quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Para além da política partidária

 

“Sem anistia” e “Fora Hugo Motta” eram as chamadas para a manifestação política do último domingo (14 de dezembro) marcada para acontecer no entorno do Monumento ao Expedicionário, no Parque da Redenção, em Porto Alegre assim como em outras cidades brasileiras.

Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados, na quarta-feira (dia 10), colocara em votação um projeto para diminuir a pena dos condenados pelo 8 de janeiro de 2023 e das lideranças golpistas e a maioria direitista dos deputados aprovou a medida.

Não deu outra e a esquerda foi para as ruas. Nem só a esquerda, por sinal, mas também pessoas que entendem que os condenados pelo STF comprovadamente atentaram contra o jogo democrático e isso não é possível admitir. Ou se defende o regramento democrático ou entramos numa zona de risco, isto é, de possibilidade de construção de nova ordem autoritária como a que vivemos durante o Regime Militar (sonho dos condenados pelo STF).

Não são inocentes os manifestantes de 8 de janeiro nem, muito menos, Bolsonaro, seus generais e delegados. Cada qual, no seu campo, operaram em favor de um golpe que, felizmente, não vingou.

Pois estive presente na manifestação de domingo, peguei os últimos pronunciamentos na Ponte de Pedra (ponto final do ato político, depois de uma passeata saída do Monumento do Expedicionário) e fiquei impressionado com a animação dos grupos de juventude, grande parte de matriz estudantil, com indumentária e gestualidade que indicavam uma diversidade sexual impressionante, muitas vezes desconhecida por mim. Mas visível naquelas agremiações políticas, à esquerda da posição conciliadora dominante no Partido dos Trabalhadores.

Ato contra a anistia aos golpistas.
Praça da Ponte de Pedra, Porto Alegre.

Uma gurizada visceralmente contrária à tentativa da extrema-direita em inocentar a sua militância e lideranças, apaixonadamente comprometida com o jogo democrático liberal, entendido como o caminho possível para a acumulação de forças das classes populares e a futura transformação da ordem econômica e social.

Mas, para além da pauta político partidária (a luta contra a anistia aos golpistas), me surpreendeu a disposição revolucionária dessa juventude. Uma revolução especialmente endereçada à mudança de costumes, indicada na indumentária e na gestualidade dos militantes, claramente libertários.  Sinais de androginia, transsexualidade e sei lá mais o quê. Sinais de uma realidade sexual que nomeio com um dificuldade, mas que constato e identifico sua riqueza. Há um mundo novo, ali, querendo vir à tona.

Mais do que política partidária, essa gurizada radical me pareceu comprometida com a invenção de novas formas de se fazer presente, sentir e viver. Além da política, a transformação da vida. Os conservadores do Congresso (incluindo aí o engomadinho Hugo Motta) reduzidos, diante desse furor de juventude, à grotesca expressão política das forças econômicas e sociais que preservam esse mundo desigual e opressor, que necessita urgentemente ser transformado.

Apesar de distante das pautas radicais dessa juventude, me senti emocionado com a sua vibração e disposição de luta. Um entusiasmo contagiante.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Aplicativos de transporte

 

O jornal Zero Hora assinalou os dez anos da chegada dos aplicativos de transporte a Porto Alegre.[1] Naquele tempo (novembro de 2015), apenas o aplicativo da Uber; depois vieram outros. Eu me tornei um usuário do 99 e creio que isso facilitou muito a minha vida.  O táxi estava muito salgado para o meu bolso e as viagens com os aplicativos se revelaram mais em conta.  

Algumas das minhas últimas crônicas, por sinal, têm sido inspiradas em conversas com esses motoristas de aplicativos. Trajetórias muito interessantes das transformações no mundo do trabalho. Às vezes relatos heroicos, de trabalhadores autônomos que se enxergam como empreendedores. Pouquíssimos se vendo como trabalhadores precarizados, sem amparo na legislação trabalhista.

Na reportagem a respeito do surgimento da Uber, destaque para “carros em boas condições e oferta de balinhas e água”, mais motoristas “com trajes mais formais”. A primeira vez que utilizei esse serviço foi para ir a um show dos Rolling Stones, no Estádio Beira Rio, com meus dois filhos e a mãe deles. A minha filha chamou o carro por um aplicativo no celular e eu achei aquilo coisa d’Os Jetsons (desenho animado da década de 1960 ambientado num cenário futurista). O motorista todo alinhado ofereceu balinhas e água e eu nem sabia o que era aquilo. Minha filha me mostrou que era mais barato que um táxi (e mais acessível, mais cômodo) e fiquei espantado com as vantagens. Mas levei um bom tempo para utilizar o serviço.

De certa forma, eu reagi contra essas mudanças socioeconômicas que transformaram radicalmente o mundo do trabalho. Os motoristas de aplicativos como um emblema dessas mudanças: trabalhadores submetidos a grandes empresas, mas com roupagem de empreendedores privados. Versão urbana dos plantadores de fumo (pequenos proprietários rurais) submetidos à Souza Cruz. Um perfil novo da dominação do Capital, que tenho dificuldade em compreender. Meu entendimento do mundo está vinculado a um padrão superado (ou pelo menos colocado em cheque) pela nova ordem neoliberal.

Minhas conversas com os motoristas de aplicativo, muitas vezes, vão nesse sentido: como eles se colocam no mundo do trabalho. A maioria endossando a ideologia do empreendedorismo, um e outro lamentando o fato de serem trabalhadores sem proteção social.[2] Alguns foram operários, participaram do movimento sindical, e encaram a situação de forma diferente. Eles entendem o processo da precarização. Mas são poucos. Muito poucos.

A reportagem do jornal também destaca uma “queda de qualidade”, mas isto os aplicativos resolveram criando várias categorias de serviço. A mais popular, claro, perdeu o charme de dez anos atrás. Então, se o usuário quer um carro melhor (pra não sujar sua roupitcha ou entrar em contato com o mundo mais rude da classe trabalhadora) pede uma categoria mais alta e está tudo resolvido.

É impressionante a capacidade de reinvenção do Capitalismo.



[1] AIRES, Anderson. Transporte: o app que mudou a mobilidade urbana na capital. In: Zero Hora, P. Alegre, 21/11/2025. P. 16-17.

[2] Quando escuto um desses trabalhadores falarem das vantagens da “flexibilização” e criticando a Legislação Trabalhista, lembro do Fernando Henrique Cardoso propondo o desmantelamento da herança varguista, na década de 1990. FHC conseguiu.

domingo, 30 de novembro de 2025

O Velho

           O Velho morreu quando eu tinha três anos de idade. De tanto o pai e a mãe contarem como eram as visitas que fazíamos quando ele estava doente, parece que vejo tudo. Vejo o corredor cumprido da casa do Velho e nós caminhando até o quarto dele. Vejo a cama no meio do quarto, o Velho estendido, de barriga para cima, ofegante, olhando o teto. Depois vamos para a cozinha e a tia nos serve salada de frutas. Eu choro porque quero só o caldo da salada de frutas, não quero as frutas, e os adultos fazem a minha vontade. A mãe conta que faziam isto para eu parar de incomodar.

Então eu fico olhando pela porta da cozinha e vejo meu irmão correndo pelo pátio. Ele pára na frente de um puxadinho construído pelo avô – um pequeno telhado escorado por dois dormentes da estrada de ferro, com um tanque de lavar roupa embaixo – e ele fica olhando aquela pequena obra com uma espécie de veneração. Mais tarde eu também vou andar pelo pátio e parar na frente do tanque e passar a mão nos dormentes. Aquilo foi obra do Velho nos tempos áureos, isto é, quando era um homem vigoroso. O Velho pertencera aos quadros da Viação Férrea e trouxera os dormentes para casa, justamente para aquela obra. As tias sempre contavam essa história.

Na última vez que visitei a casa, poucos anos atrás, fiquei caminhando pelo pátio e lembrei do Velho. Ele chegou ao Brasil no final do século XIX. Meu sobrinho foi a São Paulo, vasculhou nos documentos da Hospedaria do Imigrante e descobriu a data certa: 20 de agosto de 1888. A abolição dos escravos acontecera naquele ano, meses antes. O avô chegou com o pai, a mãe, uma irmã menor e foram trabalhar numa fazenda de café, em Sorocaba, substituindo a mão-de-obra escrava.

Quando meu sobrinho enviou por e-mail os documentos, lembrei do que o pai contava:

– Os italianos chegavam para trabalhar nas fazendas e descobriam que, antes deles, quem fazia o serviço eram negros escravizados. 

A história do Velho foi toda contada aos pedaços. Há anos venho juntando as partes e cada vez o resultado sai diferente. O Velho – que começou a trabalhar quando era criança – colheu café em fazenda paulista, depois foi para a cidade e começou a atuar numa companhia de navegação. Os navios subiam o rio Tietê, entravam no Mato Grosso e ele pegou malária. O médico falou que ele não podia ter malária novamente e o mandou para um lugar onde não houvesse a doença. Por isso ele veio para o Rio Grande do Sul

Na década de 1920, o Velho chegou a Santa Maria e se tornou funcionário da Viação Férrea. Na década seguinte, estava estabelecido em Pelotas. Ascendeu ao posto de Engenheiro Prático – um tipo de engenheiro que não tinha diploma universitário (depois esses engenheiros foram substituídos pelos diplomados) – e se aposentou nos anos 50.

Era um homem severo, o pai contava. Chegava do trabalho sujo de graxa e jogava a roupa para as filhas lavarem. Queria tudo bem limpo. Gostava de camisas brancas, com punhos e colarinho engomados, e essas eram as peças que primeiro sujavam. As filhas se revezavam no tanque e depois passavam e engomavam. Deve ter sido por isso que ele trouxe os dormentes da estrada de ferro e fez aquele puxadinho no quintal da casa. Ali, as minhas tias penavam, inverno e verão. Não era fácil tirar o encardido das roupas, elas contavam.

O Velho gostava de se vestir bem. Dizia que era assim que um Engenheiro Prático precisava se apresentar, principalmente depois que os engenheiros diplomados começaram a ocupar os lugares de mando. O Velho sabia que estava perdendo espaço e lutava, com unhas e dentes, para manter sua posição. Fora assim que deixara de ser trabalhador rural e se tornara operador de máquinas, trabalhando em navio, e depois em locomotivas da Viação Férrea.

– Teu avô era um homem severo e intransigente – o pai contava, com orgulho. E com os olhos marejados de lágrimas. Afinal, a dureza do Velho não se refletia apenas no trabalho. Em casa, ele era rígido na educação dos filhos. Batia por qualquer falha que alguém cometesse. Tirava o cinto das calças e o sentava no laço no lombo dos filhos. Mas cuidava para não bater com a fivela, o pai observava. Dobrava a cinta para que a fivela ficasse presa na sua mão.

 – Quando alguma coisa não era feita como ele queria, o Velho gritava e batia – o pai explicava. – Mas depois envelheceu, enviuvou e ficou manso como um cordeirinho. Gostava que as noras sentassem ao seu lado e conversassem com ele. A tua mãe chegava perto da cama, te levantava e mostrava pra ele. “Este é teu neto mais novo”, ela dizia.

           Eu na certa esperneava. Não gostava daquele homem velho, feio e doente. Minha mãe me colocava no chão e eu corria para a cozinha. Chorava pedindo isto e aquilo e os adultos me atendiam para que eu me calasse e não atordoasse os ouvidos do Velho. Pois o Velho tinha muita dor. Ficava deitado de barriga pra cima, as mãos em cima do peito, os olhos fixos no teto.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Visconde de Taunay

 

Visconde de Taunay (Alfredo d’Escragnolle de Taunay) foi um aristocrata brasileiro, militar, político e escritor, nascido no Rio de Janeiro, em 1843, e falecido na mesma cidade, em 1899. Neto de um dos principais pintores da Missão Artística francesa de 1818, foi criado em ambiente muito culto e destacou-se pelo seu refinamento nas artes. Militar, participou da Guerra do Paraguai e deixou relatos famosos a respeito dos episódios em que se envolveu. Fazia parte do repertório de autores/historiadores que comecei a ler na juventude, mas, naquela época, não li do início ao fim o seu clássico A retirada da Laguna, muito complicado para o leitor de 15 anos que eu era. Descrição de operações militares não são fáceis de compreender.

Pois durante a última Feira do Livro de Porto Alegre, passei pelo estande do Senado Federal, encontrei um volume do famoso Visconde e me veio à lembrança o adolescente que fui, com a cabeça enfiada em livros sobre campanhas militares: a Guerra da Cisplatina, os embates com Rosas, a Guerra do Paraguai.

O livro que me chamou atenção foi Recordações de guerra e de viagem, de Taunay, e trouxe para casa. Tive que ler para pagar a conta das minhas pretensões juvenis: a de entender o mundo militar, o assombroso universo das guerras.

TAUNAY, Visconde de. Recordações de guerra e de viagem.
Brasília: Senado Federa, 2008. 174 p.

O livro é composto de duas partes: a primeira, com as reminiscências do autor da Campanha da Cordilheira (a última operação militar na Guerra do Paraguai) e, a segunda, constituída por crônicas feitas durante uma longa viagem pela Europa. Um aristocrata brasileiro refinado descrevendo com elegância tanto a fase final de uma brutal guerra sul-americana quanto as suas andanças pelos espaços da cultura (galerias de arte) e da inovação industrial (Exposição Universal de Paris) na Europa de 1878 e 79. O horror da guerra e os requintes da Civilização Ocidental.

Desta vez li um relato militar de Taunay do início ao fim (paguei a conta que abri quando adolescente), mas recomendo apenas para aficcionados em História. É uma memória bem escrita, mas um pouco chata quanto ao registro militar, deslocamento de tropas e batalhas. Trata-se da fase mais sombria da Guerra do Paraguai (a caçada ao ditador Solano Lopez), quando o inimigo estava destroçado, tanto a população civil quanto o efetivo militar (os civis reduzidos “ao último grão da miséria” e as tropas compostas em grande número por adolescentes, devido à diminuição do número de homens adultos). Quanto à segunda parte, o registro do deslumbramento de um homem de cultura em relação as maravilhas europeias, em especial a sua produção artística. Assuntos que só agradam a estudantes e professores de História e olhe lá.

Em 1869, o Conde d’Eu foi nomeado pelo imperador para encerrar o conflito com o Paraguai (ir atrás de Solano Lopez) e o conde convidou Taunay para ser seu secretário particular. São dessa campanha as reminiscências narradas no livro, 26 anos depois. Em 1878-79, o autor viajou pela França, Alemanha e Itália e de lá enviou para um jornal brasileiro crônicas a respeito dos seus passeios e divagações culturais. A guerra e a arte numa composição muito original.

Na Campanha da Cordilheira, o autor se comoveu com os meninos que viu mortos no campo de batalha por bala e lança. Um dia, após a tomada de uma vila, é encontrado numa casa um piano “bastante bom e afinado” e o autor se põe a tocar durante mais de duas horas. Havia um cadáver paraguaio na sala e ele manda retirá-lo para não empestar o seu momento de distração.

Como sempre teve um interesse especial por pintura, comenta o episódio que inspirou Pedro Américo para compor o seu quadro A batalha de Campo Grande: o momento em que o Conde d’Eu é surpreendido pelo ataque de um batalhão paraguaio e investe contra o inimigo montado no seu cavalo branco com a espada desembainhada. No quadro, a investida do conde é arrojada, expressa tanto no seu porte imponente quanto no corpo do cavalo empinado. O autor comenta, no entanto, que o animal era manso, “calmo no meio do fogo [das balas]” e não se empinaria da maneira como o pintor o representou. “Enfim exagerações do artista”, conclui Taunay.

Nas crônicas a respeito da sua viagem à Europa chama atenção o seu encantamento com a pintura: a produção dos artistas festejados nos salões de arte oficial de Paris (como J.G. Vilbert, com Apotheose de Thiers) e a dos renascentistas (vistos como fundadores da civilização moderna). Rafael é seu pintor predileto e ele vai à Dresden apreciar a famosa Madona de São Xisto, a qual descreve como “de uma beleza imensa, puríssima, etérea, toda ideal”. Seu entendimento de arte privilegiava a representação do Ideal, “a maior aspiração humana”, e ele vê na pintura de Rafael a maior concretização desse projeto.[1]

Um dia é convidado a um baile no Palácio de Versailles, um evento com cerca de vinte mil convidados, e vai com mais quatro companheiros. O palácio está transformado num “aperto (...) [de] proporções assustadoras” e a festa vira um suplício. Quando, enfim, chega à Sala dos Espelhos, onde acontecia a dança, o local estava tão cheio “que os valsistas giravam no mesmo lugar” e não dava para ficar. Ele e os amigos desistem do baile e voltam para o hotel arrependidos de terem aceito o convite.

O registro de uma vida que circulou por realidades contrastantes da nossa civilização: tanto os horrores de uma campanha militar quanto os requintes de uma exposição de arte na “capital artística do universo” (Paris). A morte de meninos no campo de batalha e o prazer de apreciar a arte acadêmica do século XIX e também as pinturas que marcaram a fundação da nossa civilização, as “criações puras” de Giotto e Rafael.

Uma leitura instigante, que me colocou diante do adolescente que eu fui, que se iniciou na leitura da História a partir dos registros de guerra, uma realidade que o Visconde de Taunay conhecia muito bem.

A única nota triste da edição lida é a revisão. Péssima. Incrível a editora do Senado Federal não investir nesse trabalho tão importante.



[1] Curiosamente, ao comentar a forma idealizada como Pedro Américo representou a disposição guerreira do Conde d’Eu, na Batalha de Campo Grande, o mesmo procedimento artístico lhe pareceu inadequado, exagerado.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Vida de professor

 

Gilmar era professor de educação física e fomos colegas numa escola estadual no Bairro Harmonia, na divisa com o Bairro Mathias Velho (Escola Afflonso Charlier), em Canoas, no início da década de 1980. Ele era um jovem de menos de 30 anos, já lecionava no local há um bom tempo e o conhecia muito bem. Me falava da direção, dos colegas, dos alunos, e também do entorno da escola, que era enorme, tinha um campo de futebol, e, lá nos fundos (por trás da tela de arame), abrigava um ponto de encontro de drogados. Um problemão. Gurizada que se injetava uma medicação comprada nas farmácias da cidade de forma clandestina e a polícia não sabia o que fazer. Essa gurizada arrebentara a tela de arame que servia de muro e às vezes andava pelo pátio causando problemas. Um mundo que eu desconhecia. Certa vez reparei nos pés de uns desses drogados e eles eram deformados pelas picadas das seringas de drogas, uma imagem do Inferno de Dante. A droga também envolvia a economia da cidade e Gilmar me passava informações a respeito de como circulava o produto. Algumas farmácias faturavam com o comércio da medicação.

Pois dia desses peguei um aplicativo, comecei conversando com o motorista a respeito da enchente de 2024, comentamos a respeito da situação dramática do Bairro Mathias Velho, que literalmente submergiu com as águas, e ele me disse que teve um tio que lecionou educação física a vida inteira numa escola estadual da região. “Na Escola Affonso Charlier?”, eu perguntei. “Sim”, ele respondeu. “O Gilmar?”, eu arrisquei. E o motorista confirmou: “Sim, meu tio se chamava Gilmar”. A lembrança do antigo colega me veio como um filme e eu o revi chegando de moto na escola. As alunas mais salientes faziam um círculo em torno dele, pediam carona e às vezes ele carregava uma e outra. Uma tarde, depois da aula, uma delas propôs que fossem a um motel (ela devia ter uns 15 anos) e ele contava que chegou a dirigir em direção a um desses estabelecimentos, a guria sentada na garupa da moto, abraçando-o decididamente. Mas ele arrepiou ao chegar perto do motel e preferiu deixá-la em casa. A guria não entendeu a desistência (“deve ter pensado mal de mim”, ele me falou), mas o Gilmar achou que assim foi melhor. Eram uma tentação aquelas gurias, nós comentávamos. Volta e meia alguma se aproximava, se insinuava, e ele, solteiro, era um alvo aparentemente fácil. A pedofilia não era um tema muito abordado naquele tempo, a relação entre um homem maduro e uma adolescente não era vista como inadequada e/ou “estupro de vulnerável” desde que houvesse consentimento da guria, mas não era fácil encarar.

Lembrei disso cruzando Porto Alegre e falei para o motorista. O episódio casava com a imagem que ele fazia do tio, “ele não era muito namorador”, e disse que ele casara uma única vez e a coisa não durou muito tempo. Teve uma filha que na separação perdeu para a mulher, “ela a levou para a Bahia”, e viveu sozinho o resto da vida. Dedicava-se inteiramente à escola e depois à vida sindical, ao Cpers, até morrer repentinamente.

Vida simples de professor estadual, mas certamente de pequenas realizações, eu pensei, lembrando a alegria com que ele reunia a gurizada no pátio da escola e coordenava as mais variadas atividades esportivas. Os alunos o adoravam e isso todos nós, seus colegas, sabiam e até invejavam.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Guerras e revoluções (2)

 

A guerra é uma atividade masculina e as mulheres estão excluídas desse campo. Desde os tempos antigos foi assim, afirma a maioria dos historiadores, apesar de já haver contestação a respeito e os arqueólogos (em especial as arqueólogas feministas) estarem encontrando vestígios de mulheres guerreiras entre os citas, os celtas e os vikings.[1] Seja como for, fomos criados ouvindo a cantilena de que o exercício das armas é um “privilégio dos homens”. Só os homens vão para a guerra, porque eles são mais capazes, superiores, patati-patatá, e assim até o final dos tempos.

Naquelas rodas de conversa que vivi durante os verões da infância (os mais velhos sentados em cadeiras na calçada, na frente de suas casas, repassando histórias antigas), impossível imaginar mulheres guerreiras nas peleias sul-rio-grandenses. Se alguém tocasse no assunto, rapidamente alguém saltaria vociferando:  “Isso é coisa de macho, mulher não foi feita para essa brutalidades, a sua estrutura biológica e psicológica não a prepara para a atividade guerreira”.

Pois lembrei dessa conversa lendo um ensaio de Virginia Woolf publicado em 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando se respirava a possibilidade de um novo conflito bélico na Europa.[2] A escritora assistira ao entusiasmo masculino diante da eclosão da Primeira Guerra, a mortandade que veio na sequência, a incapacidade da sociedade da época em enveredar para outras formas de comportamento, sem a valorização do patriotismo guerreiro, e estava preocupada com essa corrente militarista, alimentada por “um hitlerismo subconsciente no coração dos homens”.

Na feliz síntese da autora, a guerra era um campo exclusivamente masculino, fonte de grandes emoções para os homens e meio de vazão da virilidade. Os homens seriam incapazes de desmontar essa armadilha criada por eles mesmos (a perspectiva da guerra, moldando seus corpos e mentes, levando-os à crueldade e à morte) e só as mulheres poderiam mudar isso. Virginia Woolf via o surgimento de um número crescente de mulheres independentes (mulheres instruídas que trabalhavam e ganhavam a própria vida), desvinculadas dos valores patriarcais e, por isso mesmo, com condições de enfrentar a tradição militarista que o poder masculino enaltecia. Mulheres independentes capazes de desmontarem a ordem patriarcal e, na sequência, a ênfase na guerra como atividade necessária para o exercício da virilidade.

Em 1940, durante um bombardeio nazista em Londres, a escritora refletiu a respeito do assunto (ao som das bombas explodindo pela cidade) e concluiu que eram apenas homens os que estavam lutando naquele momento, em especial os pilotos da RAF e os da Luftwaffe. As mulheres poderiam também entrar na luta (deveriam, segundo a autora), mas com outras armas: a da persuasão e da reeducação dos valores dominantes. Reeducação não apenas dos homens, instintivamente levados às práticas militares (prisioneiros dessa tradição), mas também das mulheres que aderiam aos valores patriarcais (as que encaravam o casamento como profissão e, dessa maneira, permaneciam vinculadas aos valores masculinos).

Lido hoje, tive a sensação de uma proposta muito otimista e irrealizável. As mulheres, só por serem mulheres e independentes/críticas da lógica patriarcal, seriam capazes dessa transformação radical? Os homens topariam ouvi-las, veriam sentido em escutá-las? Segundo a autora, essas mulheres transformariam a sociedade por meio de uma educação na qual as artes do domínio, da guerra e da acumulação de riquezas seriam substituídas por valores e práticas de caráter humanístico. Uma conversa bonita, é verdade, mas fantasiosa. Pensando em como a roda do mundo tem girado, com a guerra na Ucrânia, o massacre em Gaza e esta "guerra de baixa intensidade" protagonizada pelos EUA no litoral da Venezuela e Colômbia, só vejo a lógica militar se impondo e, para sustentar esse militarismo, o tradicional discurso da força, do domínio e da valentia, tal qual como eu ouvia quando criança.

A guerra não é mais uma prática exclusivamente masculina, as mulheres estão sendo incorporadas nas forças armadas de diversos países, e continua no horizonte das disputas pelo poder sobre territórios e riquezas. O guri que eu era e escutava aquelas gauchadas ocorridas nas revoluções de 1893 e 1923 tinha motivos para se assustar. Difícil escapar desse lado sombrio da humanidade.



[1] PATOU-MATHIS, Marylène. O homem pré-histórico também é mulher: uma história da invisibilidade das mulheres. RJ: Rosa dos tempos, 2022. Segundo a autora, já dá para contestar a consagrada ideia de as amazonas eram um mito grego. “Hoje, mais de mil túmulos citas e de tribos aparentadas (sármatas) foram descobertas da Bulgária à Mongólia e, em certas necrópoles, as mulheres armadas ocupam cerca de 37% do total de túmulos.” (p. 198)

[2] WOOLF, Virginia. As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra: patriarcado e militarismo. BH: Autêntica,  2019.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Guerras e revoluções (1)

 

Na década de 1960, eu morava na zona do porto, em Pelotas, e no verão, ao anoitecer, as pessoas colocavam cadeiras na calçada. Os mais velhos se reuniam para conversar e eu gostava de ouvir suas histórias, especialmente quando o assunto enveredava para as guerras e revoluções que ocorreram no Rio Grande do Sul. Criança, eu achava que aquilo tudo acontecera há pouco tempo e fora até presenciado & vivido pelo meu pai, meu avô e os vizinhos.

Era o período inicial do Regime Militar, de caça e perseguição aos comunistas, e levei anos para distinguir esses acontecimentos recentes daqueles outros, a Guerra da Cisplatina, a Revolução Farroupilha, a Revolução Federalista e a de 1923. Guerras e revoluções se colocavam diante de mim como uma herança histórica que se prolongava no presente e exigiam resposta. Eu não escaparia dessa experiência, imaginava. A roda do mundo era essa: guerras e revoluções a exigirem dos homens comprometimento e valentia. O serviço militar como a primeira prova a ser enfrentada.

– Aí tu vais ver o que é bom pra tosse – alguém dizia, indicando o que me esperava no futuro: o aprendizado com as armas, as sofridas jornadas em manobras militares e o domínio do corpo e da mente para o enfrentamento militar com o inimigo. Experiências limites nas quais se confirmaria (ou não) a minha virilidade.

Minha avó colocava a revista Cruzeiro na roda e apontava as fotos dos soldados brasileiros (por volta de três mil), enviados pelo presidente Castelo Branco, para participar de uma intervenção militar na República Dominicana, liderada pelos EUA/OEA. Ela atualizava o tema “guerras e revoluções”, tirava-o do século XIX e início do XX, e trazia-o para a contemporaneidade.

A República Dominicana fora “tomada por comunistas”, segundo as proclamações da OEA (Organização dos Estados Latino-Americanos), e era preciso colocar essa gente a correr, “salvar os valores da Civilização Ocidental”. Ouvi muito essas lorotas. Essa invasão durou pouco mais de um ano (1965 e 66), provocou dois mil mortos e consolidou uma ditadura que reprimiu as forças democráticas populares (difícil chamá-las de comunistas). Minha avó temia que o seu filho (então capitão do Exército) fosse enviado para a ilha caribenha e tratava do assunto com olhos aflitos.

Por outro lado, meu pai cochichava com minha mãe a respeito do irmão brizolista, que desaparecera logo após o Golpe Militar de 1964, “envolvido na subversão”, e só um ano depois deu as caras. Nem a família sabia por onde andara. Fora preso, desaparecido, inclusive numa fortaleza na Baía da Guanabara (o Forte da Laje, ele me contou anos mais tarde), e apareceu num quartel de Pelotas, onde fui visitá-lo com uma das suas irmãs (a tia Landa).

Guerras e revoluções da história sul-rio-grandense eram assunto nas rodas de conversas, nos verões da minha infância, e se atualizavam com o Golpe Militar, as perseguições políticas, e o alinhamento brasileiro aos Estados Unidos na “luta contra o comunismo”. Criança, eu fui instigado pelo tema e levei anos para entender do que se tratava. Além dos fatos políticos-militares, eles indicavam a construção de um comportamento masculino ao qual eu estava fadado a cumprir. Um dia, os acontecimentos iriam exigir coragem e valentia daquele menino franzino que eu era. Crescer, tornar-se um homem, era aprender a manejar armas (uma faca, um revólver, um fuzil) e saber arriscar a vida em combate. Haja capacidade para tantos desafios.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Hermes, motorista de aplicativo

 

Fiz uma viagem de Uber até o Shopping do Pontal e o motorista me falou da sua vida. Li no aplicativo que ele se chamava Hermes, perguntei se os seus pais gostavam de mitologia grega e ele disse que não. O nome era uma homenagem a um tio. Mas disse que há uns anos atrás namorou uma professora de História e ela lhe falou a respeito dessa divindade do Mundo Antigo.

Era uma mulher sofisticada e culta, recém separada, e uma amiga comum fez a ponte entre os dois. “Ela já teve dois casamentos, que eu não entendi direito como terminaram, mas é boa pessoa, tu vais ver”, ela me disse.

Hermes foi conferir a mulher que, “apesar dos 54 anos, estava bem na foto" e gostou. Tiveram um relacionamento rápido e ele aprendeu coisas sobre mitologia grega que nem suspeitava. Afinal fora um menino da região das Missões, estudara mal e porcamente em escolas duvidosas e pouco sabia de História, quanto mais de História Antiga. Quando ela lhe contou que Hermes era o deus grego do comércio, protetor dos viajantes, ficou lembrando do seu tio, um simples caminhoneiro, carregando a madeira das matas da região missioneira para tudo quanto era lugar. Um negocião, na época. Hoje, provavelmente ilegal, fruto de desmatamento irregular.

“Meu nome é por causa desse tio, não tem coisa alguma a ver com mitologia. Meu velho gostava dele. E gostava também de política, me puxando para o partido dele e botando pilha pra eu entrar na peleia, coisa que eu até achei que ia dar certo. Mas me dei mal”, ele explicou. Quando namorou a professora, estava saindo dessa fase da política. Um dia foi para a casa dela (uma casa que fora do pai dela, comprada com muito suor), bebeu demais, os dois sentados numa varanda que dava para um pátio arborizado, e foi aí que ele pôs tudo a perder entre os dois.

“Ela era complicada, não beijava direito, não se entregava. Eu pensei deixá-la mais relaxada com um pouco de bebida e a estratégia deu errado. Acabei tomando um porre, dormindo no sofá da varanda, enquanto ela se fechava dentro do antigo quarto do pai dela, puta da vida comigo”, ele falou, rindo.

Tomei nota dessa história depois que cheguei ao meu destino (no Shopping do Pontal) e agora repasso nessa crônica. Anotações a respeito de Hermes, que um dia militou na política partidária, não engrenou (não conseguiu um cargo, uma função remunerada, uma fatia do bolo) e hoje é motorista de aplicativo. Sabe que seu nome remete a uma divindade grega, condutor de viajantes pelos mais variados caminhos, e às vezes desconfia que está, enfim, cumprindo o seu destino: o de conduzir passageiros pelo mundo, mais especificamente pela cidade de Porto Alegre.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Pelotas, Segunda Guerra Mundial

Terminei de ler “Trincheira tropical: a Segunda Guerra Mundial no Rio”, de Ruy Castro (Cia. das Letras, 2025,  414 p.) e lembrei do que meus pais falavam a respeito do conflito mundial. Eles nasceram na década de 1920 (o pai, em 1924; a mãe, 1925) e eu gostava de os ouvir falar a respeito dessa guerra, que coincidiu com o tempo em que eram jovens.

O livro de Ruy é centrado na cidade do Rio de Janeiro, mas remete ao que era vivido no Brasil inteiro e por isso a associação. Meus pais viviam em Pelotas e igualmente experimentavam a ditadura do Estado Novo (1937-45), a simpatia de muitas figuras do governo pelo nazi-fascismo e a difícil transição da política externa brasileira de uma posição pró-Eixo para uma adesão efetiva ao bloco dos Aliados (EUA, Grã-Bretanha, URSS).  

Em agosto de 1942, quando ocorreram os afundamentos de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães na costa do litoral brasileiro, minha mãe tinha 16 anos, já era professora primária e lecionava no Círculo Operário. “Alunos terríveis”, ela contava. Sabia da guerra na Europa “porque todo mundo falava”, mas não tinha uma ideia clara do conflito. Só compreendeu mesmo muito mais tarde, lendo livros e assistindo filmes.

Quando presenciou as depredações de lojas e residências de alemães e italianos que ocorreram na cidade (uma reação da população diante do afundamento de navios mercantes brasileiros por submarinos do Eixo), ficou horrorizada. Nunca esqueceu a invasão da casa de uma das suas professoras da Escola Complementar, filha de alemães, uma solteirona austera que alguns passaram a chamar de “nazista”. Dizia que viu invadirem, depredarem a sua casa e saírem carregando latas de óleo que a professora guardava na dispensa. “Prova”, segundo os invasores, de que ela se preparava para a escassez de alimentos que ocorreria quando o Brasil entrasse na guerra.

“E eram figuras respeitáveis que faziam e diziam isso”, a mãe explicava, acrescentando que conhecia um dos “senhores” que saíra carregando uma lata de óleo da casa da professora. Uma cena que ficou gravada na sua memória e ela nunca conseguiu esquecer.

Meu pai, por sua vez, filho de imigrantes italianos que chegaram em São Paulo no final do século XIX, nunca tocava no assunto. Ouvia minha mãe falar e ficava mudo. Tinha 17 anos naquele fatídico agosto de 1942, estudava numa escola católica (Colégio Gonzaga) e deve ter sentido de perto a fúria dos brasileiros. Mas não falava. Nunca comentou o assunto.

O Brasil enviou soldados para a Itália em 1944, para enfrentar o nazi-fascismo, e disso ele gostava de falar. Do Quinto Exército Norte-americano, ao qual a Força Expedicionária Brasileira estava subordinada. Da tomada de Monte Castelo. Dos pracinhas. E dos descendentes de italianos que foram convocados, se preparam para a guerra e não chegaram a embarcar. Ele devia conhecer alguém.

Mas meu pai morreu em 1978 e não tivemos tempo de retomar o assunto, como fiz, várias vezes, com minha mãe. Um dia perguntei a ela sobre esses descendentes de italianos que foram convocados para a FEB, se o pai conhecia alguns deles e ela não sabia. "Havia certas coisas sobre as quais o teu pai não falava", ela me disse. "O que os italianos e seus descendentes viveram, enquanto o Brasil estava na guerra com a Itália, esse era desses assuntos em que ele silenciava." 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Giuseppe Garibaldi, anticlerical

 

Giuseppe Garibaldi foi revolucionário italiano do século XIX. Maçom, anticlerical furioso e republicano engajado na luta pela unificação italiana. Sua trajetória envolveu participações em guerras em dois continentes, na Europa (Itália e França), na América do Sul (Brasil e Uruguai) e é geralmente lembrado por isso. Um guerrilheiro.

Mas, no início do século XX, entre os imigrantes italianos e seus descendentes, na região de colonização do Rio Grande do Sul, ele era um símbolo do enfrentamento ao poder da Igreja Católica. Em Silveira Martins (Quarta Colônia da Imigração Italiana no RGS) a criação de um monumento a Garibaldi na praça central da cidade, em 1910, evidenciou isto. Foi uma afronta à igreja local e o pároco Schwinn acusou o golpe, anotando o nome de seus idealizadores e os denominando “garibaldinos”. Em torno do monumento, embates calorosos entre católicos e anticlericais.

Lendo uma biografia a respeito do personagem (Garibaldi: herói dos dois mundos, de Maurício Oliveira, Ed. Contexto, 2013) recordei as discussões a respeito de Garibaldi, no Brasil, em especial entre os imigrantes. Um tema que até hoje não me abandonou. Impossível deixar de escrever a respeito.

Garibaldi nasceu em Nice, em 1807, e se criou na beira do porto. (A cidade já fora italiana, naquele tempo pertencia a França e assim permanece até hoje.) Não teve educação esmerada, mas o pai (pequeno comerciante marítimo) garantiu-lhe alguns professores particulares e, com um deles, o menino aprendeu a admirar as glórias do Império Romano. Aos 17 anos, já trabalhando na marinha comercial, visitou Roma pela primeira vez e ficou impactado com a pompa das cerimônias religiosas contrastando com a pobreza da maioria da população. A experiência lhe provocou sentimentos contraditórios e marcou o início de uma obsessão: aquela deveria ser a capital do futuro Estado italiano.

Aos 27 anos (1834) envolveu-se numa tentativa de revolta no Reino da Sardenha (liderada pela recém-criada Jovem Itália, de Giuseppe Mazzini), quase foi preso, condenado a morte, e fugiu para a América do Sul. Deu com os costados no Rio de Janeiro, encontrou outros italianos exilados e se envolveu na luta de rebeldes republicanos da província do Rio Grande do Sul (a Revolução Farroupilha). Ganhou carta de corso, se tornou responsável pela criação de uma esquadra naval para os revoltosos (que nunca passou de três embarcações) e protagonizou feitos notáveis, como a tomada de Laguna.

Encerrada a sua participação na revolta (1841) seguiu para o Uruguai (nesta época, casado com Anita) e prestou serviços à República deste país na guerra contra Manuel Rosas (presidente da Argentina). Novos feitos militares e, inclusive, a admiração do comandante da força naval adversária.

Em 1848, voltou a Itália, acreditando que a conjuntura estava mais madura para a unificação.  Sua condenação fora suspensa pelo rei da Sardenha, que começava, então, a se movimentar por uma Itália unida. Garibaldi era visto como possível aliado, mas também alguém a temer devido ao seu republicanismo.

Era um tempo de revoltas liberais e nacionalistas por toda a Europa e uma delas aconteceu em Roma. Os revoltosos chamaram Garibaldi a participar, o revolucionário atendeu ao pedido e acabou enfrentando os exércitos da França e do Reino das Duas Sicílias que vieram acudir ao papa (restaurar o Estado Pontifício). Não foi derrotado, mas obrigado a fugir com seus soldados para salvar a pele. (Nesta fuga, morre a sua esposa Anita.)

 Garibaldi enfrenta um novo exílio e volta em 1860, convidado por revoltosos sicilianos a liderar um movimento contra o Reino das Duas Sicílias, talvez o maior feito da sua vida. Recebe o sinal verde de Vittorio Emanuele II (rei de Piemonte), mas não o seu apoio oficial. Segue em frente com seus “camisas vermelhas” (Legião Italiana), obtém vitórias militares estrondosas, toma Palermo, Nápoles e entrega todo o fruto desta conquista ao rei de Piemonte, o qual, colocando-o em segundo plano, cria o Reino da Itália.

A partir daí, sua estrela de revolucionário foi apagada. Não aceitou as prebendas que visavam apaziguá-lo (torná-lo um príncipe, por exemplo) e se retirou para a sua propriedade particular na ilha Caprera. Estava decepcionado, mas não deixava de ter planos, inclusive o de conquistar Roma, que considerava a capital ideal do novo Estado italiano. Fez tentativas nesse sentido, fracassou, foi preso, criando uma comoção internacional pela sua libertação. É nesta conjuntura que Alexandre Dumas organiza e publica as memórias do herói (Memórias de Garibaldi, Editora L&PM, 1999). Quase um romance folhetinesco.

Quando a tomada de Roma aconteceu, em 1870, o rei Vittorio Emanuele deixou-o de lado, pois não queria o novo estado contaminado pelo radicalismo anticlerical nem republicano.

Até o final de sua vida, Garibaldi permaneceu coerente com suas ideias. Furibundo em relação ao poder da Igreja. No leito de morte, xingava os padres. Apesar de forte sentimento religioso (herdado da mãe, a quem sempre admirou), detestava a religião organizada e via no padre “o mais atroz inimigo do gênero humano”. Enxergava os sacerdotes como “descendentes de Torquemada” (o célebre inquisidor da Espanha) e entendia que, “somente em estado de loucura ou grave ignorância”, alguém podia pedir proteção a essa gente.

Certamente era este Garibaldi que os imigrantes italianos do Rio Grande do Sul cultuavam: o anticlerical radical, que sonhava uma nação italiana unificada sem a interferência dos podres poderes papais.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Autoritarismo em questão

             Para quem foi professor de História e gastou horas tentando entender a tradição golpista dos militares brasileiros (assim como a sua aceitação por parcelas significativas da sociedade), esta é uma semana excepcional. Um acontecimento histórico, pois é a primeira vez que militares são julgados por atos golpistas.

Para ficarmos no chamado Período Democrático (1945-1964), os militares tramaram contra os presidentes eleitos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart e nunca foram julgados por isso.[1] Obtiveram êxito em relação ao último, em 1964, quando o depuseram do poder (com aceitação de boa parte da sociedade civil) e construíram um domínio de 21 anos. Em 2018, voltaram ao núcleo do Governo Federal com a vitória eleitoral de Bolsonaro, armaram a sua continuidade por vias antidemocráticos (após a derrota eleitoral de 2022) e agora respondem por isso.

Acompanho no Facebook alguns amigos que migraram para a extrema-direita e leio que “não houve golpe”, pois “não houve tanques das ruas”. Bolsonaro e seus generais não lideraram nenhum assalto ao poder e os manifestantes que acamparam na frente dos quartéis pedindo “intervenção militar” e depois atacaram a Praça dos Três Poderes estavam apenas exercendo seus direitos de livre expressão e manifestação política. Nada mais fizeram do que uma livre manifestação democrática.

Procuro compreender a ginástica mental desses amigos para esconder a sua inclinação golpista e autoritária... mas não consigo. São contrários ao jogo democrático liberal (não aceitam o resultado das urnas, são contrários às decisões do Judiciário), mas não se percebem dessa maneira. Se entendo o que dizem, não se pensam golpistas, muito menos autoritários e nem de longe alinhados à tradição autoritária das Forças Armadas brasileiras. Quanto ao velho fascismo de Mussolini, então, se percebem completamente desvinculados.

Eu converso com uma colega (na faixa dos 70 anos) e ela revela que não torce pela condenação de Bolsonaro e seus generais. Pergunto se ela não se incomoda com a ideia de golpe de Estado tal qual foi arquitetado por Bolsonaro & sua trupe de generais e ela diz que “Lula é muito pior”. Não explica o que é esse “pior” e recordo de uma amiga (65 anos, namorada de um bolsonarista, 71) minimizando os crimes políticos de Bolsonaro. “Seria melhor que ele tivesse fugido”, ela diz, “para evitar essa confusão toda”. O namorado reúne os amigos na sua casa e passam horas discutindo “a ditadura da toga”, “a ilegalidade do julgamento”, “a falta de decência desse governo corrupto que afunda a economia do país” e “o caos que tomará conta do país com a condenação e prisão de Bolsonaro”.

Respeito às regras da democracia liberal é o que menos importa na cabeça dessa gente. Para esse pessoal, articulação de uma tomada do poder por meios não democráticos é apenas “uma narrativa da esquerda”. Uma conversa que me faz ter saudades da velha direita dos anos 1970, que se assumia autoritária, entendendo que esta é uma opção civilizacional, tal qual teorizava o velho fascismo. O presidente Ernesto Geisel, com seu projeto de “democracia conservadora”, não escondia isso.

“As massas populares não estão preparadas para a democracia”, me falava um tiozão, no final dos anos 1970, esgrimindo argumentos que remontavam à antiga Grécia e a Platão. Hoje, talvez ele defendesse a tentativa de golpe de janeiro de 2023 como uma alternativa pragmática para deter o avanço da esquerda, mesmo uma esquerda democrática (que chegou ao poder pela via eleitoral), pois, afinal, o que importa é o domínio das classes altas, melhor preparadas para o exercício do poder ou coisa que valha.

Seja como for, há ventos novos no ar. Consolida-se em parte da população a defesa das instituições democráticas como elas estão codificadas na Constituição de 1988 e segue o barco. Que Bolsonaro e sua trupe golpista permaneça condenada e impossibilitada de atuar no front político.

O recém lançado livro do historiador Carlos Fico, excelente estudo
sobre o autoritarismo das Forças Armadas brasileiras. Obra para ler
e se estarrecer com a sua atualidade.


[1] “Período Democrático” é como os anos de 1945 a 64 são denominados em muitos manuais de História do Brasil, como o de Bóris Fausto, publicado pela EDUSP em 1996 e ainda reeditado.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Golpistas no banco dos réus

 

Bolsonaro nunca escondeu a sua inclinação autoritária. Quando ele era um simples deputado federal, medíocre quanto ao seu desempenho na Câmara Federal, mas incisivo na sua apologia ao Regime Militar e à repressão da esquerda em geral, eu o citava nas aulas de História da América Latina como uma excrescência do período das ditaduras dos anos 1960, 70 e 80. Entendia que era irreversível o processo de adesão (ou pelo menos de aceitação) das Forças Armadas latino-americanas em relação à democracia liberal (nisso incluído o jogo eleitoral, a posse do candidato eleito, fosse ele quem fosse) e via Bolsonaro como um tipo folclórico, a sombra de um passado tenebroso que jamais retornaria.

Como me enganei. Não entendia, por exemplo, que a grande maioria das Forças Armadas brasileiras não via problema na tortura e tomou como um ultraje as investigações da Comissão da Verdade nomeando os torturadores do Regime Militar, executores de uma prática fundamental no combate às oposições, em especial a esquerda armada. Não sabia que os militares ainda consideravam os mecanismos da tortura como arma legítima para o enfrentamento dos inimigos e a sala de tortura como uma espécie de campo de batalha no qual o inimigo pode ser combatido. Não entendia que as técnicas bárbaras de repressão continuavam no horizonte das Forças Armadas brasileiras.

Foi uma surpresa, então, quando os militares construíram a candidatura Bolsonaro, a excrescência autoritária. Fato que se evidenciou para mim com os tuítes do general Villas Bôas em abril de 2018.

Mas dizer que “se evidenciou" é um exagero. Passei a desconfiar. Eu não conseguia acreditar que os militares estavam almejando retornar ao núcleo do poder.

Seja como for, a partir daí, mudou minha percepção da cena política e me assustei. Assisti a extrema-direita exercitar as suas técnicas de militância nas redes sociais (que capacidade de atormentar um adversário!) e fiquei com medo. Exagerando, achei que a coisa um dia podia sobrar pra mim.

Às vésperas do 7 de setembro de 2021, quando escutei meus vizinhos comentarem “é agora, vamos calar o STF”, arrepiei. Os caras estão pensando em insurreição, pensei, o Estado burguês não dá conta das suas demandas, eles querem mais. Mas sempre achando que estava incorrendo em fantasia. Ora, o neofascismo se consolidando na Presidência da República! Até quando surgiram os acampamentos na frente dos quartéis, pedindo intervenção militar para impedir o Lula de tomar posse, após a derrota eleitoral de Bolsonaro em outubro de 2022, desconfiei que a coisa não era pra valer. Será que regrediremos a 1964? Não pode.

Vi meus vizinhos irem bater o ponto no acampamento na frente do quartel da 6ª Brigada de Infantaria Blindada (na avenida Borges de Medeiros, em Santa Maria – cidade onde, então, eu morava) e fui lá duas vezes com a máquina fotográfica para registrar o evento. Levei a máquina dentro da mochila, mas não tive coragem de usá-la. Achei que os manifestantes podiam me identificar como petralha e virem pra cima de mim. Não quis encarar. Uma pena, pois esse registro faz falta.

6ª Brigada de Infantaria Blindada (antigo 7º RI). Era nesse gramado,
à direita, que estava o acampamento bolsonarista pedindo intervenção militar.
Fonte: Brenner Santa Maria (2013).
 

Relembro tudo isso agora porque, enquanto escrevo, a tropa de choque dessa trama golpista está no banco dos réus e tudo indica que será condenada: os oito líderes da tentativa golpista: o ex-presidente, cinco oficiais altamente graduados (um da Marinha, quatro do Exército), mais dois civis, sendo um deles ex-diretor da ABIN. Pela primeira vez na história da República, militares golpistas com chances de seres presos. Um fato inédito "nunca antes visto na história brasileira".

Mesmo que venham a ser anistiado daqui a alguns anos - como sempre foram ao longo da República - é um fato a se comemorar. Quem preza o jogo democrático liberal tem diante de si um fato inédito. O Estado democrático burguês resiste ao ataque fascista.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Os eunucos negros

 

Sou desses turistas que não largam a máquina fotográfica. Ao viajar, vou registrando quase tudo o que vejo e muitas vezes caminho e já vou pensando no melhor ângulo. Olho, observo, planejo a foto, e depois volto para clicar. Mas às vezes deixo passar. Simplesmente observo o local, a paisagem ou o ambiente, muitas vezes incomodado por alguma coisa.

Pois foi justamente isso que aconteceu, quando visitei o principal palácio do antigo Império Otomano (o Palácio Topkapi, em Istambul, em 2022), e adentrei o espaço dos eunucos negros, o primeiro pátio do harém. Me deparei com os alojamentos desses escravos mutilados... e paralizei. Um cartaz indicava a sua importância no local: guardas e administradores das esposas, concubinas e odaliscas do soberano. Lembrei que, além do sultão, nenhum outro homem entrava no recinto e eles garantiam isso. Uma navalha cortara os seus pênis e testículos, e dessa maneira eles se transformavam em serviçais confiáveis aos olhos do sultão. Deixavam de ser uma ameaça e passavam a ser o quê, esses homens mutilados?

Os demais eunucos (os eunucos brancos, que também exerciam funções de guarda e administração em outros espaços do palácio menos importantes que o harém) não sofriam uma castração tão radical. Perdiam os testículos, ficavam com o pênis, e há quem diga que alguns conseguiam uma ereção.

Jogos de poder não são brincadeira. Ao se constituírem estraçalham corações, mentes e até corpos. Em certas circunstância, uns perdem as bolas; outros, as bolas e o pau.

Os eunucos negros eram trazidos da África (Sudão, Etiópia e Egito); os brancos, da região do Cáucaso (Geórgia e Armênia); e tinham tratamento diferenciado.

Pavorosa, a história dessa gente. A dos negros, então, absurda. Eles tinham sido meninos no Sudão e na Abissínia, escravizados e submetidos a essa cirurgia na puberdade (geralmente no Egito), cortados com navalhas de pouca precisão, “anestesiados” com álcool, ópio e compressas frias, cauterizados com ferro em brasas, e a maioria (entre 70 a 80%) morriam de infecção ou hemorragia. Os que sobreviviam eram levados a Istambul, ganhavam voz fina e geralmente ficavam obesos e disformes (neste último caso, devido ao desenvolvimento anormal dos ossos).

Alguns se tornavam chefes da guarnição dos eunucos e adquiriam um poder que os ombreavam a vizires e generais. Houve casos de eunucos poderosos e famosos, como Beshir Agha (durante o reinado do sultão Mahmud I, entre 1730 e 1754), mas a maioria apenas serviu ao sultão, engordou, rezou (eles se tornavam muito religiosos) e aprendeu a urinar de modo pouco natural para um homem. Pessoas mutiladas.

Foi essa história que me horrorizou e paralisou naquele pátio do Palácio Topkapi. Não fotografei o local. Pulei essa parte e a relembrei outro dia, quando pensava a respeito desses terrores masculinos: os da castração e que muitas vezes se efetivaram ao longo da História, na China, na Igreja Católica (para preservar as vozes agudas dos meninos, nos corais) e também no Império Otomano.

No episódio do passeio turístico pelo Topkapi, logo superei o espanto e as reflexões sombrias, pois o local é belíssimo. E, no imenso labirinto que é esse complexo palaciano (por volta de 400 quartos), me deparei com um salão imperial (com destaque para o trono sobre um estrado), de decoração luxuosa e primorosa, utilizado tanto para cerimônias oficiais quanto para o entretenimento das mulheres e do sultão. Que deviam se divertir à beça naquele local, protegidos por homens negros mutilados, sem pênis e sem testículos.

Salão imperial. Palácio Topkapi, Istambul.