quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Briga de casal

             Simone (vou chamar assim essa mulher que criei com alguns dados reais e outros tantos da imaginação) foi visitar o ex-marido, para acertar alguma coisa a respeito da filha adolescente de ambos, e a conversa saiu dos trilhos. A mulher resolveu dizer “umas verdades”.

“Tu nunca me valorizou como mulher”, ela começou. “Os homens são assim: querem dizer o que as mulheres devem fazer e arrasam com a autoestima delas”, argumentou. “Casamento é uma merda, as mulheres sempre saem perdendo. Mas eu não vou deixar barato. Nesses seis anos que estamos separados, eu me reconstruí, recuperei a minha autoestima e hoje sou uma nova mulher”, anunciou.

Ele deixou que ela dissesse o que precisava dizer. “Não vou pôr mais lenha na fogueira”, justificou em voz baixa, sem saber se a mulher o escutava ou não. Viu a ex-esposa caminhar de uma ponta a outra da pequena sala do apartamento em que morava (um apartamento menor do que aquele em que viveram juntos, no qual ela ainda morava com a filha) e se surpreendeu com o fato dela ter ainda viva as queixas de quando estavam casados. Perguntou o que ele determinara que ela fizesse, o que ele impediu dela fazer. “Como é que eu te desvalorizava?” E a ex-mulher puxou um rol de episódios que explicitavam as agressões e humilhações do ex-marido.

“Um dia tu ficou furioso porque eu comprei lençóis novos para nossa cama, lençóis belíssimos, de fio egípcio, e bateste com a cabeça no espelho do banheiro. Bateste de raiva. Achaste que eu fizera uma compra inútil. Um absurdo, tu falavas e quebraste o vidro do armário do banheiro. Eu tive que repor. Tu nem pensaste nisso. No prejuízo que me causaste.” 

Ele falou que não lembrava, que achava que não fora bem desse jeito, mas não insistiu nesse argumento. Não se defendeu. “Mas se tu tá dizendo...", falou. E ela retomou o assunto da autoestima ferida e recuperada, disse que estava encontrando homens melhores e, com a voz baixa, inclinando a cabeça e escondendo o rosto (não diretamente para o ex-marido), falou: “O Roberto até que fazia a coisa bem feita. Fazia bem. Não deu certo porque ele é difícil. Um egoísta, um egocêntrico, um horror.”

O ex-marido sentiu alguma coisa batendo no osso do peito, apertando, doendo. “Olha, aí já é demais”, quis dizer. “Ele trepa melhor do que eu, é isso?” Mas as palavras não saiam da sua boca ("Não vou pôr querosene nessa história", pensou, se contendo), enquanto ela continuava falando sobre os novos homens na sua vida. Ele conhecia dois ("Seriam mais de dois?", imaginou), o Roberto era seu conhecido de longa data. Ela caminhava de uma ponta a outra da sala. “A vida continua, a fila anda”, ela dizia. E perguntava: “E tu, estás encontrando mulheres que te satisfaçam mais?”, conjugando os verbos corretamente e parando na frente dele, as duas mãos nos quadris, e por fim levantando-as para o alto, num gesto de enfado. “Tá, tu não vai falar, eu sei. Tu nunca quiseste conversar comigo de verdade”, ela disse. E pegou a bolsa e uma sacola que deixara sobre o sofá, se preparando para sair.

O ex-marido se levantou, abriu a porta para ela ir embora. “Era isso que eu tinha para dizer, infelizmente era isso”, ela disse bem perto dele, olho no olho, cruzando a porta sem qualquer sinal de despedida (mesmo separados, costumavam se beijar no rosto) e tomando o rumo do corredor do prédio. Ele ficou olhando-a caminhar até a porta do elevador, tocar no botão para chamá-lo, esperar, entrar. Ouviu a porta do elevador se fechar, a máquina estalar para o elevador descer (a vida continuar, a fila andar), e perguntou a sim mesmo se também guardava tanto ressentimento... Se também tinha um discurso pronto a respeito da vida que tiveram juntos e do seu processo de reconstrução pessoal...

          Enquanto ele se questionava, Simone saiu do prédio, pegou a chave do carro dentro da bolsa, abriu a porta, se sentou na frente da direção, com os olhos cheios de lágrimas. “Eu tô chorando, que merda!”, ela disse para si mesma, sem saber se estava aliviada ou não, afinal dissera tudo, mas não dissera tudo também, talvez fosse melhor não ter dito, mas agora já tinha dito e era melhor assim. “Foda-se.” Precisava dizer, mas talvez não devesse dizer. “Pronto, mas agora tá feito”, disse, dando a partida no automóvel, tomando o rumo da sua casa e da sua nova vida.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Trauma de araque

 

Alberto teve um acidente de carro durante a juventude. Tinha 23 anos, bebeu demais numa festa (eram os anos 80, não havia esse negócio de não dirigir alcoolizado), estava com o carro do pai, com duas gurias dentro (uma ao seu lado, no banco da frente, a outra no banco de trás), perdeu o controle numa curva (talvez estivesse em alta velocidade, nunca soube direito, estava embriagado mesmo) e bateu num caminhão. Os três ficaram feridos, o caminhoneiro não sofreu coisa alguma. A guria que estava no lugar do carona fraturou a perna direita, a que estava atrás bateu com a boca no banco da frente, ficou toda enxada, um dente frouxo, ele bateu com a cabeça no parabrisa e perdeu muito sangue. Apenas isso, nenhuma morte. Mas foi o suficiente. “Deu pra mim, escapamos por um triz”, falou. Nunca mais retomou a direção. O carro ficou destruído, mas felizmente havia seguro total e não deu prejuízo pro Velho. “Só as gurias se ferraram.”

Vinte anos depois, casado, dois filhos, fez menção de comprar um carro para si próprio e voltar a dirigir. “Fazer autoescola novamente”, disse, “começar do zero”. Mas a mulher, motorista exemplar (dessas que nunca cometeram uma infração), pôs objeções. “Tu precisa mudar, então”, ela falou, “tu é muito distraído”. Já tinha visto ele pegar o carro dela, na praia, e não ficara segura. Alberto levou em consideração o comentário da esposa (“Ela me conhece”) e disse que iria pensar. “Tenho que encarar isso, mudar”, disse para a mulher. “Será que fiquei traumatizado?”, perguntou para a esposa e ela falou: “Pode ser”. Mas deixou o tempo passar, não encarou coisa nenhuma.

Pouco tempo depois, numa conversa com a mulher na cozinha, os dois bebendo vinho, ouviu ela dizer, brincando, que não queria ver ele andando sozinho dentro de um carro. “Tu tá muito enxuto, ainda”, ela falou, rindo, “e, se a mulherada te ver sozinho num carro, cai em cima”. Ele achou graça. “Não tô com tudo isso”, disse, e deixou passar. Mas ficou com uma pulga atrás da orelha: “Será que é por isso que ela não quer me ver dirigindo?”

Novamente o tempo passou e Alberto não fez nada. Nenhuma atitude para mudar. Não pegou o carro da mulher para se experimentar nem encarou a tal autoescola como prometera. Viu os dois filhos tirarem carteira de motorista e, um dia, quando o mais velho lhe dava uma carona, ouviu ele perguntar: “Pai, por que tu te mixou?” Estavam apenas os dois dentro do Fiat do guri e ele não soube o que responder. Pensou em dizer que ficara traumatizado com o acidente que teve na juventude. “Deixei duas gurias machucadas”, começou a falar e desistiu. Não era verdade. “Eu não fiquei traumatizado porra nenhuma”, pensou. “Um trauma de araque, isso sim. Tenho quase 50 anos e me conheço um pouco. Posso enganar os outros, mas não a mim mesmo.”

Naquele dia, não conseguiu mais falar com o filho e pediu para ele deixá-lo na próxima quadra. “Vê onde é melhor para tu parar”, falou. Depois saiu caminhando a esmo, esqueceu o que tinha que fazer e repetiu para si mesmo várias vezes: “Sou um cagão. E ainda por cima um marido obediente. Um merda.” E disse para si mesmo que dessa vez iria mudar de verdade. Não ia se esconder atrás de um trauma de araque, como chegara pensar e até a dizer.

Mas fez a coisa de modo enviesado.  Teve um caso com uma colega de serviço, a esposa descobriu (depois se deu conta que deixou o rabo de fora – “Inconscientemente, claro”, falou para o psiquiatra) e quebraram os pratos. Ele saiu de casa. “Nosso casamento deu o que tinha pra dar”, justificou, e tratou de reorganizar a vida. A colega foi apenas um caso passageiro (“Carne nova para possibilitar uma vida nova”, falou na psicoterapia) e uma das primeiras mudanças foi se conscientizar que não sofrera trauma algum. Era um sujeito inseguro, submisso no casamento (“Porra, por que eu sou assim?”, se questionou durante a psicoterapia) e pediu para o filho mais velho lhe ensinar a dirigir novamente. “Talvez isso seja um negócio simbólico, o jeito de eu me reconstruir”, falou para o psiquiatra, “ganhar autonomia ou coisa assim”. O terapeuta achou que era um caminho.

“Acho que ainda dá tempo”, disse para o filho, sentado na direção do Fiat do guri. O garotão riu, disse para o pai arrancar, fazer as mudanças adequadas. “Assim mesmo, Velhão”, encorajou. E garantiu: “Tu ainda lembra como fazer. É como andar de bicicleta. A gente não esquece.”

domingo, 1 de setembro de 2024

Viajar para sair da aldeia

 

Li outro dia que viajamos para construir lembranças. Na hora concordei. Mas depois fiquei pensando e conclui que não. Viajamos para conhecer o mundo, sair do espaço restrito da nossa aldeia e alargar nossos horizontes. E, nesse processo, adquirimos/construímos lembranças.

Chegar em Lisboa pela primeira vez, por exemplo, foi um deslumbramento completo. Parecia  que eu estava adentrando no "vasto mundo" (aquele indicado por Drummond). Foi como se eu voltasse no tempo e recuperasse a minha de estudante, as fantasias que criei quando guri (no Primário, no Ginásio) estudando as Grandes Navegações, a monarquia lusitana, o domínio português sobre o Brasil...

Naquela oportunidade, num dia de janeiro de 2012, eu almocei com minha antiga companheira não lembro onde, ela voltou para o hotel e eu fui visitar o Castelo de São Jorge. Nós tínhamos , à noite, um espetáculo de fado no Chiado, um jantar no restaurante São Carlos, e eu precisava estar no hotel por volta das 18 horas. Então visitei o castelo,  depois peguei um bonde (eu queria passear de bonde), desci na Praça do Comércio e procurei um táxi.

Quando desci do bonde e me vi na famosa praça, entre o Arco do Triunfo da Rua Augusta de um lado e a estátua equestre de D. José I do outro, desbundei. Uma série de lembranças (livrescas, claro) me vieram a mente (o Terremoto de 1755 e a reconstrução de Lisboa, a formação do Império português e a dominação sobre as colônias) e pensei: "Então era aqui o centro do Império que tanto construiu como massacrou o Brasil?" Me dei conta de que era um brasileiro, originário de um país colonizado... Um país que, até hoje, se digladia com a herança do colonialismo...

Não foi uma sensação ruim. Foi muito boa. De certa maneira, eu estava no centro do mundo... do mundo que tanto estudara, imaginara e fantasiara. Sensacional!

Seguiu-se uma noite de fado e, depois, uma caminhada de três quadras até o Teatro São Carlos, por volta das dez da noite, as ruas da Misericórdia e Almeida Garret vazias, só o barulho dos nossos passos. Uma noite fria, escura e desafiante. Eu tinha o caminho na cabeça, estava com receio de me perder (era a primeira vez no Chiado), mas acertei a direção e chegamos lépidos e faceiros no restaurante do teatro.

Fernando Pessoa morara quando criança num prédio em frente, mas, naquela hora, eu não tinha clareza quanto a isso. Um pintor embriagado veio até nossa mesa, tentou nos vender uns quadros terríveis. Era um homem em estado deplorável (os dentes estragados) que nos contou a sua vida de privações, morando em Paris, voltando a Lisboa, morando mal, tentando viver da sua arte... e nos achando ricos para ajudá-lo. Que situação! Só nos livramos do artista porque o garçom interviu.

Voltei anos depois ao Chiado, sozinho, igualmente à noite, batendo pernas pelo entorno do teatro (sim, Fernando Pessoa morara no prédio em frente ao Teatro São Carlos) e creio que cruzei com o mesmo artista com seus quadros de baixo do braço, visivelmente alterado e temi que me reconhecesse. Mas cruzamos um pelo outro na noite silenciosa, cada um seguindo o seu destino.

Acho que viajar é isso: ter essas experiências em lugares distantes, às vezes exóticos, lugares que muitas vezes tomamos conhecimento primeiramente pela literatura, pelo cinema, pela historiografia... e de repente nos vemos dentro dele.

Não viajamos para construir lembranças. Mas para sair da aldeia, ganhar o mundo ou, ao menos, tentar ganhar, conhecer. Nesse processo, temos momentos especiais, que se destacam do nosso cotidiano na aldeia em que vivemos, como um passeio de bonde entre o Castelo de São Jorge e a Praça do Comércio, um espetáculo de fado no Chiado, um jantar no Teatro São Carlos e o encontro com um pintor desvairado tentando nos vender a sua arte horrorosa.

Teatro Nacional de São Carlos (2017).

Obs.: procurei uma foto dessa primeira viagem a Portugal, em 2012, e não encontrei nenhuma. Alguma coisa houve no meu computador. Perdi esse arquivo de fotos.