos aposentados é terrível), a saúde pública também é alvo de cortes e cruzamos com manifestantes contrários a esta situação.

Em duas ocasiões, em La Plata e em Mendoza, nos deparamos com pequenos grupos de pessoas protestando contra um projeto de lei que atinge os profissionais que atendem deficientes. Em La Plata, atravessamos uma dessas manifestações em frente a um prédio do poder legislativo, o qual admirávamos pela beleza e monumentalidade, e súbito paramos para entender o que era aquela gente com cartazes. Dois dos manifestantes em cadeiras de roda.

Em Buenos Aires, minha companheira e eu fomos a Estación Constituición, pegar o trem para La Plata, e senti um descompasso entre o prédio monumental e o estado dos trens e da população. Achei os trens precários e os usuários, muito modestos, enquanto o prédio ainda lembrava o esplendor do período agroexportador. Uma impressão que já tivera vinte anos atrás, mas me pareceu pior. Vendo os vendedores que cruzavam os vagões (com produtos em caixas de papelão amarrados com cordões e em cestos de vime), tive a impressão de estar na Bolívia, presenciando uma cena “latino-americana raiz”, isto é, subdesenvolvida. Na volta, escolhemos o ônibus, que nos garantiram ser mais confortável e rápido (o que se comprovou integralmente).

Como disse ao meu ex-aluno, eu era apenas um turista. Desses que viajam com a companheira e privilegiam os bons momentos: um espetáculo no Teatro Colón (mesmo que seja nas galerias), uma garrafa de Malbec na Avenida 9 de Julio, uma caminhada noturna pela Avenida Córdoba e os desdobramentos felizes que essas vivências agradáveis produzem.

Milei e sua serra ultra neoliberal passaram ao largo. Só não esqueci de José Hernández e Domingo Sarmiento (autores de "Martin Fierro" e "Facundo", respectivamente), dos quais encontrei referências em praças, monumentos e até na conversa com um motorista de Uber, nem de Borges e Cortázar, diversas vezes presentes em livrarias e espaços de memória.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

As gurias do Rococó

 

No início da década de 1970, quando era estudante do Julinho (Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre), a professora de História da Arte dividiu a turma em grupos e cada um apresentou um período da arte ocidental: o Gótico, o Renascimento, o Rococó, e por aí vai. Não tenho certeza a respeito de qual escola artística meu grupo precisou dar conta (talvez o Barroco), mas as gurias que se sentavam a minha frente apresentaram o Rococó e disto jamais esqueci.

Eram quatro moças entre 16 e 18 anos (estávamos no segundo ou terceiro ano do Colegial) e duas delas eu achava excepcionalmente bonitas. Quando elas ficaram na frente da turma, na hora da apresentação, uma delas (de pele muito branca) abriu um enorme livro com reproduções de pinturas, mostrou o quadro “Madame de Pompadour”, pintado por François Boucher, e fiquei deslumbrado. Na minha fantasia de adolescente, minha colega se tornou a encarnação desse ideal de beleza aristocrática que frequenta nossos contos de fadas, romances e filmes.

"Madame de Pompadour" (1759), de François de Boucher.

Na verdade, as quatro integrantes do grupo passaram a ter atributos daquele estilo artístico que floresceu na corte de Luís XV, na França. E não apenas aos meus olhos, pois no conceito da turma elas se tornaram “as gurias do Rococó”. Eram suaves, graciosas e sensuais (como os trabalhos artísticos apresentados), cada uma ao seu jeito de simples meninas do colegial.

Estou exagerando? Certamente. No entanto foi desse modo que elas ficaram no meu imaginário. Não me apaixonei por nenhuma delas, mas como poeta aprendiz que era, aprendendo a versejar tanto quanto a admirar a Beleza (com inicial maiúscula), coloquei-as no meu panteão de beldades. Eu lia e relia Hermann Hesse e gostava muito de um conto de sua autoria, intitulado “O Poeta”, no qual o personagem preferia olhar a beleza de longe, como espectador solitário, a se envolver com ela.[1]

Dessa maneira, François Boucher, Jean-Honoré Fragonard e Antoine Watteau entraram no meu radar de interesse. Eu frequentava uma das bibliotecas da escola, numa sala no subsolo do bloco principal, com belíssimas coleções de arte, e as folheava com interesse. Alguns títulos eram em francês e eu lia com enorme dificuldade.

Hoje, é engraçado pensar que o adolescente que eu era (ainda envolvido com a Igreja Católica e, ao mesmo tempo, atraído pelo rock e a Contracultura) fosse capaz de ter interesse pela arte mais frívola do Ocidente, aquela que vicejou na França do Absolutismo, no reinado de Luís XV, e teve Boucher e Watteau como expoentes máximos. Curioso.

Quando visitei o Museu do Louvre, em 2019, passei apressado por um dos mais sensuais quadros de Boucher, “Diana no banho”, e só dei uma espiada. O museu já ia fechar, minha antiga companheira e eu estávamos no Louvre desde a abertura, faltava ver a “Monalisa” e corremos até a sua sala. Mas a divina Diana, pintada por Boucher, não me deixou passar ileso. “Estou aqui”, ela sussurrou (erguendo seu delicado pezinho nu) e eu a olhei de canto de olho.

"Diana no banho" (1742), de François Boucher.

Quando penso nisso (que pecado não ter parado e referenciado a divina deusa), lembro também das “gurias do Rococó” e das horas que passei na biblioteca do Julinho folheando livros de arte, procurando naquelas imagens um guia para desvendar o mundo. Imagens que até hoje me povoam e enfeitiçam.



[1] No conto citado, um poeta chinês observa uma festa do outro lado do rio, deseja estar lá, gozar a alegria, mas opta por “assistir àquilo tudo como um espectador sensível” e, mais tarde, apresentar a cena “numa poesia perfeita”. Dia do bulício da vida, ele opta por “refletir o mundo [...] na poesia.” (HESSE, Hermann. Contos. RJ: Civilização Brasileira, 1970.)

terça-feira, 22 de julho de 2025

Minha avó Aymée

 

Minha avó se chamava Aymée, mas era conhecida como Meca. Ela gostava de ouvir radionovela depois do almoço, enquanto lavava a louça na cozinha. Eu tinha dez anos idade, morava no mesmo quarteirão, ia visitá-la com frequência e ficava fascinado vendo-a absorvida pelas novelas.

O rádio, colocado em cima da geladeira, enchia a cozinha de sons e eu ouvia o ruído de três batidas numa porta e uma voz feminina e chorosa dizer: “Paulo Roberto, é você?” Escutava o som da porta sendo aberta, acompanhada de uma voz masculina: “Sim, Maria Augusta, sou eu. Vim ver como você se encontra.”

As vozes eram sempre solenes, dramáticas, eu não achava graça naquilo, não entendia, mas ficaram gravadas na minha memória. A trilha sonora de meu mundo familiar.

De noite, na minha casa, passavam novelas na TV (a televisão era uma novidade, o pai recém comprara um aparelho) e a vó Meca aparecia para assistir. Recordo da abertura d“O Sheik de Agadir”, com o herói da história empinando um cavalo branco no deserto e, na sequência, cenas de intriga e outras bem melosas, de abraços e beijos. Eu novamente não entendia grande coisa, mas me fascinava o entusiasmo da vó.

Minha mãe, por sua vez, torcia o nariz por essa preferência da sua mãe.  Na certa uma implicância pelo modo exagerado como a vó Meca conduzia a própria vida: tudo sempre pintado com cores dramáticas, a vida transformada em “fita de cinema” ou novela mexicana.

Mais tarde, soube que ela se sentia vítima de “grandes injustiças” e isto marcara a sua vida. Injustiças que, provavelmente, estavam ligadas às histórias do seu pai. Ela nascera de uma “ligação” da sua mãe Antonieta com um “jornalista mulato”, a qual durara poucos anos e resultara em dois filhos, seguida por um novo casamento da mãe com um “engenheiro italiano”. O padrasto perfilhara os filhos da nova esposa, mas estabelecera uma condição: colocar uma pedra em cima da memória do pai natural das crianças.

Minha avó foi criada desse jeito e tudo indica que sempre sentiu um certo desconforto por esse “silenciamento” em torno do seu pai biológico. Mas nunca falou claramente a respeito do assunto. Desde mocinha minha mãe lidou com esses mistérios da sua mãe e só depois dela morrer conseguiu conversar a respeito. “Tua vó Meca certamente ficou traumatizada pelas histórias em torno do seu pai natural”, a minha mãe divagava, sem ter certeza de muita coisa.

Pois lembrei da minha avó lendo o romance “Chuva de papel”, de Martha Batalha (Cia. das Letras, 2023, 220 p.), em especial ao entrar em contato com o drama da personagem Glória: o seu desejo de trazer à tona a própria história. Glória é uma velha senhora que, no tempo da pandemia do Covid 19, procura fazer da sua trajetória uma autobiografia, mas encrenca ao torná-la uma narrativa possível de ser impressa. Ela quer contar o seu drama de menina que assistiu ao pai morrer de modo dramático (uma parada cardíaca num almoço de Páscoa), de mocinha que acompanhou a mãe fazendo promessa para conseguir novo marido, do médico casado que a desvirginou e a tomou como amante durante anos, controlando a sua vida, e tem dificuldade em colocar isso em palavras. Dramas miúdos de uma menina, moça e mulher muito simples que sofreu em silêncio durante vários anos e a muito custo se tornou dona do próprio destino.

Lembrei da minha avó e de suas histórias nebulosas, ambas sofrendo em silêncio suas dores de mulher em relação ao pai e aos homens em geral. Glória procurando colocá-las em palavras, transformá-las em texto escrito na velhice, enquanto minha avó as levou para o túmulo... deixando para o neto o “compromisso” de um dia esclarecer o que houve. O neto que sintonizou com o seu olhar enfeitiçado, seus ares às vezes distantes e chorosos, enquanto escutava radionovelas na cozinha, lavando a louça.