terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Os desígnios de Deus

 

Minha mãe costumava marcar missas no aniversário de morte do pai. Às vezes na Igreja São Pedro, no Bairro Floresta, outras vezes na Igreja Santa Teresinha do Menino Jesus, no Bom Fim. Nunca soube as razões das escolhas. Na São Pedro, certamente porque foi a sua paróquia durante décadas; na Santa Teresinha, não sei. Mas ela me avisava o local e o horário e, se eu pudesse, estava lá. Quando passei a morar em Santa Maria, muitas vezes organizei viagens a Porto Alegre que coincidiam com a data da missa. Eu não mais me enquadrava na figura do católico praticante (desde os 18 ou 19 anos), mas ir à missa com ela era outra coisa.

Pois outro dia estava caminhando no Bom Fim, passei na frente da igreja Santa Teresinha, e lembrei dela. Era fim de tarde, as portas estavam abertas, rolava uma missa lá dentro e resolvi entrar. É uma igreja muito bonita, em estilo neogótico (construção dos anos 1920), e caminhei até os primeiros bancos para observar o conjunto escultórico que existe na parede dos fundos do altar: Santa Teresinha ajoelhada aos pés de Nossa Senhora do Carmo, essa última com o Menino Jesus nos braços.`

Sta. Teresinha do Menino Jesus diante de N. Sra. do Carmo.

Lembrei que conversava com a mãe a respeito dessas figuras (as esculturas da igreja são impactantes), pois mesmo não sendo mais religioso o universo do Catolicismo me interessava. A Ordem dos Carmelitas atende a igreja e, justo nesse dia, a liturgia era voltada a Nossa Senhora do Carmo, padroeira da congregação. A Senhora do Escapulário, como também é conhecida, promotora desse costume de trazer este pequeno amuleto junto ao peito, simbolizando a proteção da Mãe de Deus. Costume que segui na infância.

Pois peguei o folder com a liturgia da missa e fiquei lendo as orações a Nossa Senhora do Carmo. Muito bonitas e até comoventes, na medida em que lia e lembrava da minha mãe. Mas era a parte final da missa, o padre propôs uma benção aos fiéis e eu resolvi ir embora. Aquilo não era para mim e me pareceu um abuso eu receber uma benção. Gosto de igrejas, gosto especialmente de arte sacra, o ambiente religioso ainda é carregado de significados, mas fico por aqui. Meu gosto e interesse é apenas estético e cultural, sem relação com a fé e as crenças católicas. Então saí da igreja e fui caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha, pegar meu ônibus e voltar para casa.

Santa Teresinha do Menino Jesus viveu na França, no século XIX, e morreu de tuberculose, aos 24 anos. Uma das figuras da Igreja a respeito da qual tenho curiosidade. Poucos anos atrás comprei o seu livro “A história de uma alma”, publicado logo depois de sua morte, mas não avancei na leitura. Ela sacrificou a vida em nome de Deus e às vezes eu conversava com a mãe a respeito dessas trajetórias extremadas dos santos... sempre um modelo para a maioria dos católicos.

Minha mãe pensava a respeito dos desígnios de Deus, a vontade do Pai, e “dizer sim à vontade de Deus” estava entre as suas preocupações. “Ver nos acontecimentos a mão providente do Pai”, conforme está escrito numa das orações a N. Sra. do Carmo. Mas dentro de uma clave normal, sem os exageros da santidade, claro. Acho que até no suicídio do marido ela procurava ver a mão de Deus, os seus desígnios misteriosos. Eu não dizia nada quanto a isso. Quando a conversa enveredava para a morte do seu marido (meu pai), eu me limitava a recordar (e muitas vezes esmiuçar) os episódios reais, concretos, em torno do suicídio (a depressão psicológica que ele viveu, a falência do Montepio da Família Militar, empresa da qual ele era empregado e que, por razões desconhecidas, atormentou o seu final de vida) e, aí sim, me esforçava para decifrar o que que sabia. A vontade de Deus, essa eu ignorava e continuo ignorando.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Verde esmeralda

 

A história é mais ou menos a seguinte: a mulher está se separando, está com a papelada do divórcio encaminhada, só falta assinar, e súbito ela acha que poderia ter feito mais alguma coisa pelo marido.

A vida do esposo degringolou desde que ele largou o que vinha fazendo ao longo dos anos e resolveu ter a própria empresa. Tinha esse sonho. Tentou vários negócios, em todos se deu mal. Gastou o que tinha e o que não tinha, se endividou e se sentiu arrasado. Injustiçado. Perseguido por um "sistema injusto em relação àqueles que ambicionam sair da mesmice”. Na sequência, encrencou a sua vida pessoal. Arranjou amantes esporádicas (“Para reerguer a autoestima”, justificava para si mesmo), até que passou a chegar tarde em casa, fazer viagens inesperadas e a esposa achou que passara da conta. Ela se pôs a campo, descobriu que ele estava envolvido com uma mulher mais nova e o colocou contra a parede:

– E agora, tu tá querendo o quê? Qual é o sonho, a ambição, o projeto? Onde eu entro nessa história?

O marido enrolou, disse que estava numa fase difícil, e só mais tarde admitiu que estava querendo “um tempo sozinho”. Saiu de casa, levando o único carro da família e demorou quase dois anos para acertar a separação, a pensão para a filha e coisas do gênero. Agora que está tudo encaminhado, a esposa pergunta para a terapeuta:

– Será que eu não poderia ter feito mais por ele? Compreender e apoiar os seus sonhos, a sua luta?

A psicóloga não responde. Devolve a pergunta:

– E não fez?

– Será que eu fiz tudo?

– Acho que tu deste o melhor.

 A mulher ficou calada. Sua vida passou como um filme na sua frente e ela teve certeza de que fizera o possível. Ou o que sabia, o que estava ao seu alcance. Procurou com os olhos alguma coisa no consultório onde fixar a sua atenção e encontrou um relógio dentro de um círculo de porcelana azul marcando 15h20min. “Tenho mais 30 minutos de sessão ou 40?”, pensou. Não sabia. Estava com quase 50 anos e sem a mínima ideia de quanto anos mais pela frente.

– Sim, acho que fiz... Na verdade, dei o melhor de mim – ela disse, e apontou o relógio.

– Quanto tempo eu tenho? – perguntou.

A psicóloga disse que ela não se preocupasse com o tempo da sessão, se preocupasse com a sua vida, o seu tempo, e ela riu.

– Sim, é nisso que estou pensando. – E passou a mão pela frente do rosto como se afastasse uma mosca e falou de um vestido verde que vira na vitrine de uma loja do térreo do prédio do consultório. – Um verde muito bonito, que combinam com uns brincos de esmeraldas que comprei anos atrás, na Colômbia. Vou comprar e usar no dia em que for assinar a papelada do divórcio - garantiu, sorrindo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Mundo desigual

 

Dizer que o mundo é desigual é chover no molhado. Mas sempre rende alguma perplexidade quando nos deparamos com casos reais, específicos. Pois foi o que aconteceu comigo nessa madrugada ao abrir a caixa de e-mails. Sob o título “Diárias polpudas”, um amigo militar (coronel reformado) me enviou uma notícia relativa a um conselheiro do TCE de Roraima, que tem recebido, há mais de um ano, diárias de R$ 2.540,00 para cursar o Mestrado Profissional em Administração, na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. O curso iniciou em agosto do ano passado e o conselheiro/mestrando passou a vir ao Rio uma vez por mês e ficar uma semana para cumprir as suas obrigações acadêmicas.

Segundo a notícia do jornal “Metrópoles”, tudo nos conformes.[1] O TCE de Roraima pagou R$ 70.000,00 à Fundação Getúlio Vargas para o seu funcionário cursar o mestrado e agora desembolsa o auxílio regular que a instituição reserva a um conselheiro em viagem. Tudo dentro do que a legislação do Judiciário estabelece. No caso desse conselheiro, a média de diárias mensais tem sido de R$ 15.000,00 e ele lidera o ranking dos funcionários que mais tem obtido essa vantagem. Atualmente, a bolsa que a Capes, o órgão do Ministério da Educação que trata do financiamento para a pós-graduação, paga R$ 2.100,00 mensais para os mestrandos e eles que se virem para sobreviver com essa grana.

Meu amigo militar me enviou essa mensagem porque sabe que fui mestrando, que meus amigos (muitos deles seus ex-professores) também fizeram pós-graduação com bolsas da Capes, viajando de uma cidade a outra muitas vezes e contando os trocos. No caso de uma querida amiga (que ele bem conhece) o périplo consistia em viagens semanais para assistir aulas – com o dinheiro contado, mas agradecendo a Deus por ter ter uma bolsa da Capes. Ela viajava de Santa Maria a Porto Alegre de manhã cedo, assistia aula na PUC, dormia numa pensão de freiras (na Rua Ramiro Barcelos), encarava mais um dia de aula e depois voltava a rodoviária para pegar o ônibus para Santa Maria. Tudo isso sem usar táxi, era muito caro, e, como adiantei acima, agradecendo a Deus por ter conseguido a bolsa. Uma jornada que implicava a ginástica de carregar uma pequena mala, mais pasta de livros e atravessar o corredor do ônibus Ipiranga-PUC de ponta a ponta. Certamente algo que o mestrando/conselheiro do TCE de Roraima jamais saberá.

Acrescento que o meu amigo coronel não é desses que acham que os militares não tenham regalias. Ele fez carreira no Exército, ocupou cargo no Forte Apache, em Brasília, e conhece bem o padrão dos membros das Forças Armadas, seu sistema previdenciário, entre outras coisas. Volta e meia me envia e-mails com notícias escandalosas (ao menos para nós, reles civis) relativa à farra dos acepipes para os coquetéis militares, mais as aposentadorias, pensões e as "boquinhas" que centenas de oficiais conseguiram para si próprio e familiares durante o Governo Bolsonaro. Se diverte, esse meu amigo. Não acha que as coisas vão mudar – a sociedade brasileira não tem colhões para uma revolução, ele diz. 

De todos os meus amigos, foi o único que sustentou que as Forças Armadas não iriam deixar passar barato a derrota eleitoral de Bolsonaro, seu instrumento para a retomada do poder em 2018 e sua continuação em 2022. "O golpe é coisa certa", ele afirmava. Acertou. Estava tudo armado. Foi por um triz que a coisa não vingou.

Meu amigo é um homem sem ilusões. Sabe muito bem que a elite da burocracia estatal, civil e militar, trata a si própria muito bem, tal qual a elite econômica (os super ricos que resistem às tentativas de aumentar a taxação de seus rendimentos pela Receita Federal). É ferro no populacho, ele diz. Sem bolchevismo esse país não tem conserto, garante.

Escrevo isso porque habitualmente silencio a respeito das desigualdades da sociedade brasileira. Não consigo cronicar a respeito do assunto. É complicado. Muitas vezes, revoltante. E opto por assuntos agradáveis. 


[1] LORRAN, Tacio. Conselheiro de RR ganha R$ 207 mil em diárias para fazer mestrado no Rio. Metrópoles, 09/12/2024.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Museu de Roskilde

 

         Em setembro de 2022 eu fui a Turquia e um sobrinho, que mora em Copenhague, me sugeriu uma esticada até lá. “Copenhague não fica muito longe de Istambul”, ele me disse (sem dúvida fica muito mais próxima do que de qualquer cidade brasileira) e resolvi encarar. Valeu a pena. Meu sobrinho preparou um roteiro impecável e foi uma semana de tirar o fôlego. Um dos locais escolhidos foi a cidade de Roskilde, a meia hora de trem de Copenhague, num rico dia de outono, com céu azul e folhas vermelhas nas árvores. Cidadezinha impecável, de cinema, isto é, daquelas que a gente só conhece nos filmes, devido à organização, limpeza e beleza.

Roskilde foi um núcleo urbano importante no final da Era Viking (séculos VIII a XI), centro religioso e político, e depois sede do primeiro bispado cristão da Dinamarca, local de uma grandiosa catedral gótica, construída entre os séculos XII e XIII, local de enterramento de reis e rainhas desde o século XV. O túmulo da rainha Margarida II, monarca da Dinamarca naquele ano, já estava pronto, esperando o seu corpo. A rainha renunciou em favor do filho no final de 2023 e, pelo que tudo indica, o túmulo ainda está lá, vazio, esperando a sua proprietária.

Rua pitoresca de Roskilde, que me pareceu cenário de conto de Anderson.

Naquela manhã nosso passeio começou pelas ruas pitorescas da cidade (provavelmente com o mesmo feitio que tinham no século XIX – ou pelo menos foi assim que enxerguei – como se constituíssem o cenário dos contos de Anderson) e continuou pelo interior Catedral, em especial pelas capelas com os túmulos dos antigos monarcas (alguns de um luxo estonteante – "Pra que tudo aquilo?", pensei, "que sacrifício, o do povo pobre! Que satisfação, a dos plebeus visitantes!"). E na sequência seguimos por um parque meticulosamente cuidado que dava no museu dos barcos vikings: o Museu de Roskilde.

Uma das capelas no interior da Catedral de Roskilde, com sepulturas luxuosas
de monarcas dinamarqueses.

Por volta do ano 1000, cinco navios vikings foram afundados no canal que liga a cidade de Roskilde ao mar, com o propósito de impossibilitar a chegada de embarcações inimigas. O local se tornara um centro político importante do recém unificado reino da Dinamarca, havia perigo de ataques e as naus submersas tiveram o propósito de defesa. Quase mil anos depois (em 1962) elas foram descobertas, desenterradas e abrigadas num vasto museu, na beira do canal de onde costumavam ancorar e partir.

Museus das embarcações vikings.

Um museu para ficar vagando e sonhando, imaginando como eram as viagens daqueles navegadores ousados, que cruzaram o Mar do Norte, estabeleceram “colônias” na Inglaterra e na França (neste último país, na atual Normandia), contornaram a Península Ibérica e entraram Mediterrâneo adentro, assim como chegaram às cidades de Constantinopla e Bagdá (conforme indicado num mapa dependurado na parede do museu).

Roteiros das expedições vikings.

Há réplicas em tamanho real dos antigos navios, tanto dentro como fora do museu, nos quais é possível entrar e sentir/imaginar o que devia ser viajar/navegar naquelas pequenas embarcações... Há capacetes para vestir e pousar de guerreiro, uma experiência para fazer a criança que ainda habita alguns de nós pular de alegria.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Bolsonarismo na veia

 

O bolsonarismo é uma força avassaladora. Assisti amigos serem engolfados por esse movimento político e até hoje me horrorizo com o fenômeno. De todas as figuras que acompanhei nesse processo, a que mais me espantou foi a de um professor que conheci nos anos 1980, quando ambos fomos nomeados para o Magistério Estadual, numa escola da zona norte de Porto Alegre. Colegas e depois amigos, lecionávamos numa escola de madeira, no curso supletivo noturno, para alunos adultos, muitos deles trabalhadores em lojas, bares e hotéis, pequenas oficinas e casas de família, com baixo salário e condições de vida precária. Um alunado que indicava para nós (ambos com formação marxista – a dele, muito superior à minha), a necessidade urgente de “transformações socioeconômicas profundas no País”.

Ambos éramos simpatizantes do PT e gastávamos horas discutindo as diferentes tendências do partido e a melhor orientação para a formação “de uma classe trabalhadora consciente e unificada”. Mas o tempo passou e a última vez que o vi foi nas proximidades do acampamento bolsonarista em frente ao Comando Militar, em Porto Alegre (em novembro de 2022), e não tive coragem de perguntar se ele estava na luta por intervenção militar e suspensão do resultado das urnas, ou, como eu, apenas bisbilhotando. Quando nos conhecemos, a conquista da democracia liberal era questão de princípio, a emenda Dante de Oliveira (por eleições diretas para presidente da República) fora recém derrotada, mas não esfriara nas nossas cabeças.

Tudo bem que, com o passar dos anos, ele abandonasse o imperativo das mudanças socioeconômicas profundas “do ponto de vista das classes populares” e adotasse os princípios liberais em economia e os reajustes no sistema capitalista que constituíam a pauta neoliberal. Nós dois ascendêramos socialmente (de professores de escola estadual migramos para a universidade federal) e um certo aburguesamento de atitudes e ideias era inevitável. Mas detonar o jogo democrático liberal, não. Alinhar-se com os setores reacionários das Forças Armadas, nostálgicos do AI-5 (instrumento jurídico da consolidação da ditadura militar) e da tortura como método de enfrentamento político-militar, jamais.[1] Marchar com o neofascismo, nunca.

Mas meu amigo ultrapassou todos esses limites. Começou aderindo ao ideário do PSDB (em especial a pauta econômica, a do “enxugamento do Estado”, as privatizações), depois à Lava-Jato (não apenas o combate a corrupção, mas o desmonte do projeto neodesenvolvimentista que colocava a Petrobrás como um dos eixos), o impeachment da Dilma, o Teto de Gastos e, cúmulo dos horrores, a adesão a candidatura de Bolsonaro à presidência da República (com todos os indicativos antidemocráticos que ele sempre deu, nunca escondeu, ao longo de sua carreira de deputado).

Todo mundo tem direito de mudar, dirá o leitor mais tolerante. E eu respondo: sim, com certeza. Mas tem limites. Migrar da esquerda marxista para a extrema-direita bolsonarista é demais. Pra mim, incompreensível.

Manifestação bolsonarista em Santa Maria, abril de 2021, em protesto
às medidas restritivas para enfrentar a pandemia da Covid.

No início desse ano, vi meu  ex-amigo (nas redes sociais) endossando as teses da “ditadura do Judiciário”, das arbitrariedades feitas contra os manifestantes do 8 de janeiro de 2023, da inocência dessa massa que agiu como cabeça de ponte de um movimento golpista fracassado e caí pra trás. Até a tese de que a turma foi rezar ele chegou a publicar. 

          Realmente um fenômeno que está fora do meu entendimento. Deve existir alguma droga que os bolsonaristas injetam no corpo de seus militantes e simpatizantes, capaz de alterar seus corações & mentes e os fazerem verbalizar e ter comportamentos tão descabidos, muitas vezes sem sustentação na realidade, apenas na paixão ideológica.


[1] O voto de Bolsonaro no impeachment da Dilma, dedicando-o ao coronel Ustra, é emblemático da sua adesão à herança mais abjeta do Regime Militar, isto é, a tortura como instrumento de luta. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Coisas da política e da vida privada

 

Na sexta-feira, caminhei pelo centro de Porto Alegre e fui parar no Mercado Público. Provei uma pasta de grão de bico, uma espumante de Vacaria e acabei comprando as duas coisas. Depois fui tomar um café, ler a Zero Hora e gostei dos comentários de Rosane de Oliveira a respeito das maquinações golpistas de Bolsonaro e seus generais.[1] Segundo a cronista, o amadorismo desses militares nos salvou de uma ditadura mais sangrenta que a de 1964. Mais sangrenta porque iniciaria com três assassinatos, o de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Felizmente o troço desandou, a execução dos crimes não teve prosseguimento e agora está tudo vindo à tona.

A cronista da ZH considera que os fatos são estes, conforme o indiciamento da Polícia Federal substancialmente comprovados, mas acrescento que são contestados pelos bolsonaristas que acompanho nas redes sociais. Eles falam em “suposto golpe”, “narrativa falsa”, “argumentação jurídica ilegal”, “acusação inconsistente, pois o caminho do crime não foi percorrido, apenas pensado” e assim por diante.

No Mercado Público de Porto Alegre, diante do jornal aberto sobre a mesa e de uma xícara de café, eu pensei nos bolsonaristas conhecidos e imaginei uma figura que os sintetizasse. Então criei o Ademar, um empresário de 68 anos, que esteve presente nos acampamentos na frente dos quartéis, endossou o chamamento por “intervenção militar” após a derrota eleitoral e acreditou que a manifestação de 8 de janeiro foi um ato político de protesto “desfigurado por militantes do MST infiltrados”. Um direitista de coração, com problemas de cognição e raso entendimento de política.

Pois Ademar se afastou da militância no último ano, centrou sua atenção na atividade profissional, mas não mudou de opinião nem de posicionamento político. Nesta semana quebrou o silêncio e compartilhou postagens no Facebook denunciando a “farsa dos comunistas que estão instrumentalizando a PF e a Rede Globo”. Imagino que esteja impossível, vociferando indignações, e talvez enchendo os ouvidos da sua nova namorada (Sueli, 63 anos) com informações oriundas de grupos de WhatsApp e da Revista Oeste. Sueli não comunga com o seu ideário político-ideológico, mas não contesta. Às vezes contrapõe uma coisa e outra, mas sempre com muita leveza, apenas para dizer que está ali, que tem uma voz. Os dois têm um relacionamento sem compromisso (Ademar e Sueli são recém separados) e vão “devagar com o andor”, como dizem um para o outro. Sueli acha Ademar um homem de “cepa tradicional” e tanto gosta disso como às vezes se assusta, pois tanto conservadorismo (especialmente machismo) às vezes incomoda. Ele considera Sueli uma mulher ousada, às vezes "meio comunista", e tanto isso o fascina quanto o preocupa e o faz recuar.

Ademar vive um momento difícil na sua vida pessoal devido ao divórcio, a divisão do patrimônio construído em décadas de trabalho com a antiga esposa, a queda nos rendimentos e a "necessidade" de dobrar suas horas de trabalho. Para as amigas, Sueli sintetiza a situação de Ademar:

– Agora que está com quase 70 anos, quando achava que só iria aproveitar a vida, se sente obrigado a recomeçar do zero e está inconformado. A situação repercute em vários aspectos da sua vida, na mente e no corpo, e muitas vezes se acorda no meio da noite e vai fumar na varanda, esquecido de que eu estou ali, com ele – ela acentua. - Falar mal do governo petista, do Vagabundo na presidência da República, às vezes é uma válvula de escape. Eu compreendo, mas canso.

Diante da Zero Hora na minha frente, considerando as informações a que tenho acesso, percebo não ter grande coisa a dizer a respeito da situação política que vivemos, mas posso fabular, ora bolas. Já escrevi tanto sobre esquerdistas que se sentem acossados pela sociedade dominante (meu livro de contos Uísque sem gelo tem muito disso) que é bom mudar o foco (fiz isso no meu romance Os caminhos de Santa Teresa) e tratar de direitistas que se sentem perseguidos pelo Sistema e até fantasiam tomadas violentas do poder. Fantasias insurrecionais que os levaram à frente dos quartéis cantando hinos patrióticos, instrumentalizados por um capitão esperto e seus generais... Felizmente, quase todos eles, profundamente amadores.



[1] OLIVEIRA, Rosane de. Golpistas deixaram rastros para todo lado. Zero Hora, 24/11/2024, p. 6.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Que tempos aqueles!

 

Alguns historiadores da sexualidade afirmam que a sociedade burguesa criou um silêncio em torno do que se passava dentro do quarto do casal. Um silêncio que perdurou até a década de 1960, quando se deu (ou iniciou) a tal “revolução sexual”, possibilitada pela difusão da pílula anticoncepcional.

É um exagero colocar a pílula como fator determinante dessa transformação comportamental a que chamamos de “revolução sexual”, afinal, o fator tecnológico (como a criação de uma medicação) foi apenas mais um na série de elementos que desencadearam as mudanças socioculturais dos anos 60. Mesmo assim, vá lá, a pílula teve um impacto tremendo.

Nos anos 70, as moças iam à farmácia para adquirir a primeira cartela de pílulas e isso consistia em uma espécie de ritual de iniciação, um movimento para romper o silêncio criado em torno da sexualidade. Encarar a “questão da concepção”, desvincular o ato sexual da reprodução e se preparar para viver a sexualidade, a delícia de “fazer amor”.

As mães não podiam saber e os pais, muito menos. Geralmente era uma tia ou amiga experiente quem orientava a moçoila nessa iniciação e o namoradinho, aquele que seria o elemento “deflorador” (ainda se usava esse termo), pouco sabia da novela toda.

Li o pequeno livro de Mary Del Priore, “Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história brasileira” (comentado na crônica anterior), e ainda estou tentando entender as mudanças que ocorreram... Entre os sinais dessas transformações, a aquisição da pílula.

Uma antiga namorada me relatou como foi a sua ida até a farmácia para adquirir a primeira cartela... e parece que vejo a cena. Ela e uma amiga, ambas “mortas de vergonha”, de óculos escuros, na porta da farmácia, escolhendo qual a funcionária as iria atender. “Vixe, como era complicado naquele tempo!”, ela comentou. Não era mais necessário receita médica, mas parece que era preciso contar com a compreensão do balconista. Um acontecimento e tanto.

O rompimento do silêncio criado em torno do que se passava dentro do quarto do casal? Sim, acho que não exagero. A maioria das filhas não sabia como suas mães transavam, se elas já utilizavam a pílula, se continuavam na “tabelinha”, se adotavam o diafragma ou outro método. Quanto aos rapazes, a ignorância era maior – com a diferença de que alguns já tinham perdido a virgindade, mas geralmente com uma prostituta (num quarto de cabaré ou, numa alternativa mais barata, com uma prostituta de calçada, de pé).

A mãe de uma amiga (uma mãe extremamente católica) dissera a filha que na hora do sexo cumpria as suas obrigações “como uma tábua”, sem sentir prazer algum (como se isso fosse uma virtude) e a pobre da guria me contou isso estarrecida.

Ainda vigorava o padrão criado no século XIX no qual as moças deviam ser inocentes e puras, semelhante às heroínas dos romances de José de Alencar (que se lia muito, ao menos eu li, no tempo de Ginásio), enquanto os rapazes deviam se aventurar nos prostíbulos e deter algum conhecimento. Que tempos, vixe! De um lado uma literatura exageradamente romântica, propagandeando uma postura idealista em relação ao amor, de outro os “catecismos” do Carlos Zéfiro versando sobre o mesmo assunto numa abordagem sacana, reduzindo o sexo a uma “grossa putaria”.

As moças envoltas em ares de virgindade, ignorantes a respeito da vida sexual, e os rapazes colocados na posição daqueles que deveriam “saber tudo”, mas na verdade lidando com informações muito rasas. Pobres rapazes! Sabíamos muito pouco. Os maiores sortudos haviam tido alguma experiência com uma tia, prima ou amiga mais velha, mas isso às vezes não adiantava grande coisa.

Uma noite, num bar de posto de gasolina (nas imediações da Avenida Farrapos), ouvi o relato de uma noite de núpcias na qual o noivo rasgara o vestido da noiva e a possuíra “sem frescuras”. Aquilo era brutal, mas também fascinante. Coisa de macho. Do ponto de vista masculino, não era completamente condenável. Comentámos que aquele não era o modelo ideal de tratar uma noiva, mas certamente uma alternativa. “As mulheres são cheias de dengues e não dá pra afrouxar”, avisavam os mais velhos. Era preciso firmeza para cumprir o papel de homem na primeira noite de casamento.

Que tempos aqueles, vixe! Éramos os figurantes de uma geração que deixava de se relacionar regularmente com prostitutas, que começava a transar com as namoradas, no entanto esbanjávamos ignorância a respeito de como fazermos isso...

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Histórias íntimas

 

Não é pouca coisa o que a autora, Mary Del Priore, pretendeu nesse pequeno livro (238 p.) a respeito da sexualidade e erotismo na história do Brasil.[1] Dar conta desse mundo privado (talvez o mais privado de todos, aquilo que se passa na cama) não é tarefa fácil. Mas a autora dá conta do recado. Uma visão geral (dentro do possível, como ela afirma mais de uma vez) a respeito de como a população que habitou e ainda habita a Terra Brasilis viveu e vive a sua sexualidade, sensualidade, desejos. Com pouca higiene e escassa privacidade no período colonial; de forma muito regrada no período imperial e boa parte do republicano (especialmente dentro do casamento); mais leve e solta nas últimas décadas, depois da “revolução sexual” das décadas de 1960 e 70.

O livro foi publicado em 2011 e, na introdução, a autora afirma que a primeira década do século XXI é caracterizada por quebra de tabus e maior tolerância. Li esse livro logo que saiu e, relido agora, tenho a impressão de que Mary Del Priore, depois do avanço do conservadorismo/bolsonarismo, não diria a mesma coisa. Afinal, o que parecia consolidado – quanto à emancipação feminina, à diversidade sexual e às tentativas de reconstrução das identidades sexuais – desmoronou. O bolsonarismo jogou na cara de muitos de nós que o avanço/liberação dos costumes... era chocante e deplorável para grande parte da população. Ora liberar aborto, aceitar gays e transexuais, reconfigurar a família, estabelecer novos modelos identitários para homens e mulheres!

Feita essa observação, no entanto, um livro e tanto. Capaz de colocar de forma acessível ao leitor médio os padrões e as transformações desses mesmos modelos ao longo dos quinhentos anos de história brasileira. De um período fortemente marcado pela moral sexual proposta pela Igreja Católica (nos períodos colonial, imperial e boa parte do republicano) chegamos aos anos 1960 e 70 quando os padrões são questionados, alterados, mesmo por aquela população que se dizia católica.

No período colonial, as mulheres eram consideradas “veículos de perdição” e um português do século XVI (João de Barros) chegou a afirmar que a paixão por elas era capaz de abreviar a vida de um homem. O prazer sexual era negado às mulheres, cabendo a elas apenas copular com vista à reprodução. Quanto aos homens, que eles pagassem o “débito conjugal” às suas esposas, tivessem ereções firmes e ejaculassem adequadamente. Se não conseguissem, corriam o risco de serem levados a julgamento público e passarem pelo “exame de elasticidade” (do pênis).

No século XIX, os casamentos continuaram orientados por questões econômicas e políticas, com pouco espaço para as afinidades e afetos, e a vida sexual não era grande coisa. O ideal feminino era o do recato e pegava bem se as mulheres (mesmo as esposas) revelassem certa repugnância ao contato físico. Os homens eram orientados a serem breves na cópula, sem manobras voluptuosas, pois o que importava era a ejaculação, essencial para a reprodução. O prazer masculino ficava restrito aos bordéis ou às amantes, se eles conseguissem isso. Havia a sífilis e outras doenças venéreas, “mulheres limpas” eram caras e pouco acessíveis a maioria dos homens. No final do século surgiu a literatura erótica (no início do XX a maior difusão de fotos com a mesma temática) e foi um santo remédio para os muitos solitários (imigrantes solteiros, p.ex.) e mesmo homens casados.

No início do século XX, porém, ocorrem rachaduras nesse muro de repressões, afirma a autora. Um novo ideal feminino começa a ser construído nas décadas de 1910 e 20 (ao menos para as elites educadas dos grandes centros urbanos) e o corpo feminino passa a ser valorizado. Um corpo de mulher ágil, exposto à atividade física e com menos pudor passa a ser o objeto de desejo masculino (e isto talvez tenha sido bom para as mulheres, imagino eu). Alguns poucos casais (talvez muito poucos, acentua a autora) seguem um novo modelo de relação sexual (uma nova orientação médica, mais arejada) e passam a buscar o orgasmo juntos (ainda sob a condução dos maridos, pois, afinal, eram eles que “conheciam” o mundo do sexo e às mulheres cabia obedecê-los sem revelar conhecimento sobre o assunto). Mesmo entre esses casais “avançados” o clitóris ainda não era valorizado e o jogo sexual permanecia desvantajoso para as mulheres. Mesmo assim, eram transformações. O tradicional regramento sexual era questionado e pouco a pouco se construía um novo padrão. O sexo conjugal com prazer, ao menos, já era visto como positivo.

Após a Segunda Guerra (nos chamados “Anos dourados”), os maridos ainda detinham o poder sobre as mulheres, a responsabilidade do sustento das esposas e filhos, cabendo às mulheres a tarefa de criarem a harmonia e felicidade familiar. Papéis bem delimitados, rígidos, nos quais a homossexualidade não tinha vez (não apenas do ponto de vista moral, mas porque era considerada uma anomalia, uma doença).

A rachadura completa desses padrões vai se dar com a “revolução sexual” das décadas de 1960 e 70. A pílula anticoncepcional (uma invenção norte-americana de 1957) chega as farmácias brasileiras nos anos 60 e libera o sexo da sua função reprodutora. “Fazer amor” passa a ser uma coisa boa, sem implicar em gravidez, e, ao mesmo tempo, vai se difundindo a ideia de que as mulheres têm a mesma capacidade dos homens para gozar. Os meios de comunicação de massas difundem essas novidades (a pílula, o prazer feminino, a emancipação das mulheres, novos modelos de identidade tanto para mulheres quanto para homens) e as coisas vão mudando. Novos padrões e modelos sendo estabelecidos.

Para mim, é um fenômeno difícil de compreender, apesar de ter vivido essas transformações e ser beneficiado por elas. Nos anos 70, em plena adolescência, vi desaparecer o costume da iniciação sexual masculina se dar com prostitutas, tive o “privilégio” de transar com as namoradas e posso dizer que ingressei na vida sexual de um modo diferente das gerações anteriores. Uma iniciação e um modo de construir a intimidade que abrem espaço para o prazer, a realização pessoal, o aprendizado a respeito do mundo feminino, e a construção de relações sexuais menos assimétricas do que as vividas pelos meus pais e a avós.

Um livro (uma releitura) que me possibilitou enormes reflexões e acho que pode ser útil e agradável a muitos.



[1] DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. SP: Planeta, 2011. 238 p.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Paris: uma história

 

Paris é uma cidade grávida do seu passado, conclui Yves Combeau, o autor de um pequeno livro, “Paris: uma história” (L&PM, 2024, 190 p.), que li movido justamente por essa sensação a respeito da “Cidade Luz”. O autor entende Paris como o resultado de uma alquimia em que se misturam realidades, imagens e imaginação, e apresenta uma síntese histórica e urbanística desde as origens, com a chegada da tribo celta dos Parisii (no século III a.C.) até o início do século XXI, que permitem uma visão geral do seu passado e presente.

Estive nesta cidade durante uma semana, em 2019, e vivi justamente o que o autor indica: a cada passo, a cada local, o encontro com uma “cidade grávida” de passado e construções imaginárias. Quando desci do táxi, na frente do Louvre, não foi só o antigo palácio real que eu vi, mas um cenário que me remeteu aos filmes baseados n“Os Três Mosqueteiros” que assisti na infância... O antigo palácio real, o atual museu e uma construção imaginária decorrente do cinema e da literatura. Realidade e imaginação. Como separar uma coisa da outra?

O livro não respondeu a todos os questionamentos, mas ajudou muito. Paris foi celta nos seus primórdios (séc. III a.C.), romana a partir de Júlio César, cristã desde o século III (com martírios numa das colinas, hoje denominada Montmartre), ganhou muralhas, catedrais, palácios e universidade, abrigando uma população numerosa e inquieta, que se fez protagonista de movimentos políticos como os de 1792 (a Revolução Francesa), 1830 (a deposição de Carlos V), 1848 (um ensaio de revolta popular) e 1871 (a Comuna de Paris). Um polo de inovações políticas e artísticas, como aponta o autor ao enfocar a tradição revolucionária da cidade e as suas criações artísticas (como as obras românticas do século XIX – “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo, e o alto-relevo, “A partida dos voluntários”, no Arco do Triunfo – que a maioria de nós consumiu, de um modo ou de outro).

O breve livro não decifra todas as interrogações que afloram a um viajante, mas (como indiquei acima) auxilia. Num entardecer, caminhando entre a Ópera Garnier e o rio Sena, atravessei uma praça, me deparei com uma enorme coluna que me remeteu a alguma coisa da Roma Antiga... e agora eu sei: era a Coluna Vendôme, construída no período napoleônico, seguindo o modelo da Coluna de Trajano (narrando episódios bélicos) e fundida com 1.200 canhões tomados dos russos e austríacos no campo de batalha.

Rue de la Paix. Ao fundo, a Coluna de Vendôme.

Referências militares, por sinal, é o que não faltam no universo parisiense. O Arco do Triunfo (na Avenida Champs-Elysées) e o Salão das Batalhas (no Palácio de Versalhes) que o digam. Em ambos a exaltação da guerra na formação da nação francesa, tudo de modo glorioso e eloquente. Realidade militar que o autor acentua ao historiar um roteiro interminável de conflitos armados que vêm desde a chegada dos romanos, passa pelo medievo (com muitas disputas pelo trono, mais a Guerra dos Cem Anos), as guerras religiosas no século XVI (o inacreditável Massacre de São Bartolomeu), o cerco prussiano de 1870, até a ocupação nazista.

Minha leitura a respeito de Paris não vai encerrar por aqui e tomo este pequeno livro como mais um incentivo, num jogo que começou há décadas, desde quando me aventurei nas águas de Maupassant, Mérimée, Balzac, Zola, e tantos outros. Pena não haver maior detalhamento da bibliografia final do livro, indicando o que se encontra nas editoras brasileiras a respeito do assunto.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Milionárias comunistas nas Galerias Lafayette

 

Dias atrás assisti a um documentário francês chamado “A reinvenção da China” (2023, 110 min.), que encontrei disponível no Canal Curta!, e recordei a conversa cumprida que se faz desde o final da década de 1970 a respeito das reformas que transformaram o socialismo chinês (propostas pelo grupo dirigente que sucedeu a Mao Tsé-Tung). Eu comecei a lecionar História nessa época (1978) e me esforcei para compreender as mudanças. O assunto fazia parte do programa de algumas disciplinas e era um desafio tremendo. Faltavam informações, bibliografia, e uma das melhores coisas que li e utilizei em sala de aula foi o livro “Henfil na China – antes da Coca-Cola” (Ed. Codecri, 1980), a descrição da viagem do cartunista Henfil pelo país comunista. Meu repertório de professor de escola era certamente muito restrito.

A mudança da economia chinesa para o “socialismo de mercado” (o termo não é dos melhores, mas é o usual) foi acompanhada pelo ressurgimento de uma burguesia (essencial para o estabelecimento e crescimento de empresas privadas, consideradas imprescindíveis para o desenvolvimento nacional pelo Partido Comunista Chinês) e, desta maneira, apareceu um número considerável de novos ricos, muitos deles chegando à condição de milionários. Em 2021, o HSBC Consulting apontava um número de quase dois milhões de milionários chineses (com patrimônio líquido de até 1,5 milhão de dólares) e previa a duplicação desse número até 2025. Algo inimaginável na cabeça do professor de 1º e 2º graus que eu fui ao longo dos anos 80.

Em 2019, quando estive em Paris, visitei as Galerias Lafayette, vi umas mulheres orientais com malas de rodinha desfilando e me disseram: “São milionárias chinesas fazendo compras. Elas adquirem tanta coisa que é mais cômodo andar com uma mala do que carregar uma infinidade de sacolas.” Vi uma oriental acomodando uma mala num degrau de uma escada rolante (ela no degrau logo atrás), observei outra candidamente parada ao lado da sua mala numa pequena fila, na frente de um departamento de grife de luxo... e cheguei a imaginar que seria um bom exemplo para utilizar na sala de aula. “Olhem o que proporcionou o socialismo chinês”, eu poderia dizer. Isto se eu ainda tivesse sala de aula, pois estou aposentado desde 2016.

Nas Galerias Lafayette eu era um mero turista, acompanhando um grupo de professoras e alunas dos cursos de Design e História (da UFN, de Santa Maria) numa excursão cultural voltada para a arte e a moda. O grupo se propunha percorrer uma fatia elegante do mundo parisiense e faziam parte do roteiro o Museu Yves Saint Laurent, a Fundação Louis Vuitton, o Louvre, o Museu d’Orsay e o Palácio de Versalhes. As Galerias me foram apresentadas como um point importante do universo da moda, cenário de lançamentos de tendências que se difundem pelo planeta todo.

Visitantes apreciando o espaço criado pela a cúpula em estilo Art Nouveau
no principal edifício das Galerias Lafayette.

Uma professora me mostrou o valor de algumas peças de vestuário que estavam à venda – “As mais baratas”, ela disse – e eu vi que aquele era um mundo inacessível para os reles mortais. Como a maioria dos visitantes, fiquei restringido a apreciar a cúpula em estilo Art Nouveau que está no edifício principal das Galerias e também a vista deslumbrante da cidade que o terraço do prédio oferece: a Ópera Garnier logo em frente, a Torre Eiffel mais adiante, a igreja de Montmartre lá longe.

Paris vista do terraço das Galerias Lafayete: a Ópera Garnier à esquerda,
a Torre Eiffel à direita, lá longe.

Dias depois voltei para almoçar num dos pequenos restaurantes que se encontram nos corredores das Galerias e, sentado diante de uma mesa (tendo uma deliciosa e diminuta refeição na frente), ouvi a professora de História que eu acompanhava dizer que nunca vira tanta gente com roupas de grife por metro quadrado. Avistamos mais algumas orientais (nenhuma delas com malas de rodinhas, apenas sacolas) e foram essas figuras que lembrei assistindo ao documentário.

Provavelmente eram aquelas milionárias comunistas as que mais se divertiam naquele “shopping”. Elas se abasteciam de produtos das marcas Chanel, Dior e Louis Vuitton, graças a política traçada pelo Partido Comunista Chinês e, apesar de extremamente discretas e nada sorridentes, me pareciam que riam desbragadamente. Afinal, não fosse a reinvenção chinesa do velho comunismo soviético (aquele que a revolução liderada por Mao Tsé-Tung implementara), elas não estariam ali. Quem sabe até nem fossem genuinamente comunistas (muitos milionários chineses têm fugido do país nos últimos anos), mas foi o PCC que possibilitou o seu enriquecimento. Uma aula que o professor de História que eu fui teria muita dificuldade em ministrar.

domingo, 29 de setembro de 2024

Assalto ao quartel do 7º RI

 

Lembranças são assim: chegam de supetão. Comigo isso acontece frequentemente. E nem sempre são memórias ruins, pelo contrário. É um prazer ser tomado por elas.

Pois ontem de manhã eu estava caminhando por Santa Maria (me despedindo da cidade), passo pela frente do antigo quartel do 7º RI e recordo uma madrugada do início da década de 1990, quando meu amigo Luís Eugênio e eu fomos lá, paramos na frente do prédio, e rememoramos uma história que gostávamos muito.

Quartel do antigo 7º RI, atualmente do Comando da 6ª Brigada de Infantaria Blindada.
Foto do blog de José Antônio Brenner.

Eu morava em Santa Maria há pouco tempo (viera para esta cidade para lecionar na UFSM) e um colega nosso da Universidade nos dissera ter vivido um episódio fantástico (surreal, aos meus ouvidos) a respeito de um assalto àquele quartel, para salvamento de presos políticos, no final dos anos 60. Era uma história que ouvi o professor contar uma única vez, depois de ter bebido umas e outras. Um relato à boca pequena, com muitas lacunas, que resumo em dois parágrafos:

Ele pertencera a uma organização política que fazia oposição ao Regime Militar e alguns companheiros haviam sido presos. Entre esses militantes, uma moça muito bonita... Aqueles que não haviam caído se reuniram para deliberar a respeito do que fariam em relação às prisões e ele propôs a invasão do quartel. A turma recuou e ele, corajosamente, decidiu encarar a empreitada sozinho.

O restante da história é o professor, então um jovem estudante, com um lenço vermelho no pescoço, uma Smith & Wesson de cabo de madrepérola numa mão, uma granada na outra, tomando o quartel de assalto, durante uma madrugada. Ele imobiliza o guarda do portão principal, este o leva até a cadeia, os presos são libertados e ele os conduz pelo meio do campo, de Jeep, até a fronteira com o Uruguai.

Na oportunidade em que ouvi a história, o professor não admitiu contestação. Quando Luís Eugênio questionou – “Mas como, sozinho, invadir um quartel?!” –, ele se fechou e não tocou mais no assunto.

Luís Eugênio e eu, no entanto, nunca mais esquecemos e rememoramos o “causo” diversas vezes. Certa noite, depois de um jantar e muita conversa, resolvemos ir para frente do quartel para observar “in loco” se era possível ou não aquela história toda. Eugênio tinha um Opala e estacionou o carro na frente do 7º RI. Descemos e ficamos relembrando cada detalhe do mirabolante episódio: a Smith & Wesson, a granada, o susto do soldado que fazia a guarda no portão do quartel, a libertação dos presos e a viagem de Jeep pelo meio do campo, durante uma madrugada escura, em direção ao Uruguai...

– Uma história gaudéria – resumia Luís Eugênio, lembrando o detalhe do lenço vermelho, maragato, que o então jovem estudante colocara no pescoço para realizar a sua operação de salvamento.

Eugênio e eu nunca encontramos indício algum de que ocorrera um assalto ao quartel para o salvamento de presos políticos ou por outro motivo.

 

Obs.: o quartel do 7º RI foi inaugurado em 1913 e, segundo a descrição do memorialista José Antônio Brenner, suas “platibandas têm ameias imitando os parapeitos de fortaleza e nos cunhais há miniaturas de torreões ameados”. Uma construção impactante. Em 1987, o quartel passou a abrigar o Comando da 6ª Brigada de Infantaria Blindada, mas até hoje a população da cidade o designa como “Quartel do Sétimo”.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Pilcha farroupilha

      Dois colegas de escritório, um homem e uma mulher, estão na cozinha da empresa sentados em torno de uma mesa, bebendo café, cada um com o seu celular diante dos olhos. A mulher espirra e diz:
     – Foi desse homem que eu apanhei. 
     – Apanhou muito? 
     – Apanhei essa gripe. Tive um pouco de febre, mas já passou. Só ficaram esses espirros. 
     – Me mostra ele – o colega pede. – É teu namorado? 
    – Mais ou menos – ela diz, virando o celular para o amigo, apresentando a foto de um homem de cabelos brancos e um pequena barriga se destacando por cima do cinto das calças. 
    – Vocês estão se dando bem? 
    – Acho que sim – ela repete. 
    – Mas dias atrás ele quis me levar numa festa gauchesca, me mostrou a pilcha dele e eu não me controlei. Disse que achava aquilo muito atrasado, muito sem graça, sei lá. 
    – E o homem emputeceu, foi isso? 
    – Não, mas se ofendeu. Cheguei a dizer que esse negócio de pilcha farroupilha era horrível. Nem devia ter falado desse jeito, mas escapou. Perdi o controle. 
    – Pois é, quem é chegado no tradicionalismo e se pilcha na Semana Farroupilha se ofende quando alguém critica essa coisa toda. 
    – Isso aí. Ele se ofendeu e até disse que eu não amo o Rio Grande. 
    – E que isso de olhar torto para as comemorações da Revolução Farroupilha é coisa dos comunistas que estão infestando as universidades e fazendo guerra cultural, confere? 
    – Isto mesmo. Como é que tu sabes? 
    – Pela “lata” de tiozão dele. Tem todo o jeito de um sujeito conservador. Ele acampou na frente dos quartéis pedindo intervenção militar? 
    A mulher se levanta, vai ao balcão se servir de mais café, volta para a mesa e diz: 
    – É um homem das antigas, conservador. Mas vamos pular essa parte da política – ela acentuou. – A gente não fala muito nisso. O que importa é que estou gostando de lidar com um homem desse tipo. Com outra pegada, sabe? Eu estava me controlando, mas aí ele me mostrou a tal da pilcha, disse que queria me ver vestida naquele estilo... e eu estrilei. 
   – Vocês discutiram? 
   – Não, não chegamos a esse ponto. Mas nós alteramos. Pela primeira vez eu disse que não sou uma mulher convencional, que se vestir de prenda não faz o meu estilo, o meu jeito de ser, e ele se assustou. 
   – E a festa gauchesca que ele queria te levar? 
   – Eu desconversei naquela noite. Aí veio a gripe e eu aproveitei para dizer que ia ficar em casa, na cama, vendo Netflix. 
   – A gripe que tu apanhaste dele? 
   – Hahã. 
   – Gripe oportuna, hein? 
   – Isso mesmo. Não nos vemos desde que começaram as festanças da Semana Farroupilha e nesse tempo só trocamos mensagens. 
   – O tiozão entendeu o teu estilo, o teu jeito, então? 
   – Não sei. Me mandou uma foto dele todo pilchado, dizendo que ama o Rio Grande e as suas tradições. 
   – E tu? 
   – Eu respondi que eu também. Mas que estava gripada, com febre, acamada, sem disposição para festas. Quase falei que o Rio Grande esperasse por mim, mas me controlei.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A Imperatriz Leopoldina

 

Quem passeia por museus ou exposições de arte sabe: tem obras que puxam os olhos da gente. Pois a visita que fiz ao Museu do Ipiranga, dias atrás, não fugiu a essa regra. Entrei no Salão Nobre do museu, onde se encontra a grande tela de Pedro Américo, “Independência ou morte!”, e o que me chamou mais atenção foi um quadro da Imperatriz Leopoldina, rodeada pelas quatro filhas e com o futuro imperador D. Pedro II no colo.

Na frente da famosa tela da “Independência...” o meu olhar vagou pelas figuras solenes do então Príncipe Regente e sua comitiva, se fixou no tropeiro no canto à esquerda, que observa espantado para aquele bando de cavalarianos gritando entusiasmado, e na sequência pousou no quadro da Leopoldina.

"Retrato de D. Leopoldina de Habsburgo e seus filhos" (1921),
de Domenico Failutti.

Ela não era uma mulher bonita e o artista que a pintou não dourou a pílula. Se bem que deu um toque de vivacidade à imperatriz, tornando-a muito simpática. Um quadro que Afonso Taunay (o diretor do Museu na época do 1º Centenário da Independência) mandou pintar em 1921 para reconfigurar a sala. Um quadro colocado na parede à esquerda da famosa tela de Pedro Américo, enquanto na outra parede, à direita, encontra-se um quadro representando Maria Quitéria. As duas, uma rainha e uma mulher-soldado, dando o toque feminino ao processo de emancipação política festejado naquela sala.

Leopoldina era uma princesa do Império Austríaco (filha do imperador Francisco I) que veio para o Brasil em 1817 (com 20 anos) casar-se com o príncipe D. Pedro (naquela altura, o futuro rei de Portugal). A mulher viveu nove anos no Brasil, engravidou nove vezes, sofreu dois abortos e pariu sete filhos. Cinco sobreviveram. Era uma princesa educada para ser rainha e sabia muito bem o papel que devia exercer, isto é, “fazer filhos”.

Li o livro da historiadora Mary Del Priore, “Leopoldina & Maria da Glória: duas rainhas: vidas e dores”, e fiquei impactado com a trajetória da imperatriz.[1] Neste livro, a autora recria a voz da filha primogênita de Leopoldina, Dona Maria da Glória (1819-1854, rainha de Portugal a partir de 1834), e faz ela narrar a vida da mãe. Uma estratégia narrativa que funciona. Tanto permite uma compreensão da trajetória íntima de Leopoldina (suas aspirações, o casamento, as frustrações) quanto da sua ação política a favor da independência do Brasil e do estabelecimento da monarquia.

Segundo a narrativa ficcional empregada, Leopoldina se colocou na posição de ter “quantos filhos pudesse” com o marido imperador. Ao casar aspirava “amor, afeto e compreensão” e o prazer sensual não estava no seu horizonte. Entendia o casamento como um sacerdócio, um encontro mais de almas do que de corpos, salvo para procriar, e mesmo frustrada devido a rudeza e indiferença do marido, não deixou de cumprir o seu dever. Em 1826, aos 29 anos, morreu de tanto engravidar. Uma trajetória, ao que tudo indica, comum às mulheres de sua época.

Quanto ao comportamento político, Leopoldina compreendeu bem as relações entre Brasil e Portugal (a emancipação política da antiga colônia era inevitável), se colocou a favor da independência e, principalmente, defendeu a adoção do sistema monárquico. Neste último aspecto, visando garantir a continuidade da sua família no poder. Pautava-se pelo ideário tradicional (o absolutismo monárquico, no qual fora criada) e seu envolvimento com o ideário liberal era apenas de fachada.

No Salão Nobre do Museu do Ipiranga, foi a Imperatriz Leopoldina que ganhou a minha atenção, deixando o ilustre marido em segundo plano (apesar de ele ser a figura central da narrativa visual apresentada como indiquei na crônica anterior). Certamente foi o livro da Mary Del Priore (que começara a ler dias antes) que ascendeu o meu interesse pela personagem. No livro, Leopoldina é descrita como uma mulher que sofria “ingratidões e desgostos” e se resignava ao seu papel de rainha: engravidar e parir sem pestanejar e fazer política quando isso fosse possível.



[1] DEL PRIORE, Mary. Leopoldina & Maria da Glória: duas rainhas: vidas e dores. RJ: José Olympio, 2024. 112 p.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Visita ao Museu do Ipiranga

 

Estive em São Paulo com minha companheira e fizemos um pouco de tudo. Sete dias de passeios intensos e variados. Batemos pernas pelo centro da cidade, pela Avenida Paulista e achamos tudo muito bonito. Só nos demos mal quando saímos do Mercado Municipal e enveredamos por uma rua muito suja, com moradores de rua revirando lixo. Assustados (eu cheguei a imaginar o pior), saímos dali o mais depressa possível.

Afora este episódio desagradável, andamos somente pelos espaços bacanas da cidade: os museus, as casas-museus, os institutos culturais, as livrarias, as padarias e os bons restaurantes. Entre esses lugares bonitos, o Museu do Ipiranga, que reinaugurou em 2022. Um lugar que eu estava curioso para rever e saber como foram mantidas/reorganizadas as velhas narrativas criadas por Afonso Taunay, diretor do museu na época das comemorações do 1º Centenário da Independência. Narrativas centradas em grandes personalidades (como Raposo Tavares, Fernão Dias e D. Pedro I) que, com o tempo, foram consideradas “eurocêntricas, androcêntricas, etnocêntricas e elitistas”.

Prédio do Museu do Ipiranga.
No primeiro andar, o salão nobre, onde se encontra o quadro de Pedro Américo.

Uma tarefa e tanto manter as pinturas e esculturas que embasam uma visão de história (hoje contestada) e, ao mesmo tempo, indicar os contrapontos e críticas a essa narrativa. Uma empreitada levada a bom termo, me pareceu. O museu foi construído para consolidar e exaltar uma visão paulista da história brasileira, iniciada pelos bandeirantes, centrada no famoso grito do Ipiranga, e não poderia fugir disso.

“Independência ou Morte!”, o famoso quadro de Pedro Américo está exposto na sala central (o  salão nobre) e na outra extremidade (fora do museu, depois de um extenso jardim e uma alameda igualmente longa) encontra-se o colossal Monumento à Independência. Este o eixo do museu. D. Pedro I erigido como personalidade fundamental, o herói que promoveu o rompimento dos laços com a Metrópole por meio de um gesto solene (o grito do Ipiranga) e consolidou um Estado Nacional de forma negociada e pacífica. Um modo de encarar a nossa independência desconsiderando os conflitos militares ocorridos nas províncias da Cisplatina, Bahia, Piauí, Maranhão e Grão-Pará, gerados por uma expressiva resistência armada portuguesa. Não foi fácil derrotar a gente lusitana! Houve guerra, sim, não muito diferente das que ocorreram no restante da América Latina, nas colônias espanholas.

Mas a visão que se consagrou foi a de um processo pacífico protagonizado pelas elites do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, entendimento que o Museu do Ipiranga consolidou. Uma visão de História que tem a sua matriz no Instituto Histórico Geográfico, no Rio de Janeiro, durante o Segundo Reinado, mas que não vou desenvolver aqui (é conversa pra mais de metro), apenas indicar.

Jardim e alameda, caminho entre o museu e o Monumento à Independência.

Na visita que fiz ao Museu do Ipiranga, dias atrás, eu queria era cumprir o rito proposto pela historiografia tradicional. Após contemplar o famoso quadro, propus a minha companheira caminharmos até o Monumento à Independência e ela topou. Fazia um calor danado e fomos. Valeu a pena. Nas outras vezes que visitara o museu não encarara a peregrinação até o monumento e dessa vez completei o ciclo: o quadro de Pedro Américo, a caminhada pelo jardim e alameda, o monumento.

Quando cheguei diante do monumento, o fogo estava acesso na pira da pátria e D. Pedro I e seus soldados estavam lá – em bronze – montados nos seus cavalos e erguendo as espadas. Um espetáculo e tanto. Professor de História que fui durante 38 anos, me senti realizado.

Painel central do Monumento à Independência.
Recriação do grito do Ipiranga imaginado por Pedro Américo.