sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Apenas um turista na Argentina

 

Estive na Argentina durante nove dias e bati pernas por Buenos Aires, La Plata e Mendoza. Postei fotos durante a viagem e um ex-aluno me perguntou se percebi as mudanças que o presidente Milei está causando no país. Respondi que não, pois era apenas um turista, viajando com minha companheira, desses que chegam de avião, ficam em bons hotéis e, no caso de Buenos Aires, vão a um balé no Teatro Colón, bebem vinho na Avenida 9 de Julio, almoçam no Puerto Madero e visitam museus de arte (o MALBA e o Museu de Belas Artes).

Puerto Madero, com a Puente de la Mujer ao fundo.

Se fosse a um evento acadêmico e conversasse com professores de universidades estatais, certamente saberia dos impactos da política presidencial na educação e na ciência. Afinal, segundo o noticiário, os salários dos professores foram arrochados e alguns estão debandando. A situação também é crítica na área científica e, só no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, quatro mil postos de trabalhos foram eliminados.

Enxugar a máquina pública é a palavra de ordem presidencial – “um gênio”, segundo um motorista que nos conduziu pelas vinícolas de Mendoza – e por volta de 10% dos funcionários públicos dançaram. Além da educação, ciência e previdência (a situação dos aposentados é terrível), a saúde pública também é alvo de cortes e cruzamos com manifestantes contrários a esta situação.

Em duas ocasiões, em La Plata e em Mendoza, nos deparamos com pequenos atos públicos com as pessoas protestando contra um projeto de lei que atinge os profissionais que atendem deficientes. Em La Plata, atravessamos uma dessas manifestações em frente a um prédio do poder legislativo, ao qual admirávamos pela beleza e monumentalidade, e súbito paramos para entender o que era aquela gente com cartazes. Dois dos manifestantes em cadeiras de roda.

Em Buenos Aires, minha companheira e eu fomos a Estación Constituición, pegar o trem para La Plata, e senti um descompasso entre o prédio monumental e o estado dos trens e da população. Achei os trens precários e os usuários, muito modestos, enquanto o prédio ainda lembrava o esplendor do período agroexportador. Uma impressão que já tivera vinte anos atrás, mas me pareceu pior. Vendo os vendedores que cruzavam os vagões (com produtos em caixas de papelão amarrados com cordões e em cestos de vime), tive a impressão de estar na Bolívia, presenciando uma cena “latino-americana raiz”, isto é, subdesenvolvida. Na volta, escolhemos o ônibus, que nos garantiram ser mais confortável e rápido (o que se comprovou integralmente).

Como disse ao meu ex-aluno, eu era apenas um turista. Desses que viajam com a companheira e privilegiam os bons momentos: um espetáculo no Teatro Colón (mesmo que seja nas galerias), uma garrafa de Malbec na Avenida 9 de Julio, uma caminhada noturna pela Avenida Córdoba e os desdobramentos felizes que essas vivências agradáveis produzem.

Milei e sua serra ultra neoliberal passaram ao largo. Só não esqueci de José Hernández e Domingo Sarmiento (autores de "Martin Fierro" e "Facundo", respectivamente), dos quais encontrei referências em praças, monumentos e até na conversa com um motorista de Uber, nem de Borges e Cortázar, diversas vezes presentes em livrarias e espaços de memória.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

As gurias do Rococó

 

No início da década de 1970, quando era estudante do Julinho (Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre), a professora de História da Arte dividiu a turma em grupos e cada um apresentou um período da arte ocidental: o Gótico, o Renascimento, o Rococó, e por aí vai. Não tenho certeza a respeito de qual escola artística meu grupo precisou dar conta (talvez o Barroco), mas as gurias que se sentavam a minha frente apresentaram o Rococó e disto jamais esqueci.

Eram quatro moças entre 16 e 18 anos (estávamos no segundo ou terceiro ano do Colegial) e duas delas eu achava excepcionalmente bonitas. Quando elas ficaram na frente da turma, na hora da apresentação, uma delas (de pele muito branca) abriu um enorme livro com reproduções de pinturas, mostrou o quadro “Madame de Pompadour”, pintado por François Boucher, e fiquei deslumbrado. Na minha fantasia de adolescente, minha colega se tornou a encarnação desse ideal de beleza aristocrática que frequenta nossos contos de fadas, romances e filmes.

"Madame de Pompadour" (1759), de François de Boucher.

Na verdade, as quatro integrantes do grupo passaram a ter atributos daquele estilo artístico que floresceu na corte de Luís XV, na França. E não apenas aos meus olhos, pois no conceito da turma elas se tornaram “as gurias do Rococó”. Eram suaves, graciosas e sensuais (como os trabalhos artísticos apresentados), cada uma ao seu jeito de simples meninas do colegial.

Estou exagerando? Certamente. No entanto foi desse modo que elas ficaram no meu imaginário. Não me apaixonei por nenhuma delas, mas como poeta aprendiz que era, aprendendo a versejar tanto quanto a admirar a Beleza (com inicial maiúscula), coloquei-as no meu panteão de beldades. Eu lia e relia Hermann Hesse e gostava muito de um conto de sua autoria, intitulado “O Poeta”, no qual o personagem preferia olhar a beleza de longe, como espectador solitário, a se envolver com ela.[1]

Dessa maneira, François Boucher, Jean-Honoré Fragonard e Antoine Watteau entraram no meu radar de interesse. Eu frequentava uma das bibliotecas da escola, numa sala no subsolo do bloco principal, com belíssimas coleções de arte, e as folheava com interesse. Alguns títulos eram em francês e eu lia com enorme dificuldade.

Hoje, é engraçado pensar que o adolescente que eu era (ainda envolvido com a Igreja Católica e, ao mesmo tempo, atraído pelo rock e a Contracultura) fosse capaz de ter interesse pela arte mais frívola do Ocidente, aquela que vicejou na França do Absolutismo, no reinado de Luís XV, e teve Boucher e Watteau como expoentes máximos. Curioso.

Quando visitei o Museu do Louvre, em 2019, passei apressado por um dos mais sensuais quadros de Boucher, “Diana no banho”, e só dei uma espiada. O museu já ia fechar, minha antiga companheira e eu estávamos no Louvre desde a abertura, faltava ver a “Monalisa” e corremos até a sua sala. Mas a divina Diana, pintada por Boucher, não me deixou passar ileso. “Estou aqui”, ela sussurrou (erguendo seu delicado pezinho nu) e eu a olhei de canto de olho.

"Diana no banho" (1742), de François Boucher.

Quando penso nisso (que pecado não ter parado e referenciado a divina deusa), lembro também das “gurias do Rococó” e das horas que passei na biblioteca do Julinho folheando livros de arte, procurando naquelas imagens um guia para desvendar o mundo. Imagens que até hoje me povoam e enfeitiçam.



[1] No conto citado, um poeta chinês observa uma festa do outro lado do rio, deseja estar lá, gozar a alegria, mas opta por “assistir àquilo tudo como um espectador sensível” e, mais tarde, apresentar a cena “numa poesia perfeita”. Dia do bulício da vida, ele opta por “refletir o mundo [...] na poesia.” (HESSE, Hermann. Contos. RJ: Civilização Brasileira, 1970.)

terça-feira, 22 de julho de 2025

Minha avó Aymée

 

Minha avó se chamava Aymée, mas era conhecida como Meca. Ela gostava de ouvir radionovela depois do almoço, enquanto lavava a louça na cozinha. Eu tinha dez anos idade, morava no mesmo quarteirão, ia visitá-la com frequência e ficava fascinado vendo-a absorvida pelas novelas.

O rádio, colocado em cima da geladeira, enchia a cozinha de sons e eu ouvia o ruído de três batidas numa porta e uma voz feminina e chorosa dizer: “Paulo Roberto, é você?” Escutava o som da porta sendo aberta, acompanhada de uma voz masculina: “Sim, Maria Augusta, sou eu. Vim ver como você se encontra.”

As vozes eram sempre solenes, dramáticas, eu não achava graça naquilo, não entendia, mas ficaram gravadas na minha memória. A trilha sonora de meu mundo familiar.

De noite, na minha casa, passavam novelas na TV (a televisão era uma novidade, o pai recém comprara um aparelho) e a vó Meca aparecia para assistir. Recordo da abertura d“O Sheik de Agadir”, com o herói da história empinando um cavalo branco no deserto e, na sequência, cenas de intriga e outras bem melosas, de abraços e beijos. Eu novamente não entendia grande coisa, mas me fascinava o entusiasmo da vó.

Minha mãe, por sua vez, torcia o nariz por essa preferência da sua mãe.  Na certa uma implicância pelo modo exagerado como a vó Meca conduzia a própria vida: tudo sempre pintado com cores dramáticas, a vida transformada em “fita de cinema” ou novela mexicana.

Mais tarde, soube que ela se sentia vítima de “grandes injustiças” e isto marcara a sua vida. Injustiças que, provavelmente, estavam ligadas às histórias do seu pai. Ela nascera de uma “ligação” da sua mãe Antonieta com um “jornalista mulato”, a qual durara poucos anos e resultara em dois filhos, seguida por um novo casamento da mãe com um “engenheiro italiano”. O padrasto perfilhara os filhos da nova esposa, mas estabelecera uma condição: colocar uma pedra em cima da memória do pai natural das crianças.

Minha avó foi criada desse jeito e tudo indica que sempre sentiu um certo desconforto por esse “silenciamento” em torno do seu pai biológico. Mas nunca falou claramente a respeito do assunto. Desde mocinha minha mãe lidou com esses mistérios da sua mãe e só depois dela morrer conseguiu conversar a respeito. “Tua vó Meca certamente ficou traumatizada pelas histórias em torno do seu pai natural”, a minha mãe divagava, sem ter certeza de muita coisa.

Pois lembrei da minha avó lendo o romance “Chuva de papel”, de Martha Batalha (Cia. das Letras, 2023, 220 p.), em especial ao entrar em contato com o drama da personagem Glória: o seu desejo de trazer à tona a própria história. Glória é uma velha senhora que, no tempo da pandemia do Covid 19, procura fazer da sua trajetória uma autobiografia, mas encrenca ao torná-la uma narrativa possível de ser impressa. Ela quer contar o seu drama de menina que assistiu ao pai morrer de modo dramático (uma parada cardíaca num almoço de Páscoa), de mocinha que acompanhou a mãe fazendo promessa para conseguir novo marido, do médico casado que a desvirginou e a tomou como amante durante anos, controlando a sua vida, e tem dificuldade em colocar isso em palavras. Dramas miúdos de uma menina, moça e mulher muito simples que sofreu em silêncio durante vários anos e a muito custo se tornou dona do próprio destino.

Lembrei da minha avó e de suas histórias nebulosas, ambas sofrendo em silêncio suas dores de mulher em relação ao pai e aos homens em geral. Glória procurando colocá-las em palavras, transformá-las em texto escrito na velhice, enquanto minha avó as levou para o túmulo... deixando para o neto o “compromisso” de um dia esclarecer o que houve. O neto que sintonizou com o seu olhar enfeitiçado, seus ares às vezes distantes e chorosos, enquanto escutava radionovelas na cozinha, lavando a louça.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Galeria dos Lanceiros

 

Quem foi a Florença certamente andou pela Piazza della Signoria, bateu os olhos nas esculturas da Loggia dei Lanzi (Galeria dos Lanceiros) e talvez tenha se espantado com a violência das esculturas. São impactantes, belas e inesquecíveis.

Galeria dos Lanceiros. Ao fundo, "Perseu", de Cellini.

Perseu com a cabeça decapitada da Medusa, Hércules sentando o porrete no centauro Nessus (que antes tentara seduzir a sua esposa Dejanira), Pirro sequestrando Polixena, com o irmão dela morto aos seus pés, enquanto Hécuba (a mãe da jovem) se arrasta agarrada às pernas do guerreiro aqueu, mais o fabuloso conjunto escultórico do rapto de uma sabina. Um romano agarra e ergue no ar uma jovem sabina (para depois levá-la para sua cama, na sua humilde choupana, como eram as habitações dos primitivos habitantes de Roma), enquanto um musculoso sabino se prosta, vencido, aos seus pés.

"Rapto da Sabina", de Giombologna. 

Violência pra mais de metro, se poderia dizer. Heróis da mitologia greco-romano se movimentando sem freios e cumprindo trajetórias de crueldade, representados por brilhantes artistas: Benvenuto Cellini, em “Perseu” (1554), Pio Fedi, em “Rapto de Polixena” (1865), Giambologna, em “Hércules em luta com o centauro Nessus” (1599) e “Rapto da Sabina” (1583).

"Hércules em luta com o centauro Nessus", de Giombologna
e Pietro Francavilla.

Em “Hércules em luta com o centauro”, Giambologna teve a colaboração de Pietro Francavilla, uma informação geralmente esquecida nos livros de história da arte, mas não no quadro/legenda da galeria, indicando títulos, datas e autorias das esculturas.

Pois eu visitei Florença num dia frio e ensolarado de fevereiro de 2017, entrei nessa galeria, ergui os olhos justo para o “Rapto da sabina” e levei um susto. A beleza da escultura (os corpos nus em movimento, em luta, em completa tensão) me fisgou e demorei a entender o que estava vendo. Várias lembranças, como um thriller de filme, passaram pela minha cabeça. Muito além de apreciar uma obra-prima da arte ocidental eu estava contemplando a representação de uma lenda da fundação da Roma antiga... dessas que os guris da minha geração, criados na sala escura dos cinemas, tomaram conhecimento na infância.

“Rapto das sabinas” (1961) foi um desses filmes do cinema italiano (pródigo, naquela época, em enfocar temas do Mundo Antigo) que passava nas matinês do Cine Guarany, em Pelotas, e que eu assistia com a maior seriedade. Eu ia a essas sessões de cinema com meu pai e o cravava de perguntas na saída. Queria saber detalhes da trama, dos personagens, do registro histórico, e o pai se esmerava em responder. Quando chegávamos em casa, ele ia na estante consultar alguma enciclopédia, abria o volume na minha frente, lia trechos, me mostrava gravuras e minha imaginação alucinava. Um mundo inteiro se desenhava aos meus olhos, indicando o início de uma viagem que venho realizando até hoje.

No caso do rapto das sabinas, o impacto foi tremendo. Um episódio brutal, dado como verdadeiro pelo historiador Tito Lívio (e assim entendido pelo menino que eu era), mas inegavelmente uma lenda. Roma vivia os seus primórdios, era governada por Rômulo, o primeiro dos seus reis, e faltavam mulheres para aquele bando de homens selvagens que queriam formar um reino. Precisavam de mulheres que servissem de esposas, mães, e que garantissem a consolidação e crescimento do povoado. A solução foi realizar uma festa, convidar as famílias das aldeias próximas (habitadas pelos Sabinos) e, a um sinal determinado de Rômulo, capturar as mulheres e expulsar os seus pais, maridos e irmãos. Um rapto, uma violência. A formação de uma grande cidade (de um dos esteios da nossa civilização) a partir do aprisionamento de várias mulheres que, ao final (ao menos na lenda, na conversa de Tito Lívio) aceitaram a sua nova condição e passaram a conviver pacificamente com os novos maridos.

Na Galeria dos Lanceiros, em Florença, esse filme me passou pela cabeça. Me tocou o conjunto das violências representadas – cabeças decepadas, centauros massacrados, mulheres raptadas, violentadas – e fiquei fascinado. Embasbacado com o modo maravilhoso, artístico, como todo esse universo de fúrias & paixões ganhou vida naquele espaço. Por séculos e séculos, gerações de homens e mulheres se escandalizaram e se deliciaram com aquelas representações e eu era mais um nessa multidão, vivendo o espetáculo dos horrores dos primórdios da nossa civilização...

"Rapto de Polixena", de Pio Fedi.

Afinal, monstros precisaram ser vencidos, sacrifícios tiveram de ser realizados (Prolixena foi morta para que os navios aqueus tivessem bons ventos no regresso à Grécia) e mulheres sabinas urgiam ser raptadas de seus pais ou maridos para que Roma se erguesse. Ou, pelo menos, assim foi escrita e desenhada a História no nosso imaginário.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Malinowski na Avenida Osvaldo Aranha

 

Os trobriandeses, habitantes do arquipélago das Trobriand (no Oceano Pacífico, próximo à Nova Guiné), não estabeleciam nenhuma relação entre o esperma e a concepção dos bebês. Eles acreditavam que as crianças nasciam de um processo que hoje chamamos de partenogênese, isto é, sem que o óvulo feminino fosse fecundado. Segundo suas crenças, os filhos entravam pela cabeça das mulheres, encarnados num espírito chamado Waiwaia, desciam até o ventre e, a partir daí, iniciavam a gestação. Os homens eram dispensáveis nesse processo.

Isso é o que relata Bronislaw Malinowski, que estudou esse povo na década de 1910 (durante a Primeira Guerra Mundial), e que tomei conhecimento nas aulas de Antropologia, quando era estudante de História. Malinowski se propôs a entender o ponto de vista dos nativos, procurou reproduzir o seu entendimento do mundo e a professora dava aulas apaixonadas a respeito do método criado por ele: a etnografia. Um método que pretendia um mergulho no universo cultural dos povos analisados. Ou, ao menos, uma tentativa de aproximação e envolvimento com as culturas encontradas fora do eixo da Civilização Ocidental.

Malinowisk com os nativos de Tronbriand.
Fonte: Wikipédia. 

Encerrada as aulas, eu saia com um colega (Aléxis Borloz) a caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha (o curso funcionava no Parque da Redenção, só se transferiu para o Campus de Viamão em 1977) e divagávamos a respeito do assunto. Os povos primitivos (“selvagens”, como muitas vezes se falava) nos encantavam. Nós nos sentíamos atraídos por tudo que se distanciasse da nossa civilização de matriz europeia, visto por nós como “decadente”. Além do mais, esses povos primitivos encontrados pelos europeus ao longo dos séculos XIX e XX (como os trobriandeses) se tornaram referência para conhecer os grupos caçadores-coletores do Paleolítico. Funcionavam como uma espécie de guia para outras formas de organização sociopolítica, anteriores à Grécia e Roma. Indicavam, por exemplo, sistemas matriarcais, modelos de organização de poder nos quais as mulheres não estavam excluídas. E crenças como essas, que omitiam a participação dos homens na gestação dos bebês, colaboravam para estabelecer a centralidade das mulheres na organização familiar e política.

Conversas empolgantes, ao longo da Avenida Osvaldo Aranha, na saída das aulas. Verdadeiras discussões a respeito das quais mais recordo o entusiasmo do que qualquer outra coisa. Eu andava a ler “O segundo sexo”,  de Simone de Beauvoir (sem concluir o último volume), folheava “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de Engels, e, de forma mais sistemática, estudava as abordagens de Gordon Childe (autor obrigatório nas disciplinas de Pré-história e Antiguidade) a respeito das revoluções Neolítica, Urbana e o surgimento das Civilizações. Misturava isso com Malinoswski (sem ler “Os Argonautas do Pacífico” do início ao fim) e falava, discutia, polemizava com meu amigo.

Os homens demoraram a compreender que o sêmen que eles ejaculavam durante a relação sexual tinha papel na gestação e isso teve consequência na organização social. Eles só descobriram a sua função quando passaram a domesticar os animais (durante a Revolução Neolítica), observá-los em cativeiro e se dar conta de que, se não acontecesse o acasalamento, nada de surgir novas ovelhas, novos cabritos e bezerros. Uma observação que contribuiu para reorganizar a estrutura de poder nas sociedades de agricultores que então construíam aldeias, cidades, estabeleciam distinções sociais e desigualdades. Um processo muito complexo no qual os homens se impuseram perante as mulheres, subordinando-as, tornando-as inferiores a eles, e “se achando”. Aos poucos, substituindo o matriarcado pelo patriarcalismo...

Conversa que não tinha fim entre os jovens estudantes que éramos. Até Érico Veríssimo entrava em pauta, por meio da crítica de Floriano Cambará, personagem de “O tempo e o vento”, a respeito da sociedade machista do Rio Grande do Sul. Uma paixão que compartilhávamos, isto é, o gosto pela obra de Veríssimo.

No início dos anos 80, o meu amigo defendeu dissertação no Mestrado de Antropologia, na UFRGS, sobre a Contracultura em Porto Alegre e o surgimento dos "malucos", jovens de comportamentos desviantes (como ele procurara ser). Eu tentei ingresso no mesmo curso, não fui classificado e encarei o Mestrado em Letras, na PUC, defendendo dissertação sobre o Grupo Quixote, um grupo literário porto-alegrense. Caminhos diferentes, mas que, de alguma maneira, tiveram origem nas observações de Malinowski a respeito dos trobriandeses, nas suas crenças sobre a gestação de bebês e as diferentes formas de se inventar a vida. Caminhos que fomos criando, enquanto batíamos pernas e conversávamos pela Avenida Osvaldo Aranha.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Sonhar com Paris

 

João Alberto completou 70 anos e pertence a uma geração que estudou francês no Ginásio e no Curso Clássico. Cedo ganhou familiaridade com o imaginário francês e passou a admirar seus artistas. Leu Baudelaire, Flaubert e Maupassant (em tradução), assistiu aos filmes de Godard e Truffaut, e sonhou em ser poeta. Até fez alguns poemas e ganhou concurso literário quando estudante. Mas um primo escritor lhe avisou que a coisa não era fácil e ele guardou a literatura para os finais de semana e, por fim, a esqueceu.

Dedicou-se a advocacia, abriu escritório e ganhou dinheiro, o suficiente para possuir um apartamento na cidade, uma casa na praia, trocar de carro regularmente e até financiar o da esposa. Deu vida boa para os três filhos e eles puderam cursar a universidade sem trabalhar e só sair de casa só quando tiveram renda para bancar a própria sobrevivência. Com o seu talento para as letras jamais conseguiria coisa igual.

Mas aos 70 anos se deu conta que um velho sonho não desaparecera: conhecer Paris. Navegar pelo Sena como os personagens de Maupassant, cruzar na rua por mulheres fascinantes como nos poemas de Baudelaire, amar num quartinho minúsculo como num filme de Godard. Viajara pouco, sendo Buenos Aires e Cancún os seus únicos destinos no exterior, esse último devido à insistência da esposa, que dissera que “todo mundo conhece, é maravilhoso”.

Naquela viagem a Cancún, aos 60 anos, se deu conta que perdera a paixão pela vida e entrara em outra etapa da existência. Gostava de trabalhar, isso sim, e eventualmente lia algum romance. Naquela temporada mexicana, fizera um sexo protocolar com a esposa e depois a assistira caminhar pelo quarto, abrir as cortinas para o mar do Caribe e a ouvir falar de outras viagens que precisavam realizar.

– A Europa, João Alberto, aquele tour que sonhamos tantas vezes: Lisboa, Madri, Paris.

– Não, eu não sirvo para isso – ele disse, sentando-se na cama, servindo-se de uma garrafa de vinho branco mergulhada num balde de gelo. – Vai com as amigas, tu vais te divertir mais. Eu virei um chato.

– Um acomodado, isso sim. Um velho, muito antes da hora. Tu podias reagir.

Ele riu e não falaram mais no assunto. Ela viajou para a França, Itália e Egito, sempre com as amigas, enviando cartões postais no princípio (como ele pedira) e depois apenas fotos pelo WhatsApp.

Agora, com 70 anos nas costas, João Alberto retoma um velho sonho de estudante, mas não quer a companhia da esposa. “Uma viagem romântica”, ele imagina, com uma companhia que lhe acenda antigos ardores. Pensou encontrar isso em Rosângela, uma cliente de 47 anos, que ele atendeu num caso de separação litigiosa, e tem conversado com ela a respeito. Uma noite eles beberam espumante no apartamento dela, fizeram amor e ele recitou Baudelaire. O francês saiu estropiado, mas lembrou-se da tradução e ela o abraçou com um carinho inédito para ele.

“Minha doce irmã, / Pensa na manhã / Em que iremos, numa viagem / Amar a valer, / Amar e morrer. / No país que é a tua imagem! / (...) / Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor.”[1]

Assistindo a um filme na Netflix descobriu que há congressos acadêmicos na área do Direito, na Universidade de Sorbonne, e inventou que é este o seu próximo passo: a inscrição num evento universitário, o pretexto para a almejada viagem. Falou com um dos sócios do escritório e ele, que é professor universitário, ficou de lhe acertar os detalhes.

– Claro que não iremos juntos – ele avisou Rosangela. – Eu irei primeiro e te esperarei no Charles De Gaulle. Reservarei um quarto num hotel de Montemartre, um passeio no Bateaux Mouches, um jantar na Torre Eiffel e as obrigatórias visitas ao Louvre e ao D’Orsay.

Rosangela riu e não soube se devia acreditar ou não. “É um farsante tirando onda comigo”, ela pensou, “mas vou embarcar na fantasia. Por que não?” Sentiu que aqueles planos o entusiasmavam, o tornavam mais ardente na cama e era disso que precisava. Rosangela explicou que não estudara francês na escola – “Uma disciplina que a reforma educacional suprimiu” –, que sempre preferiu o universo da língua inglesa, conheceu Nova Iorque, Miami, mas apreciava a cultura europeia.

– Tudo que tu falas é novidade para mim. Estou aprendendo contigo.

João Alfredo se alvoroçava se imaginando em Paris e lembrava o adolescente que fora frequentando a biblioteca da escola para ler a respeito da cultura francesa. Sentia voltar a antiga admiração pelos assuntos tradicionais do universo francês – o escândalo provocado por “Flores do Mal”, o processo judicial causado por “Madame Bovary”, a revolução desencadeada pelos impressionistas – e achava graça que isso ainda fazia sentido para ele... Sentia também a força do sexo lhe vir renovada (turbinada, é claro, por um comprimido azul) e racionalmente decidiu manter a fantasia da viagem até quando pudesse suportar. Talvez fosse o último delírio da sua vida e não se impediria de sonhar. Cultivaria com zelo e carinho esse projeto de viagem com a amante, cuidando para não abalar seu casamento, a vida que construíra com empenho e sacrifício. Nem a esposa gostaria disso e lhe agradeceria muito se a mantivesse ignorante em relação ao assunto.



[1] “O convite à viagem”, tradução de Ivan Junqueira.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

A criança da casa

 

Tornei-me um usuário de aplicativos de transporte e às vezes converso com os motoristas. Nem sempre. Não tenho um padrão para isso. Mas gosto quando acontece uma conversa e pintam boas histórias.

Semana atrás foram os córregos que existiam em Porto Alegre e, hoje, estão canalizados. No bairro Boa Vista, por exemplo (onde moro atualmente), até o início dos anos 1980 havia um pequeno arroio com peixes e a gurizada usava para tomar banho, me garantiu um motorista. Ele era um desses garotos. Depois veio o Shopping Iguatemi, a abertura da Avenida Nilo Peçanha, o fim dos chalezinhos de madeira, a construção de edifícios bacanas, a canalização do arroio e tudo mudou. Difícil rastrear por onde passava esse “veio de água” a que o motorista se referiu.

Outro dia foram as novas relações que se estabeleceram entre os humanos e os animais domésticos. “Hoje é o gato que manda lá em casa”, afirmou o motorista. “Ninguém doma um bicho desses, é diferente dos cachorros”, ele adiantou, dizendo que tem três cães, um gato, e sabe bem o que é isso. “Os cachorros são mais obedientes”, garantiu.

Eu perguntei se ele era casado, se morava em casa e tinha filhos e ele respondeu item por item. Era casado, morava numa casa com pátio e não tinha filho. “Eu sou a criança da casa”, ele disse, “não tenho jeito pra cuidar um pentelho e a mulher entende isso”, arrematou.

A criança da casa... Puxa vida. Um homem que aparenta 40 anos e, ao que tudo indica, se nega a crescer. Eu não soube mais o que falar e ele continuou conversando. Perguntou se podia parar numa casa veterinária (precisava pegar um remédio para o cachorro salsichinha, que estava com dor na coluna) e eu disse que não tinha problema. “Não tenho pressa”, garanti. Ele estacionou, levou dois minutos para descer e trazer o medicamento, e depois continuou falando dos animais domésticos da sua casa. Adorava a bicharada.

“Com eles eu não me incomodo de dar toda a atenção do mundo. Mas com um filho eu não teria paciência. Criança é muito exigente. Já basta eu”, concluiu. E eu não prestei mais atenção no que ele falava. Fiquei imaginando qual seria a conversa da mulher. Que mulher aguenta um cara desses?, me perguntei. Deve ser outra apaixonada por cães e gatos, imaginei, senão não ia dar liga. Iam viver brigando.

Mas lembrei de uma tese de doutorado a respeito do comportamento feminino (de mulheres paulistanas de classe média) que apresenta uma série de casos de mulheres que nem perguntaram aos maridões se eles queriam ou não ter filhos. Engravidaram e pronto, os homens que assumissem os rebentos e aí que se tornassem pais ausentes, os desnaturados. Talvez a mulher do motorista, um dia, siga esse roteiro e, numa tacada, o destrone da sua condição de criança da casa. O homem vai enlouquecer.

domingo, 4 de maio de 2025

Sala de espera de exames médicos

 

Estou na sala de espera do setor de medicina nuclear do Hospital Moinhos de Vento para exames de cintilografia. Exames que investigam o funcionamento do coração, pulmão, rins, tireoide e outros órgãos. Somos quatro homens idosos na sala de espera e não conversamos a respeito de nossos problemas de saúde. Falamos de política. Melhor dizendo, um de nós fala, os outros escutam. Ele comenta a política do tarifaço que o presidente Trump realiza para intimidar diversos países do mundo.   

– Não há racionalidade alguma – ele afirma. Fala de um parente que mora numa pequena cidade dos Estados Unidos e da corrida da população para comprar smartfones e eletrodomésticos. – Esses produtos irão escassear nas prateleiras, ficar muito mais caros e o pessoal está enlouquecido, comprando. Um tiro no pé essas medidas malucas que o presidente vem implementando.

Diz que o seu parente era um admirador da sociedade americana e tudo fez para morar lá. Vendeu o que tinha, apartamento e carro, e foi com a mulher. Agora tem um filho e uma pequena empresa prestadora de serviços (manutenção de aparelhos de ar-condicionado) que se utiliza de mão-de-obra imigrante. Acha que sua situação é estável, mas não tem certeza.

– Agora não sabe em que pé as coisas vão ficar – ele comenta. – Incerteza total em relação à economia, isto é, ao abastecimento de produtos industriais, a maioria produzida no exterior, e quanto ao mercado de trabalho movido com mão-de-obra imigrante.

Estou num espaço da classe média alta porto-alegrense, uma camada social que tem a economia e a sociedade norte-americana como referenciais positivos, e penso que agora já é possível criticar os Estados Unidos. Algo inimaginável há pouco tempo. Um ano atrás, alguém sairia em defesa dos States, na hora. Não admitira falarem mal do “paraíso”. Agora não.

Lembro de um parente que morava em Miami e vivia trombeteando que “aqui as coisas funcionam”, “é um país decente, com regras”. Uma chatice a sua conversa. Nós mantivemos contato via Messenger por um tempo e eu pedi para ele largar de mão de me enviar vídeos para convencer a respeito das maravilhas do capitalismo estadunidense em contraponto ao caos brasileiro (agravado pelos governos petistas, segundo ele). “Tu não vais me convencer”, eu escrevi, “não me manda mais esses vídeos de propaganda direitista, alguns deles de muito baixo nível, quando não fake news descaradas”. Expliquei que estávamos campos político distintos, mas que éramos primos e seria legal não perdermos o contato”. Insisti, mas não deu certo. Ele só queria fazer conversa política e eu larguei de mão.

Depois ele adoeceu e veio se tratar no Brasil. A medicina de lá na certa não funciona tão bem quanto a economia e a sociedade, sei lá. As regras do atendimento médico não foram favoráveis a ele e isso que ele garantia que ganhava a uma boa grana. “Um dinheiro que não levantaria no Brasil com esses políticos corruptos que tem por aí.” Enchia o saco esse meu primo. Uma hora dessas preciso procurar esse primo.

Tenho vontade de contar essa história ao meu colega de exame de cintilografia, mas me calo. Só escuto. Qual o órgão interno que ele irá avaliar: coração, pulmão ou tireoide? Nós dois temos obstruções de coronárias ou hipertiroidismo? O que o futuro nos aguarda? Conseguiremos administrar nossas respectivas doenças? Não sei, não falamos disso. Ele fala do Trump e eu concordo: é um político da pior espécie. Um bravateiro arrogante que declarou que os dirigentes do mundo inteiro virão “lamber o meu traseiro” (sim, o chefe da Casa Branca usou essa expressão) para negociar o valor de tarifas comerciais, mas não é isso que vem ocorrendo. O líder da segunda potência mundial, Xi-Jinping, nem se coçou para conversar com o topetudo de Washington.

E, na sala de espera de um hospital frequentado pela classe média tão admiradora dos States, ninguém defende o seu atual mandatário. Um sinal dos novos tempos: já dá pra falar mal dos Estados Unidos. Não é mais o país onde tudo funciona, regido por uma lógica invejável. A extrema direita brasileira parece que está estupefata com o seu grande líder no Norte.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Aprendendo com a deusa Ísis

 

Em maio de 2023, estive no sítio arqueológico de Dion, na Grécia, localizado ao sopé do Monte Olímpico, a montanha que servia de moradia aos deuses gregos, Zeus e sua turma. Só existem ruínas, nenhuma parede de templo religioso erguida e haja imaginação histórica para reconstruir o que deveria ser o local. Parei no local onde se encontrava o Templo de Zeus e foi um cartaz com desenhos e legendas que me deu alguma ideia do que poderia ser o lugar: a monumentalidade do prédio, o local de sacrifício de animais e as cerimônias de adoração. E confesso que fiquei um tanto decepcionado. Difícil entender a Grécia Antiga.

Felizmente a visita foi completada pela ida ao museu do sítio arqueológico e as peças ali encontradas – as esculturas e os ornamentos escultóricos dos templos – funcionaram como um bálsamo, isto é, possibilitaram um contato mais efetivo com essa antiga civilização. Não encontrei nenhuma escultura de Zeus que me encantasse (talvez exista, não sei – é tanta coisa que não dá para prestar atenção a tudo) e fui fisgado pelo material a respeito do Templo de Ísis. A representação grega da deusa egípcia que se encontrava na fachada do prédio (foto abaixo), mais uma escultura da deusa do amor, Afrodite Hipolimpídia, mandada instalar ao redor do prédio religioso, na mesma época da sua construção (século II a.C.).

Admirei as esculturas e lembrei os estudos de Plutarco, complicadíssimos, a respeito da deusa, seus ensinamentos religiosos, mais as reflexões filosóficas do autor a respeito dos Mistérios de Ísis (as voltas que os iniciados deveriam dar para conhecer as verdades dadas a conhecer pela divindade).

Não, eu nunca compreendi a complexidade da religiosidade do Mundo Antigo. Meu conhecimento se limitou às generalidades e, mais do que tudo, fiquei restrito ao encantamento com a deusa. Visitei o seu famoso Templo de Philae, no Egito, e foi emocionante. Passei a mão nas pedras que tanto peregrinos tocaram e pronto. Resumindo, não passei de um estudante de primeiras letras a respeito dessa crença que se expandiu do Egito para o mundo greco-romano. Mas um estudante que, ao final, aprendeu o seu lugar.

No Museu Arqueológico de Dion, senti o silêncio austero da deusa e me dei conta do meu lugar no mundo, isto é, o meu tamanho e limitação. Uma lição de humildade que à princípio vivenciei com tristeza e só hoje consigo dizer que não era para tanto. Afinal reconhecer a nossa condição humana, finita e limitada, não é uma aprendizagem banal. É um exercício de sabedoria também. Talvez um dos mais importante para um bem viver.


Observação: Plutarco foi um historiador grego que viveu entre 46 e 120 d.C. Seu tratado sobre Ísis e Osíris é uma das principais fonte de informação a respeito da deusa. E os ritos iniciáticos que aborda (os Mistérios de Ísis) é uma criação grega feita quando o culto a essa divindade egípcia se difundiu pelo mundo mediterrâneo a partir do século IV a.C. Haja engenho e arte para decifrar as maravilhas dessa deusa.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Adolescência

 

Assisti a minissérie “Adolescência” e fiquei impressionado com o personagem principal: o menino de 13 anos de idade que esfaqueia a coleguinha de escola. A princípio entendi que o motivo do assassinato era o fato de a menina ter esnobado e humilhado o rapazinho de cabeça quente, mas logo descobri que o buraco era mais embaixo. O crime não decorreu apenas da fúria do gurizinho rejeitado, mas foi alimentada por uma subcultura extremamente machista e antifeminista de ampla circulação nas redes sociais. Uma subcultura que, mais do que a família e a escola, é o que faz a cabeça de muitos adolescentes contemporaneamente. A minissérie é ambientada no Reino Unido, mas tudo indica que pode ser ampliada para o mundo ocidental em geral (o mundo formatado pelo universo da Internet).

Eu não fazia ideia da abrangência desses “discursos de ódio” em relação às mulheres divulgado por influencers do tipo de Andrew Tate, citado na minissérie e que eu nem sabia da existência. Sou um velho de 69 anos sem muito treino nas redes sociais. Utilizo o Facebook, me atrapalho com o Instagram e não participo de fóruns de debates on-line ou coisas do gênero (apesar de manter um blog de crônicas).

Dessa maneira, como sujeito despreparado no universo alucinante da Internet, foi fundamental para eu entender a minissérie a cena apresentada no segundo episódio, no qual o policial que investiga o crime recebe uma verdadeira aula do seu filho a respeito do que rola no Instagram e faz a cabeça da meninada da escola. Isto é, o filho do policial (que estuda na mesma escola do menino assassino) explica ao pai o que é a cultura machista e antifeminista que circula fora do radar dos pais e professores. Apresenta (didaticamente) o caldo cultural que serve para o menino e seus amigos articularem as suas dificuldades de identidade e comportamento sexuais. A gurizada acredita numa bizarra crença na qual as mulheres só se interessam por 20% dos homens, deixando os outros 80% chupando o dedo, e reage violentamente em relação a isso. Uns rapazes que sentem a sua masculinidade colocada à prova e entendem que precisam enfrentar essas mulheres que os desprezam, puni-las inclusive. Mostrar valentia. Usar armas para assustar. Faca, como a que é utilizada pelo assassino, que, segundo relato do amigo que empresta a arma, seria utilizado para ameaçar e não para matar.

Cena de "Adolescência": o inspetor policial recebendo uma aula do seu filho
a respeito do que rola nas redes sociais.

Mundo cão. Os rapazes em formação, preocupados com a sua macheza (“Sou atraente ou não para as mulheres?”), alimentados pela tal teoria dos 80/20, se sentem acuados e metem os pés pelas mãos. É o que acontece com o gurizinho de 13 anos. Seu sentimento de desvalia diante da menina que o faz de “corinho” (na linguagem dos anos 60 e 70; bullying na expressão atual) se articula com a cultura machista e antifeminista e dá no que dá: uma reação violenta que resulta em assassinato. O antifeminismo legitima a raiva que ele sente e o guri nem percebe que se torna um criminoso. Só cai a ficha após meses de cadeia e a proximidade do julgamento. Demora para o menino se perceber um assassino.

Penso que nenhum espectador sai o mesmo depois de assistir à minissérie. A emancipação feminina abalou as estruturas da sociedade tradicional, está reorganizando os papéis de gênero, mas muitos de nós não imaginavam que tantos homens fossem reagir a isso de modo tão violento. É esse caldo cultural (a revolução feminista, seus desdobramentos) que abala o personagem central da minissérie, um frágil e furioso adolescente acossado pelas transformações comportamentais. Fúria e fragilidade que encontra nos “discursos de ódio” um modo de se expressar. (O terceiro episódio, o da sessão do jovem assassino com a psicóloga, evidencia a fúria do frágil adolescente. Sua pergunta final, se ela gosta ou não dele, escancara a sua carência. Uma verdadeira cena de horror psicológico.)

A minissérie só não precisava pegar tão pesado com os pais, como ocorre no último episódio. Os velhos não merecem mais essa lambada. Já nos sentimos responsáveis demais pelas angústias e descaminhos da juventude.

sábado, 5 de abril de 2025

Novela juvenil

             Quando estava na terceira série ginasial, botei na cabeça que iria ser escritor. O professor de Língua Portuguesa sugeriu a prática do diário como exercício da escrita e segui o conselho. Décadas depois, peguei o material e o utilizei como matéria-prima para uma novela juvenil, que intitulei “Jorge encontra Lilian”.

Jorge, o narrador adolescente, se interessa por uma guria chamada Lilian e vive o despertar em relação ao sexo oposto. Não rola muita coisa entre os dois, eles dançam, mal se tocam, mas acontece de tudo dentro do rapaz e ele registra essa transformação no seu diário. Um texto intimista.

No final dos anos 90 eu publicara dois paradidático pela Editora FTD (“O mundo grego”, 1996, e “Quando os holandeses invadiram o Brasil”, 1998) e aproveitei para apresentar a minha ficção. A responsável pela literatura juvenil me chamou, disse que o texto era bom, mas não vendia. O mercado editorial mudara e o leitor juvenil queria temas mais fortes, como violência urbana, consumo de drogas, gravidez indesejada, Aids e assim por diante. Lembro que voltei de São Paulo (de ônibus) lendo livros juvenis com esse tipo de pegada.

Apresentei o texto para o Walmor Santos, meu antigo colega de oficina literária na PUC/RS, e ele também não topou. Walmor vinha fazendo sucesso com a sua editora, a WS, vendendo bem literatura juvenil nas escolas do Rio Grande do Sul, e sabia das coisas. Tivemos uma conversa telefônica memorável e ele me disse que faltava tempero. O personagem precisava beijar a menina, talvez transar, ao menos tentar, e fez um monte de sugestões para apimentar o texto. Mas não acatei. Eu queria a minha novela daquele jeito antigo, intimista, e parti para a edição independente.

Organizei o livro com ajuda dos amigos e mandei imprimir mil exemplares na Gráfica Pallotti, em Santa Maria. Fui à luta. Tive o apoio de professores de Ensino Fundamental em relação à novela (em especial do Colégio Nossa Senhora de Fátima, em Santa Maria) e consegui vender por volta de 800 exemplares. O restante distribuí gratuitamente. Hoje só tenho dois exemplares. Um sucesso, considerando o fato de ser um livro independente.

"Jorge encontra Lilian", edição independente, 1998.
Capa: Renato Valderramas.

Não era o meu batismo de fogo, mas a impressão que ficou é a de ter sido a minha maior peleia literária. Como o livro era adotado nas turmas de sétima e oitava séries, muitas vezes fui às escolas conversar com os alunos. Uma leitora reclamou que “não rolava nem um beijinho entre os personagens” e eu achei essa a melhor síntese da novela. “Sim”, eu disse, “o encontro se dá sem que ocorra muito contato físico.”

Eu tinha treze/catorze anos quando escrevi aquele diário que serviu de base para a novela e não sabia o que era beijar. Ao reescrever, nos anos 1990, me deparei com a paixão platônico que vivera (conheci a menina numa quermesse de colégio, nunca falei com ela) e fiz o personagem ir além, isto é, conversar e dançar com a guria. Depois ligar para ela e convidá-la a um cinema. Ter a ousadia que não tive. E terminei por aí a minha ficção. Um livrinho muito bem-comportado. Uma novela juvenil onde não rola um beijinho.

domingo, 23 de março de 2025

Pescar na beira do Canal São Gonçalo

 

No início da década de 1960, como a maioria da gurizada que morava na Zona do Porto, em Pelotas, pesquei nas margens do Canal São Gonçalo (que a gente chamava de rio, mas que nunca passou de um canal natural de ligação entre as lagoas dos Patos e Mirim). Um canal que diziam ser de pouca fundura e de correntezas fortes.

A pouca fundura explicava a impossibilidade de grandes navios chegarem ao porto. As correntezas, a necessidade dos pescadores utilizarem chumbadas pesadas para as águas não levarem suas linhas.

Relembro essas informações e escuto os mais velhos falando: as águas do canal, a importância disso para a história da cidade (desde o tempo das charqueadas), a construção do porto, as pescarias e as travessias a nado de um lado a outro do rio.

Meu pai, quando jovem, era desses que atravessavam o canal. Um feito grandioso que eu, menino, achava o máximo e nem imaginava imitar. Nós frequentávamos o Clube de Regatas que havia nas margens do canal, e o assistia mergulhar da plataforma de trampolim. Ele andava por volta dos 40 anos e ainda era capaz dessas áfricas.

Também o admirava preparando a linha de pesca para jogá-la no canal. O exame atento em relação ao peso das chumbadas, a colocação das iscas e depois a ginástica de rodopiar a linha com a mão direita, ao lado do corpo, dar força a ela e lançá-la ao fundo das águas. Uma ginástica olímpica, aos olhos do menino que eu era. Artes de um atleta grego em algum campo de provas da Grécia Antiga.

Lembranças das minhas perplexidades de menino na beira do Canal São Gonçalo. Coisas de guri e de sua relação com o rio e o pai. As águas caudalosas e piscosas do rio, a grandeza e os feitos heroicos do pai (não deixo por menos).

No final da década de 1970 ele veio a se suicidar e hoje, quase cinquenta anos depois, ainda sou capaz de reviver a mesma surpresa e dor que sua morte causou. Como um corpo com tamanha vitalidade no trampolim do Clube de Regatas e nas pescarias na beira do rio pode colocar um fim na sua vida de modo tão abrupto e descabido?!

Como a maioria dos guris que moravam na Zona do Porto, em Pelotas, pesquei nas margens do Canal São Gonçalo. Gurizada de infância simples, filho de um bancário e uma professora primária, com dois irmãos (um mais velho, outro menor), porém com um tesouro guardado na memória: meu pai girando a linha com a mão direita e depois a lançando no ar. Graças a chumbada, ela voava, caia no rio e, logo depois, era capaz de ter um dos seus anzóis mordido por um bagre.

Local das pescarias de infância. Foto de 2023.


quinta-feira, 20 de março de 2025

Voltar a morar em Porto Alegre

 

Voltei a morar em Porto Alegre, depois de 33 anos em Santa Maria, e preciso dizer isso a mim mesmo.

Nasci em Pelotas, morei onze anos naquela cidade, e vim com a família para a Capital, em 1967. Um exemplo da migração das populações das cidades do interior para as grandes capitais que ocorria no país inteiro. A busca por alternativas de ascensão econômico-social que o interior não tinha condições de oferecer.

No caso de meu pai, pesava a sua situação de bancário, categoria que estava com os salários arrochados e da qual ele se desiludira. Recordo que ele era vinculado a uma iniciativa cooperativista no banco em que era empregado e essa ação dera com os burros n’água.

A mãe era professora do Magistério Estadual e permaneceria como tal. Ela resistia a mudança, mas entendia que Porto Alegre era melhor para o marido e os filhos (neste último caso, um tratamento mais adequado para o filho mais velho, diagnosticado com reumatismo juvenil).

A família não se deu mal. Creio que os novos ares foram bons para todos.

Cursei o primeiro ano do Ginásio no Colégio Rosário e pegava o bonde todos os dias. Uma novidade completa para mim. O Túnel da Conceição não existia (as obras iniciariam em 1970), mas os moradores antigos já falavam que a cidade estava deixando de ser uma província. Havia um clima de modernidade que se refletia nos costumes (“Novos valores, novos comportamentos”, dizia a prima Carmen Lúcia) e logo os bondes seriam tirados de circulação.

Enquanto isso, na política, os militares dominavam e conduziam o país para uma ditadura, o que ocorreu de fato em dezembro do ano seguinte, com a promulgação do AI-5. Eu não sabia o que era autoritarismo, mas começava a entender o que era repressão. Certo dia, andando pelo centro da cidade, assisti de longe a polícia lançar bombas de gás lacrimogênio numa passeata de estudantes e descobri que protestar era perigoso. Logo me avisaram para manter distância em relação aos “subversivos” e segui o conselho.

Completei o Ginásio no Colégio São Pedro, no qual não se falava em Grêmio Estudantil, apenas em Grêmio Literário, do qual eu participava com entusiasmo, apresentando, entre outros, o famoso poema de Machado de Assis a respeito da sua visita ao túmulo da esposa: “Trago-te flores, restos arrancados / Da terra que nos viu passar unidos”.

Depois fui fazer o Curso Clássico no Colégio Júlio de Castilhos e lá, sim, descobri que existia política estudantil, porém isso estava proibido aos estudantes. O Grêmio Estudantil da escola fora fechado e vivíamos “tempos bicudos”, diziam os estudantes bem-informados.

Na mesma época (1971) ingressei no movimento de juventude da Igreja São Pedro (no bairro Floresta, onde morava) e ali iniciou o meu letramento político. O nosso padre-orientador comentava as resoluções do Congresso Episcopal de Medellin (aquele que estabelecera a opção preferencial pelos pobres), nos orientava para um Cristianismo com compromisso social, e aquilo me desvendou um novo mundo. Sim, política era possível. Necessária inclusive.[1]


Rua de Porto Alegre - Bairro Boa Vista.

Rememoro isso sem saber onde vai dar. Depois de três décadas regresso a Porto Alegre como professor universitário aposentado e certamente cumpro outro roteiro, diferente daquele que seguiu meu pai. Não busco novas alternativas econômicas. Minha carreira profissional está encerrada. Busco alternativas prazerosas numa cidade grande e me preparo para envelhecer.

As lembranças da Porto Alegre do final dos anos 60 me vêm quando subo no ônibus (como estão diferentes, alguns até com ar-condicionado) e sinto que elas marcam um início de uma nova etapa que ainda não sei como nomear. Mas vou recordando e registrando.



[1] O movimento de juventude que existia na Igreja São Pedro se chamava Movimento Estudantil Floresta (MEF). Fora fundado por remanescentes de organizações católicas (JEC e JUC especialmente) desmanteladas pelo Regime Militar. Tinha uma orientação progressista, mas a política não era o seu eixo. Esse era apenas um dos assuntos. Valia mesmo eram os Evangelhos, lidos por uma chave “libertadora”.