terça-feira, 22 de julho de 2025

Minha avó Aymée

 

Minha avó se chamava Aymée, mas era conhecida como Meca. Ela gostava de ouvir radionovela depois do almoço, enquanto lavava a louça na cozinha. Eu tinha dez anos idade, morava no mesmo quarteirão, ia visitá-la com frequência e ficava fascinado vendo-a absorvida pelas novelas.

O rádio, colocado em cima da geladeira, enchia a cozinha de sons e eu ouvia o ruído de três batidas numa porta e uma voz feminina e chorosa dizer: “Paulo Roberto, é você?” Escutava o som da porta sendo aberta, acompanhada de uma voz masculina: “Sim, Maria Augusta, sou eu. Vim ver como você se encontra.”

As vozes eram sempre solenes, dramáticas, eu não achava graça naquilo, não entendia, mas ficaram gravadas na minha memória. A trilha sonora de meu mundo familiar.

De noite, na minha casa, passavam novelas na TV (a televisão era uma novidade, o pai recém comprara um aparelho) e a vó Meca aparecia para assistir. Recordo da abertura d“O Sheik de Agadir”, com o herói da história empinando um cavalo branco no deserto e, na sequência, cenas de intriga e outras bem melosas, de abraços e beijos. Eu novamente não entendia grande coisa, mas me fascinava o entusiasmo da vó.

Minha mãe, por sua vez, torcia o nariz por essa preferência da sua mãe.  Na certa uma implicância pelo modo exagerado como a vó Meca conduzia a própria vida: tudo sempre pintado com cores dramáticas, a vida transformada em “fita de cinema” ou novela mexicana.

Mais tarde, soube que ela se sentia vítima de “grandes injustiças” e isto marcara a sua vida. Injustiças que, provavelmente, estavam ligadas às histórias do seu pai. Ela nascera de uma “ligação” da sua mãe Antonieta com um “jornalista mulato”, a qual durara poucos anos e resultara em dois filhos, seguida por um novo casamento da mãe com um “engenheiro italiano”. O padrasto perfilhara os filhos da nova esposa, mas estabelecera uma condição: colocar uma pedra em cima da memória do pai natural das crianças.

Minha avó foi criada desse jeito e tudo indica que sempre sentiu um certo desconforto por esse “silenciamento” em torno do seu pai biológico. Mas nunca falou claramente a respeito do assunto. Desde mocinha minha mãe lidou com esses mistérios da sua mãe e só depois dela morrer conseguiu conversar a respeito. “Tua vó Meca certamente ficou traumatizada pelas histórias em torno do seu pai natural”, a minha mãe divagava, sem ter certeza de muita coisa.

Pois lembrei da minha avó lendo o romance “Chuva de papel”, de Martha Batalha (Cia. das Letras, 2023, 220 p.), em especial ao entrar em contato com o drama da personagem Glória: o seu desejo de trazer à tona a própria história. Glória é uma velha senhora que, no tempo da pandemia do Covid 19, procura fazer da sua trajetória uma autobiografia, mas encrenca ao torná-la uma narrativa possível de ser impressa. Ela quer contar o seu drama de menina que assistiu ao pai morrer de modo dramático (uma parada cardíaca num almoço de Páscoa), de mocinha que acompanhou a mãe fazendo promessa para conseguir novo marido, do médico casado que a desvirginou e a tomou como amante durante anos, controlando a sua vida, e tem dificuldade em colocar isso em palavras. Dramas miúdos de uma menina, moça e mulher muito simples que sofreu em silêncio durante vários anos e a muito custo se tornou dona do próprio destino.

Lembrei da minha avó e de suas histórias nebulosas, ambas sofrendo em silêncio suas dores de mulher em relação ao pai e aos homens em geral. Glória procurando colocá-las em palavras, transformá-las em texto escrito na velhice, enquanto minha avó as levou para o túmulo... deixando para o neto o “compromisso” de um dia esclarecer o que houve. O neto que sintonizou com o seu olhar enfeitiçado, seus ares às vezes distantes e chorosos, enquanto escutava radionovelas na cozinha, lavando a louça.

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