quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Guerras e revoluções (2)

 

A guerra é uma atividade masculina. As mulheres estão excluídas desse campo. Desde os tempos antigos foi assim, afirmam a maioria dos historiadores. Apesar de já haver contestação a respeito e os arqueólogos (em especial as arqueólogas feministas) estarem encontrando vestígios de mulheres guerreiras entre os citas, os celtas e os vikings.[1] Seja como for, fomos criados ouvindo a cantilena de que as forças armadas são um “privilégio dos homens”. Só os homens vão para a guerra, porque eles são mais capazes, superiores, patati-patatá, e assim até o final dos tempos.

Naquelas rodas de conversa que vivi durante os verões da infância (os mais velhos sentados em cadeiras na calçada, na frente de suas casas, repassando histórias antigas), impossível imaginar mulheres guerreiras nas peleias sul-rio-grandenses. “Afinal isso é coisa de macho”, alguém diria, “a mulher não foi feita para isso, a sua estrutura biológica e psicológica não a prepara para a atividade guerreira”.

Pois lembrei dessa conversa lendo um ensaio de Virginia Woolf publicado em 1938, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando se respirava a possibilidade de um novo conflito bélico na Europa.[2] A escritora assistira ao entusiasmo masculino diante da eclosão da Primeira Guerra, a mortandade que veio na sequência, a incapacidade da sociedade da época em enveredar para outras formas de comportamento, sem a valorização do patriotismo guerreiro, e estava preocupara com essa corrente militarista, alimentada por “um hitlerismo subconsciente no coração dos homens”.

Na feliz síntese da autora, a guerra era um campo exclusivamente masculino, fonte de grandes emoções para os homens e meio de vazão da virilidade. Os homens seriam incapazes de desmontar essa armadilha criada por eles mesmos (a perspectiva da guerra, moldando seus corpos e mentes, levando-os à crueldade e à morte) e só as mulheres poderiam mudar isso. Virginia Woolf via o surgimento de um número crescente de mulheres independentes (mulheres instruídas que trabalhavam e ganhavam a própria vida), desvinculadas dos valores patriarcais e, por isso mesmo, com condições de enfrentar a tradição militarista que o poder masculino enaltecia. Mulheres independentes capazes de desmontarem a ordem patriarcal e, na sequência, a ênfase na guerra como atividade necessária para o exercício da virilidade.

Em 1940, durante um bombardeio nazista em Londres, a escritora refletiu a respeito do assunto (ao som das bombas explodindo pela cidade) e concluiu que eram apenas homens os que estavam lutando naquele momento, em especial os pilotos da RAF e os da Luftwaffe. As mulheres poderiam também entrar na luta (deveriam, segundo a autora), mas com outras armas: a da persuasão e da reeducação dos valores dominantes. Reeducação não apenas dos homens, instintivamente levados às práticas militares (prisioneiros dessa tradição), mas também das mulheres que aderiam aos valores patriarcais (as que encaravam o casamento como profissão e, dessa maneira, permaneciam vinculadas aos valores masculinos).

Lido hoje, tive a sensação de uma proposta muito otimista e irrealizável. As mulheres, só por serem mulheres e independentes/críticas da lógica masculina, seriam capazes dessa transformação radical? Os homens topariam ouvi-las? Segundo a autora, essas mulheres transformariam a sociedade por meio de uma educação, na qual as artes do domínio, da guerra e da acumulação de riquezas seriam substituídas por valores e práticas de caráter humanístico. Uma conversa bonita, é verdade, mas fantasiosa. Pensando em como a roda do mundo tem girado, com a guerra na Ucrânia, o massacre em Gaza e esta "guerra de baixa intensidade" protagonizada pelos EUA no litoral da Venezuela e Colômbia, só vejo a lógica militar se impondo e, para sustentar esse militarismo, o tradicional discurso da força, do domínio e da valentia, tal qual como eu ouvia quando criança.

A guerra não é mais uma prática exclusivamente masculina, as mulheres estão sendo incorporadas nas forças armadas de diversos países, e continua no horizonte das disputas pelo poder sobre territórios e riquezas. O guri que eu era e escutava aquelas gauchadas ocorridas nas revoluções de 1893 e 1923 tinha motivos para se assustar. Difícil escapar desse lado sombrio da humanidade.



[1] PATOU-MATHIS, Marylène. O homem pré-histórico também é mulher: uma história da invisibilidade das mulheres. RJ: Rosa dos tempos, 2022. Segundo a autora, já dá para contestar a consagrada ideia de as amazonas eram um mito grego. “Hoje, mais de mil túmulos citas e de tribos aparentadas (sármatas) foram descobertas da Bulgária à Mongólia e, em certas necrópoles, as mulheres armadas ocupam cerca de 37% do total de túmulos.” (p. 198)

[2] WOOLF, Virginia. As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra: patriarcado e militarismo. BH: Autêntica,  2019.

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