terça-feira, 12 de agosto de 2025

Lutas e mitos de San Martín

 

É cacoete de professor de História: sou instigado por monumentos de praças e avenidas. Figuras equestres, então, me fisgam completamente. A de Bento Gonçalves, na Avenida João Pessoa, em Porto Alegre; a de Marco Aurélio, na praça do Campidoglio, em Roma; a de José de San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires. Sinto como se houvesse algo a decifrar. Entro no clima.

Esses monumentos de figuras histórias (geralmente homens, imperadores ou generais, que se destacaram na guerra e na política) não foram construídas à toa. São personagens que se transformaram em mitos e servem a propósitos grandiosos. Além do papel histórico que de fato exerceram (governando, comandando tropas), ganharam uma função simbólica a ser exercida para muito além de suas humanas e precárias vidas. Bento Gonçalves passou a encarnar os ideais autonomistas do povo sul-rio-grandense; Marco Aurélio, a grandeza do Império Romano conduzido com determinação e sabedoria; San Martín, a unidade do movimento de independência que resultou na criação do Estado Nacional argentino.

O modo como essas figuras humanas se transformaram em mitos e passaram a dominar o imaginário de uma coletividade, uma nação ou império, é assunto que arrasta historiadores e poetas e dá assunto para uma vida inteira.

Quando estive em Buenos Aires, dias atrás, logo no primeiro dia, caminhei com a minha companheira pela Calle Florida e fomos até a Plaza San Martín. Era um dia frio, ensolarado e de céu azul, e não deu outra: fiquei fascinado pela figura do herói platino, em bronze, montado no seu cavalo, a espada erguida, no alto e no centro da praça.  Escultura criada por volta de 1878 (ano do centenário de nascimento do herói), quando já estava consolidado Estado argentino (assim como iniciava a mitificação de San Martín), e que ainda irradia sua áurea de Libertador pelo local.

Monumento a San Martín, na praça de mesmo nome, em Buenos Aires.

Este sentimento e curiosidade me acompanharam a viagem inteira e fiquei puxando a memória a respeito da sua figura histórica... atento às diversas referências feitas a ele nos mais variados logradouros públicos, em Buenos Aires e Mendoza, especialmente. Não há como escapar de San Martín, assim como, no Rio Grande do Sul, não deixamos de ouvir e ler os nomes de Bento Gonçalves, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.

José de San Martín foi filho de espanhóis (o pai era da elite administrativa da colônia), nasceu em Yapejú (1778), no atual norte da Argentina, e cedo seus pais regressaram a Espanha. Teve formação militar na Metrópole e se destacou nas guerras contra Napoleão na Península Ibérica. Envolveu-se com a Maçonaria e regressou a terra natal (1812) para lutar contra o domínio colonial, obtendo grande êxito nas campanhas militares que liderou, em especial no Chile e no Peru.

Curiosamente, depois de um encontro com Simón Bolívar, em Guayaquil (no atual Equador, em 1822), se retirou da cena política, se autoexilou na França e lá viveu seus últimos anos. Morreu em 1850. Não há registros sobre a conversa com Bolívar, mas se supõe que os dois líderes (Bolívar, republicano; San Martín, monarquista) não se entenderam e o argentino abriu mão de tudo, deixando o campo livre para o seu aliado.

Minha viagem seguiu de Buenos Aires para Mendoza, fiz um passeio turístico pela Cordilheira dos Andes e, súbito, ouvi a guia anunciar que estávamos nas “rutas sanmartinianas”. Isto é, no famoso itinerário das tropas de San Martín na Campanha do Chile, etapa importante da guerra da independência: a de solapar o domínio espanhol na América. Vencer os realistas na Capitania do Chile (o que se concretizou na batalha de Chacabuco) e depois avançar sobre o principal bastião da resistência espanhola, o Vice-reinado do Peru (o que também se efetivou em novas vitórias militares).

Caminhando no gélido vale da Cordilheira, me deparei com uma pequena ponte do século XVIII (Ponte de Picheuta, devidamente restaurada por arqueólogos de uma universidade local), utilizada pelas tropas de San Martín na Campanha do Chile. Por volta de 5.400 homens compunham o efetivo militar sob o comando do Libertador, a grande maioria arregimentada a força, precariamente vestidos e armados (muito distantes das representações gloriosas de soldados uniformizados presentes nos relevos magníficos dos monumentos públicos), e essa multidão atravessou aquela ponte. Soldados que pouco ou nada sabiam do que passava na cabeça dos seus chefes militares. A plebe rude que dá a vida para a glória dos grandes generais.

Ponte de Picheuta, na Cordilheira dos Andes.

Resumindo: vivenciei naquele pequeno vale, nas margens do rio Picheuta, diante de outro monumento da guerra da independência, uma experiência muito distinta daquela que vivi na artística praça de Buenos Aires. Experiências que se complementam, uma delas encenada em bronze requintadamente moldada, a outra feita com pedra selada com argamassa. Numa delas o mito elaborado com sofisticação; em outra, o mito em estado mais cru, mais próximo ao horror que foi a guerra anticolonial, que se prolongou por longos quinze anos (1810 a 1825) e até hoje preenche páginas e páginas de livros, absorve historiadores e encanta turistas.

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