A guerra é uma atividade masculina. As mulheres
estão excluídas desse campo. Desde os tempos antigos foi assim, afirmam a
maioria dos historiadores. Apesar de já haver contestação a respeito e os
arqueólogos (em especial as arqueólogas feministas) estarem encontrando
vestígios de mulheres guerreiras entre os citas, os celtas e os vikings.[1]
Seja como for, fomos criados ouvindo a cantilena de que as forças armadas são
um “privilégio dos homens”. Só os homens vão para a guerra, porque eles são mais
capazes, superiores, patati-patatá, e assim até o final dos tempos.
Naquelas rodas de conversa que vivi durante os
verões da infância (os mais velhos sentados em cadeiras na calçada, na
frente de suas casas, repassando histórias antigas), impossível imaginar
mulheres guerreiras nas peleias sul-rio-grandenses. “Afinal isso é coisa de
macho”, alguém diria, “a mulher não foi feita para isso, a sua estrutura
biológica e psicológica não a prepara para a atividade guerreira”.
Pois lembrei dessa conversa lendo um ensaio de
Virginia Woolf publicado em 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando
se respirava a possibilidade de um novo conflito bélico na Europa.[2]
A escritora assistira ao entusiasmo masculino diante da eclosão da Primeira
Guerra, a mortandade que veio na sequência, a incapacidade da sociedade da
época em enveredar para outras formas de comportamento, sem a valorização do
patriotismo guerreiro, e estava preocupara com essa corrente militarista,
alimentada por “um hitlerismo subconsciente no coração dos homens”.
Na feliz síntese da autora, a guerra era um campo
exclusivamente masculino, fonte de grandes emoções para os homens e meio de
vazão da virilidade. Os homens seriam incapazes de desmontar essa armadilha criada por eles mesmos (a perspectiva da guerra, moldando seus corpos e mentes,
levando-os à crueldade e à morte) e só as mulheres poderiam mudar isso.
Virginia Woolf via o surgimento de um número crescente de mulheres
independentes (mulheres instruídas que trabalhavam e ganhavam a própria vida),
desvinculadas dos valores patriarcais e, por isso mesmo, com condições de
enfrentar a tradição militarista que o poder masculino enaltecia. Mulheres
independentes capazes de desmontarem a ordem patriarcal e, na sequência, a
ênfase na guerra como atividade necessária para o exercício da virilidade.
Em 1940, durante um bombardeio nazista em Londres,
a escritora refletiu a respeito do assunto (ao som das bombas explodindo pela
cidade) e concluiu que eram apenas homens os que estavam lutando naquele
momento, em especial os pilotos da RAF e os da Luftwaffe. As mulheres poderiam
também entrar na luta (deveriam, segundo a autora), mas com outras armas: a da
persuasão e da reeducação dos valores dominantes. Reeducação não apenas dos homens,
instintivamente levados às práticas militares (prisioneiros dessa tradição),
mas também das mulheres que aderiam aos valores patriarcais (as que encaravam o
casamento como profissão e, dessa maneira, permaneciam vinculadas aos valores masculinos).
Lido hoje, tive a sensação de uma proposta muito
otimista e irrealizável. As mulheres, só por serem mulheres e
independentes/críticas da lógica masculina, seriam capazes dessa transformação
radical? Os homens topariam ouvi-las? Segundo a autora, essas mulheres transformariam a sociedade por meio
de uma educação, na qual as artes do domínio, da guerra e da acumulação de
riquezas seriam substituídas por valores e práticas de caráter humanístico. Uma
conversa bonita, é verdade, mas fantasiosa. Pensando em como a roda do mundo
tem girado, com a guerra na Ucrânia, o massacre em Gaza e esta "guerra de baixa intensidade" protagonizada pelos EUA no litoral da
Venezuela e Colômbia, só vejo a lógica militar se impondo e, para sustentar esse militarismo, o
tradicional discurso da força, do domínio e da valentia, tal qual como eu ouvia
quando criança.
A guerra não é mais uma prática exclusivamente masculina, as mulheres estão sendo incorporadas nas forças armadas de diversos países, e continua
no horizonte das disputas pelo poder sobre territórios e riquezas. O guri que
eu era e escutava aquelas gauchadas ocorridas nas revoluções de 1893 e 1923
tinha motivos para se assustar. Difícil escapar desse lado sombrio da
humanidade.
[1]
PATOU-MATHIS, Marylène. O homem pré-histórico também é mulher: uma
história da invisibilidade das mulheres. RJ: Rosa dos tempos, 2022. Segundo a
autora, já dá para contestar a consagrada ideia de as amazonas eram um mito
grego. “Hoje, mais de mil túmulos citas e de tribos aparentadas (sármatas)
foram descobertas da Bulgária à Mongólia e, em certas necrópoles, as mulheres
armadas ocupam cerca de 37% do total de túmulos.” (p. 198)
[2]
WOOLF, Virginia. As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra:
patriarcado e militarismo. BH: Autêntica,
2019.
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