quarta-feira, 16 de abril de 2025

Aprendendo com a deusa Ísis

 

Em maio de 2023, estive no sítio arqueológico de Dion, na Grécia, localizado ao sopé do Monte Olímpico, a montanha que servia de moradia aos deuses gregos, Zeus e sua turma. Só existem ruínas, nenhuma parede de templo religioso erguida e haja imaginação histórica para reconstruir o que deveria ser o local. Parei no local onde se encontrava o Templo de Zeus e foi um cartaz com desenhos e legendas que me deu algumas ideias do que deveria ser o lugar: a monumentalidade do prédio, o local de sacrifício de animais e as cerimônias de adoração. E confesso que fiquei um tanto decepcionado. Difícil entender a Grécia Antiga.

Felizmente a visita foi completada pela ida ao museu do sítio arqueológico e as peças ali encontradas – as esculturas e os ornamentos escultóricos dos templos – funcionaram como um bálsamo, isto é, possibilitaram um contato mais efetivo com essa antiga civilização. Não encontrei nenhuma escultura de Zeus que me encantasse (talvez exista, não sei – é tanta coisa que não dá para prestar atenção a tudo) e fui fisgado pelo material a respeito do Templo de Ísis. A representação grega da deusa egípcia que se encontrava na fachada do prédio (foto abaixo), mais uma escultura da deusa do amor (Afrodite Hipolimpídia), mandada instalar ao redor do prédio religioso, na mesma época da sua construção (século II a.C.).

Admirei as esculturas e lembrei os estudos de Plutarco, complicadíssimos, a respeito da deusa, seus ensinamentos religiosos, mais as reflexões filosóficas do autor abordando as voltas que os iniciados nos Mistérios de Ísis davam para adentrar nas verdades dadas a conhecer pela divindade.

Não, eu nunca compreendi a complexidade da religiosidade do Mundo Antigo. Meu conhecimento se limitou às generalidades e, mais do que tudo, fiquei restrito ao encantamento com a deusa. Visitei o seu famoso Templo de Philae, no Egito, e foi emocionante. Toquei as pedras que tanto peregrinos tocaram e pronto. Resumindo, não passei de um estudante de primeiras letras a respeito dessa crença que se expandiu do Egito para o mundo greco-romano. Mas um estudante que, ao final, aprendeu o seu lugar.

No Museu Arqueológico de Dion, senti o silêncio austero da deusa e me dei conta do meu lugar no mundo, isto é, o meu tamanho e limitação. Uma lição de humildade que à princípio vivenciei com tristeza e só hoje consigo dizer que não era para tanto. Afinal reconhecer a nossa condição humana, finita e limitada, não é uma aprendizagem banal. É um exercício de sabedoria também. Talvez um dos mais importante para um bem viver.


Observação: Plutarco foi um historiador grego que viveu entre 46 e 120 d.C. Seu tratado sobre Ísis e Osíris é uma das principais fonte de informação a respeito da deusa. E os ritos iniciáticos que aborda (os Mistérios de Ísis) é uma criação grega feita quando o culto a essa divindade egípcia se difundiu pelo mundo mediterrâneo no século IV a.C. Haja engenho e arte para decifrar as maravilhas dessa deusa.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Adolescência

 

Assisti a minissérie “Adolescência” e fiquei impressionado com o personagem principal: o menino de 13 anos de idade que esfaqueia a coleguinha de escola. A princípio entendi que o motivo do assassinato era o fato de a menina ter esnobado e humilhado o rapazinho de cabeça quente, mas logo descobri que o buraco era mais embaixo. O crime não decorreu apenas da fúria do gurizinho rejeitado, mas foi alimentada por uma subcultura extremamente machista e antifeminista de ampla circulação nas redes sociais. Uma subcultura que, mais do que a família e a escola, é o que faz a cabeça de muitos adolescentes contemporaneamente. A minissérie é ambientada no Reino Unido, mas tudo indica que pode ser ampliada para o mundo ocidental em geral (o mundo formatado pelo universo da Internet).

Eu não fazia ideia da abrangência desses “discursos de ódio” em relação às mulheres divulgado por influencers do tipo de Andrew Tate, citado na minissérie e que eu nem sabia da existência. Sou um velho de 69 anos sem muito treino nas redes sociais. Utilizo o Facebook, me atrapalho com o Instagram e não participo de fóruns de debates on-line ou coisas do gênero (apesar de manter um blog de crônicas).

Dessa maneira, como sujeito despreparado no universo alucinante da Internet, foi fundamental para eu entender a minissérie a cena apresentada no segundo episódio, no qual o policial que investiga o crime recebe uma verdadeira aula do seu filho a respeito do que rola no Instagram e faz a cabeça da meninada da escola. Isto é, o filho do policial (que estuda na mesma escola do menino assassino) explica ao pai o que é a cultura machista e antifeminista que circula fora do radar dos pais e professores. Apresenta (didaticamente) o caldo cultural que serve para o menino e seus amigos articularem as suas dificuldades de identidade e comportamento sexuais. A gurizada acredita numa bizarra crença na qual as mulheres só se interessam por 20% dos homens, deixando os outros 80% chupando o dedo, e reage violentamente em relação a isso. Uns rapazes que sentem a sua masculinidade colocada à prova e entendem que precisam enfrentar essas mulheres que os desprezam, puni-las inclusive. Mostrar valentia. Usar armas para assustar. Faca, como a que é utilizada pelo assassino, que, segundo relato do amigo que empresta a arma, seria utilizado para ameaçar e não para matar.

Cena de "Adolescência": o inspetor policial recebendo uma aula do seu filho
a respeito do que rola nas redes sociais.

Mundo cão. Os rapazes em formação, preocupados com a sua macheza (“Sou atraente ou não para as mulheres?”), alimentados pela tal teoria dos 80/20, se sentem acuados e metem os pés pelas mãos. É o que acontece com o gurizinho de 13 anos. Seu sentimento de desvalia diante da menina que o faz de “corinho” (na linguagem dos anos 60 e 70; bullying na expressão atual) se articula com a cultura machista e antifeminista e dá no que dá: uma reação violenta que resulta em assassinato. O antifeminismo legitima a raiva que ele sente e o guri nem percebe que se torna um criminoso. Só cai a ficha após meses de cadeia e a proximidade do julgamento. Demora para o menino se perceber um assassino.

Penso que nenhum espectador sai o mesmo depois de assistir à minissérie. A emancipação feminina abalou as estruturas da sociedade tradicional, está reorganizando os papéis de gênero, mas muitos de nós não imaginavam que tantos homens fossem reagir a isso de modo tão violento. É esse caldo cultural (a revolução feminista, seus desdobramentos) que abala o personagem central da minissérie, um frágil e furioso adolescente acossado pelas transformações comportamentais. Fúria e fragilidade que encontra nos “discursos de ódio” um modo de se expressar. (O terceiro episódio, o da sessão do jovem assassino com a psicóloga, evidencia a fúria do frágil adolescente. Sua pergunta final, se ela gosta ou não dele, escancara a sua carência. Uma verdadeira cena de horror psicológico.)

A minissérie só não precisava pegar tão pesado com os pais, como ocorre no último episódio. Os velhos não merecem mais essa lambada. Já nos sentimos responsáveis demais pelas angústias e descaminhos da juventude.

sábado, 5 de abril de 2025

Novela juvenil

             Quando estava na terceira série ginasial, botei na cabeça que iria ser escritor. O professor de Língua Portuguesa sugeriu a prática do diário como exercício da escrita e segui o conselho. Décadas depois, peguei o material e o utilizei como matéria-prima para uma novela juvenil, que intitulei “Jorge encontra Lilian”.

Jorge, o narrador adolescente, se interessa por uma guria chamada Lilian e vive o despertar em relação ao sexo oposto. Não rola muita coisa entre os dois, eles dançam, mal se tocam, mas acontece de tudo dentro do rapaz e ele registra essa transformação no seu diário. Um texto intimista.

No final dos anos 90 eu publicara dois paradidático pela Editora FTD (“O mundo grego”, 1996, e “Quando os holandeses invadiram o Brasil”, 1998) e aproveitei para apresentar a minha ficção. A responsável pela literatura juvenil me chamou, disse que o texto era bom, mas não vendia. O mercado editorial mudara e o leitor juvenil queria temas mais fortes, como violência urbana, consumo de drogas, gravidez indesejada, Aids e assim por diante. Lembro que voltei de São Paulo (de ônibus) lendo livros juvenis com esse tipo de pegada.

Apresentei o texto para o Walmor Santos, meu antigo colega de oficina literária na PUC/RS, e ele também não topou. Walmor vinha fazendo sucesso com a sua editora, a WS, vendendo bem literatura juvenil nas escolas do Rio Grande do Sul, e sabia das coisas. Tivemos uma conversa telefônica memorável e ele me disse que faltava tempero. O personagem precisava beijar a menina, talvez transar, ao menos tentar, e fez um monte de sugestões para apimentar o texto. Mas não acatei. Eu queria a minha novela daquele jeito antigo, intimista, e parti para a edição independente.

Organizei o livro com ajuda dos amigos e mandei imprimir mil exemplares na Gráfica Pallotti, em Santa Maria. Fui à luta. Tive o apoio de professores de Ensino Fundamental em relação à novela (em especial do Colégio Nossa Senhora de Fátima, em Santa Maria) e consegui vender por volta de 800 exemplares. O restante distribuí gratuitamente. Hoje só tenho dois exemplares. Um sucesso, considerando o fato de ser um livro independente.

"Jorge encontra Lilian", edição independente, 1998.
Capa: Renato Valderramas.

Não era o meu batismo de fogo, mas a impressão que ficou é a de ter sido a minha maior peleia literária. Como o livro era adotado nas turmas de sétima e oitava séries, muitas vezes fui às escolas conversar com os alunos. Uma leitora reclamou que “não rolava nem um beijinho entre os personagens” e eu achei essa a melhor síntese da novela. “Sim”, eu disse, “o encontro se dá sem que ocorra muito contato físico.”

Eu tinha treze/catorze anos quando escrevi aquele diário que serviu de base para a novela e não sabia o que era beijar. Ao reescrever, nos anos 1990, me deparei com a paixão platônico que vivera (conheci a menina numa quermesse de colégio, nunca falei com ela) e fiz o personagem ir além, isto é, conversar e dançar com a guria. Depois ligar para ela e convidá-la a um cinema. Ter a ousadia que não tive. E terminei por aí a minha ficção. Um livrinho muito bem-comportado. Uma novela juvenil onde não rola um beijinho.

domingo, 23 de março de 2025

Pescar na beira do Canal São Gonçalo

 

No início da década de 1960, como a maioria da gurizada que morava na Zona do Porto, em Pelotas, pesquei nas margens do Canal São Gonçalo (que a gente chamava de rio, mas que nunca passou de um canal natural de ligação entre as lagoas dos Patos e Mirim). Um canal que diziam ser de pouca fundura e de correntezas fortes.

A pouca fundura explicava a impossibilidade de grandes navios chegarem ao porto. As correntezas, a necessidade dos pescadores utilizarem chumbadas pesadas para as águas não levarem suas linhas.

Relembro essas informações e escuto os mais velhos falando: as águas do canal, a importância disso para a história da cidade (desde o tempo das charqueadas), a construção do porto, as pescarias e as travessias a nado de um lado a outro do rio.

Meu pai, quando jovem, era desses que atravessavam o canal. Um feito grandioso que eu, menino, achava o máximo e nem imaginava imitar. Nós frequentávamos o Clube de Regatas que havia nas margens do canal, e o assistia mergulhar da plataforma de trampolim. Ele andava por volta dos 40 anos e ainda era capaz dessas áfricas.

Também o admirava preparando a linha de pesca para jogá-la no canal. O exame atento em relação ao peso das chumbadas, a colocação das iscas e depois a ginástica de rodopiar a linha com a mão direita, ao lado do corpo, dar força a ela e lançá-la ao fundo das águas. Uma ginástica olímpica, aos olhos do menino que eu era. Artes de um atleta grego em algum campo de provas da Grécia Antiga.

Lembranças das minhas perplexidades de menino na beira do Canal São Gonçalo. Coisas de guri e de sua relação com o rio e o pai. As águas caudalosas e piscosas do rio, a grandeza e os feitos heroicos do pai (não deixo por menos).

No final da década de 1970 ele veio a se suicidar e hoje, quase cinquenta anos depois, ainda sou capaz de reviver a mesma surpresa e dor que sua morte causou. Como um corpo com tamanha vitalidade no trampolim do Clube de Regatas e nas pescarias na beira do rio pode colocar um fim na sua vida de modo tão abrupto e descabido?!

Como a maioria dos guris que moravam na Zona do Porto, em Pelotas, pesquei nas margens do Canal São Gonçalo. Gurizada de infância simples, filho de um bancário e uma professora primária, com dois irmãos (um mais velho, outro menor), porém com um tesouro guardado na memória: meu pai girando a linha com a mão direita e depois a lançando no ar. Graças a chumbada, ela voava, caia no rio e, logo depois, era capaz de ter um dos seus anzóis mordido por um bagre.

Local das pescarias de infância. Foto de 2023.


quinta-feira, 20 de março de 2025

Voltar a morar em Porto Alegre

 

Voltei a morar em Porto Alegre, depois de 33 anos em Santa Maria, e preciso dizer isso a mim mesmo.

Nasci em Pelotas, morei onze anos naquela cidade, e vim com a família para a Capital, em 1967. Um exemplo da migração das populações das cidades do interior para as grandes capitais que ocorria no país inteiro. A busca por alternativas de ascensão econômico-social que o interior não tinha condições de oferecer.

No caso de meu pai, pesava a sua situação de bancário, categoria que estava com os salários arrochados e da qual ele se desiludira. Recordo que ele era vinculado a uma iniciativa cooperativista no banco em que era empregado e essa ação dera com os burros n’água.

A mãe era professora do Magistério Estadual e permaneceria como tal. Ela resistia a mudança, mas entendia que Porto Alegre era melhor para o marido e os filhos (neste último caso, um tratamento mais adequado para o filho mais velho, diagnosticado com reumatismo juvenil).

A família não se deu mal. Creio que os novos ares foram bons para todos.

Cursei o primeiro ano do Ginásio no Colégio Rosário e pegava o bonde todos os dias. Uma novidade completa para mim. O Túnel da Conceição não existia (as obras iniciariam em 1970), mas os moradores antigos já falavam que a cidade estava deixando de ser uma província. Havia um clima de modernidade que se refletia nos costumes (“Novos valores, novos comportamentos”, dizia a prima Carmen Lúcia) e logo os bondes seriam tirados de circulação.

Enquanto isso, na política, os militares dominavam e conduziam o país para uma ditadura, o que ocorreu de fato em dezembro do ano seguinte, com a promulgação do AI-5. Eu não sabia o que era autoritarismo, mas começava a entender o que era repressão. Certo dia, andando pelo centro da cidade, assisti de longe a polícia lançar bombas de gás lacrimogênio numa passeata de estudantes e descobri que protestar era perigoso. Logo me avisaram para manter distância em relação aos “subversivos” e segui o conselho.

Completei o Ginásio no Colégio São Pedro, no qual não se falava em Grêmio Estudantil, apenas em Grêmio Literário, do qual eu participava com entusiasmo, apresentando, entre outros, o famoso poema de Machado de Assis a respeito da sua visita ao túmulo da esposa: “Trago-te flores, restos arrancados / Da terra que nos viu passar unidos”.

Depois fui fazer o Curso Clássico no Colégio Júlio de Castilhos e lá, sim, descobri que existia política estudantil, porém isso estava proibido aos estudantes. O Grêmio Estudantil da escola fora fechado e vivíamos “tempos bicudos”, diziam os estudantes bem-informados.

Na mesma época (1971) ingressei no movimento de juventude da Igreja São Pedro (no bairro Floresta, onde morava) e ali iniciou o meu letramento político. O nosso padre-orientador comentava as resoluções do Congresso Episcopal de Medellin (aquele que estabelecera a opção preferencial pelos pobres), nos orientava para um Cristianismo com compromisso social, e aquilo me desvendou um novo mundo. Sim, política era possível. Necessária inclusive.[1]


Rua de Porto Alegre - Bairro Boa Vista.

Rememoro isso sem saber onde vai dar. Depois de três décadas regresso a Porto Alegre como professor universitário aposentado e certamente cumpro outro roteiro, diferente daquele que seguiu meu pai. Não busco novas alternativas econômicas. Minha carreira profissional está encerrada. Busco alternativas prazerosas numa cidade grande e me preparo para envelhecer.

As lembranças da Porto Alegre do final dos anos 60 me vêm quando subo no ônibus (como estão diferentes, alguns até com ar-condicionado) e sinto que elas marcam um início de uma nova etapa que ainda não sei como nomear. Mas vou recordando e registrando.



[1] O movimento de juventude que existia na Igreja São Pedro se chamava Movimento Estudantil Floresta (MEF). Fora fundado por remanescentes de organizações católicas (JEC e JUC especialmente) desmanteladas pelo Regime Militar. Tinha uma orientação progressista, mas a política não era o seu eixo. Esse era apenas um dos assuntos. Valia mesmo eram os Evangelhos, lidos por uma chave “libertadora”.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Filmaço!

            Dias atrás, fui ao Shopping Bourbon Country assistir ao filme iraniano “A semente do fruto sagrado” e, na saída, fiquei comparando com o brasileiro “Ainda estou aqui”.[1]

Duas formas bem distintas de realizar cinema de cunho político. Tudo muito explícito no caso iraniano (centrado na família de um juiz que assina sentenças de morte aos presos políticos durante uma conjuntura de manifestações contra a teocracia dos aiatolás); tudo muito sutil no caso brasileiro (abordando a família de Rubens Paiva, o ex-deputado preso ilegalmente, torturado e desaparecido pelos órgãos de segurança do Regime Militar).

Cartaz do filme Ainda estou aqui.

“Ainda estou aqui” é uma narrativa muito original – e magnífica – a respeito do modo como uma determinada família (em especial a esposa) encarou as arbitrariedades e violências do Regime Militar, principalmente quanto às técnicas utilizadas pelos militares para enfrentar os seus adversários políticos. No filme, a violência cometida pelos agentes de segurança não é explicitada. Na cena em que os agentes da Aeronáutica vão a casa do ex-deputado e o levam para interrogatório, nenhum deles porta metralhadoras (conforme está registrado pela documentação a respeito). O modo de representar o episódio (a cenografia da prisão) retirou as armas pesadas das mãos dos agentes e deixou apenas um revólver na mão de um deles, que logo é escondido embaixo da camisa.[2]

Esse modo de construir o aprisionamento/sequestro (uma prisão ilegal, pois os agentes não portavam ordem de prisão) me pareceu emblemático do tom da narrativa fílmica (muito distinta da maioria dos filmes que abordam o Regime Militar). A direção do filme “limpou” a cena do aprisionamento e esse modo de representação me pareceu emblemático da narrativa. A violência não se explicita, mas está colocada inteira no drama. Ao final do filme, o espectador está exausto com a crueldade dos agentes militares (e abismado com a beleza da narrativa).

Pelos milhões de brasileiros que têm ido ao cinema e aplaudido, quero crer que a estratégia narrativa é eficaz. O pessoal sai comovido da sala. “Ditadura nunca mais”, grita um e outro espectador, ao final.

O filme iraniano, por sua vez, para alcançar o mesmo objetivo (a denúncia da violência política) opta por explicitar os policiais sentando o pau nos manifestantes e, desta maneira, criar o clima de tormento que atinge o juiz, sua esposa e as duas filhas. A cena em que uma manifestante ferida no rosto é atendida (cena longa, com close no rosto para melhor visualização dos movimentos lentos da pinça retirando as bolinhas de metal cravadas na pele) é exemplar.

Foi isso que pensei batendo pernas pela rua, entre o shopping e o meu prédio. Filmaço, este que Walter Salles realizou e Fernanda Torres e Salton Melo representaram com brilhantismo. Mas destaque especial para a cena muda da personagem Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Montenegro, no final: a viúva de Rubens Paiva na cadeira de rodas, doente, na frente da TV, assistindo a um documentário sobre o Regime Militar, e subitamente despertando para as atrocidades dos militares. Cena antológica a respeito do horror – o horror! – que os regimes autoritários são capazes de produzir.



[1] A semente do fruto sagrado, direção e roteiro de Mohammad Rasoulof. Irã / Fr. / Alemanha, 2024, 167 min.; Ainda estou aqui, direção de Walter Salles, roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega. Br. / Fr., 2024, 135 min.

[2] No filme, não fica claro que os agentes do aprisionamento de Rubens Paiva são da Aeronáutica, apenas que são agentes da repressão. Na sequência, não há cena da tortura, morte e desaparecimento do cadáver do ex-deputado. Conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Rubens Paiva foi levado para a III Zona Aérea, no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, e ali começou a tortura, com o propósito de descobrir informações sobre Carlos Lamarca. Depois ele foi transferido para o DOI-Codi do I Exército, onde foi morto. Posteriormente os militares jogaram o seu cadáver no mar.