Minha avó se chamava Aymée, mas era conhecida como Meca.
Ela gostava de ouvir radionovela depois do almoço, enquanto lavava a louça na
cozinha. Eu tinha dez anos idade, morava no mesmo quarteirão, ia visitá-la
com frequência e ficava fascinado vendo-a absorvida pelas novelas.
O rádio, colocado em cima da geladeira, enchia a
cozinha de sons e eu ouvia o ruído de três batidas numa porta e uma voz
feminina e chorosa dizer: “Paulo Roberto, é você?” Escutava o som da porta
sendo aberta, acompanhada de uma voz masculina: “Sim, Maria Augusta, sou eu.
Vim ver como você se encontra.”
As vozes eram sempre solenes, dramáticas, eu não achava
graça naquilo, não entendia, mas ficaram gravadas na minha memória. A trilha
sonora de meu mundo familiar.
De noite, na minha casa, passavam novelas na TV (a televisão
era uma novidade, o pai recém comprara um aparelho) e a vó Meca aparecia para
assistir. Recordo da abertura d“O Sheik de Agadir”, com o herói da história
empinando um cavalo branco no deserto e, na sequência, cenas de intriga e
outras bem melosas, de abraços e beijos. Eu novamente não entendia grande coisa,
mas me fascinava o entusiasmo da vó.
Minha mãe, por sua vez, torcia o nariz por essa
preferência da sua mãe. Na certa uma
implicância pelo modo exagerado como a vó Meca conduzia a própria vida: tudo
sempre pintado com cores dramáticas, a vida transformada em “fita de cinema” ou
novela mexicana.
Mais tarde, soube que ela se sentia vítima de “grandes
injustiças” e isto marcara a sua vida. Injustiças que, provavelmente, estavam
ligadas às histórias do seu pai. Ela nascera de uma “ligação” da sua mãe
Antonieta com um “jornalista mulato”, a qual durara poucos anos e resultara em
dois filhos, seguida por um novo casamento da mãe com um “engenheiro italiano”.
O padrasto perfilhara os filhos da nova esposa, mas estabelecera uma condição:
colocar uma pedra em cima da memória do pai natural das crianças.
Minha avó foi criada desse jeito e tudo indica que
sempre sentiu um certo desconforto por esse “silenciamento” em torno do seu pai biológico. Mas nunca falou claramente a respeito do assunto. Desde mocinha minha
mãe lidou com esses mistérios da sua mãe e só depois dela morrer conseguiu conversar
a respeito. “Tua vó Meca certamente ficou traumatizada pelas histórias em torno
do seu pai natural”, a minha mãe divagava, sem ter certeza de muita coisa.
Pois lembrei da minha avó lendo o romance “Chuva de
papel”, de Martha Batalha (Cia. das Letras, 2023, 220 p.), em especial ao entrar
em contato com o drama da personagem Glória: o seu desejo de trazer à tona a própria
história. Glória é uma velha senhora que, no tempo da pandemia do Covid 19,
procura fazer da sua trajetória uma autobiografia, mas encrenca ao torná-la uma
narrativa possível de ser impressa. Ela quer contar o seu drama de menina que
assistiu ao pai morrer de modo dramático (uma parada cardíaca num almoço de
Páscoa), de mocinha que acompanhou a mãe fazendo promessa para conseguir novo
marido, do médico casado que a desvirginou e a tomou como amante durante anos, controlando
a sua vida, e tem dificuldade em colocar isso em palavras. Dramas miúdos de uma
menina, moça e mulher muito simples que sofreu em silêncio durante vários anos e
a muito custo se tornou dona do próprio destino.
Lembrei da minha avó e de suas histórias nebulosas,
ambas sofrendo em silêncio suas dores de mulher em relação ao pai e aos homens em geral. Glória procurando colocá-las
em palavras, transformá-las em texto escrito na velhice, enquanto minha avó as
levou para o túmulo... deixando para o neto o “compromisso” de um dia
esclarecer o que houve. O neto que sintonizou com o seu olhar enfeitiçado, seus
ares às vezes distantes e chorosos, enquanto escutava radionovelas na cozinha, lavando a louça.
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