quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Histórias íntimas

 

Não é pouca coisa o que a autora, Mary Del Priore, pretendeu nesse pequeno livro (238 p.) a respeito da sexualidade e erotismo na história do Brasil.[1] Dar conta desse mundo privado (talvez o mais privado de todos, aquilo que se passa na cama) não é tarefa fácil. Mas a autora dá conta do recado. Uma visão geral (dentro do possível, como ela afirma mais de uma vez) a respeito de como a população que habitou e ainda habita a Terra Brasilis viveu e vive a sua sexualidade, sensualidade, desejos. Com pouca higiene e escassa privacidade no período colonial; de forma muito regrada no período imperial e boa parte do republicano (especialmente dentro do casamento); mais leve e solta nas últimas décadas, depois da “revolução sexual” das décadas de 1960 e 70.

O livro foi publicado em 2011 e, na introdução, a autora afirma que a primeira década do século XXI é caracterizada por quebra de tabus e maior tolerância. Li esse livro logo que saiu e, relido agora, tenho a impressão de que Mary Del Priore, depois do avanço do conservadorismo/bolsonarismo, não diria a mesma coisa. Afinal, o que parecia consolidado – quanto à emancipação feminina, à diversidade sexual e às tentativas de reconstrução das identidades sexuais – desmoronou. O bolsonarismo jogou na cara de muitos de nós que o avanço/liberação dos costumes... era chocante e deplorável para grande parte da população. Ora liberar aborto, aceitar gays e transexuais, reconfigurar a família, estabelecer novos modelos identitários para homens e mulheres!

Feita essa observação, no entanto, um livro e tanto. Capaz de colocar de forma acessível ao leitor médio os padrões e as transformações desses mesmos modelos ao longo dos quinhentos anos de história brasileira. De um período fortemente marcado pela moral sexual proposta pela Igreja Católica (nos períodos colonial, imperial e boa parte do republicano) chegamos aos anos 1960 e 70 quando os padrões são questionados, alterados, mesmo por aquela população que se dizia católica.

No período colonial, as mulheres eram consideradas “veículos de perdição” e um português do século XVI (João de Barros) chegou a afirmar que a paixão por elas era capaz de abreviar a vida de um homem. O prazer sexual era negado às mulheres, cabendo a elas apenas copular com vista à reprodução. Quanto aos homens, que eles pagassem o “débito conjugal” às suas esposas, tivessem ereções firmes e ejaculassem adequadamente. Se não conseguissem, corriam o risco de serem levados a julgamento público e passarem pelo “exame de elasticidade” (do pênis).

No século XIX, os casamentos continuaram orientados por questões econômicas e políticas, com pouco espaço para as afinidades e afetos, e a vida sexual não era grande coisa. O ideal feminino era o do recato e pegava bem se as mulheres (mesmo as esposas) revelassem certa repugnância ao contato físico. Os homens eram orientados a serem breves na cópula, sem manobras voluptuosas, pois o que importava era a ejaculação, essencial para a reprodução. O prazer masculino ficava restrito aos bordéis ou às amantes, se eles conseguissem isso. Havia a sífilis e outras doenças venéreas, “mulheres limpas” eram caras e pouco acessíveis a maioria dos homens. No final do século surgiu a literatura erótica (no início do XX a maior difusão de fotos com a mesma temática) e foi um santo remédio para os muitos solitários (imigrantes solteiros, p.ex.) e mesmo homens casados.

No início do século XX, porém, ocorrem rachaduras nesse muro de repressões, afirma a autora. Um novo ideal feminino começa a ser construído nas décadas de 1910 e 20 (ao menos para as elites educadas dos grandes centros urbanos) e o corpo feminino passa a ser valorizado. Um corpo de mulher ágil, exposto à atividade física e com menos pudor passa a ser o objeto de desejo masculino (e isto talvez tenha sido bom para as mulheres, imagino eu). Alguns poucos casais (talvez muito poucos, acentua a autora) seguem um novo modelo de relação sexual (uma nova orientação médica, mais arejada) e passam a buscar o orgasmo juntos (ainda sob a condução dos maridos, pois, afinal, eram eles que “conheciam” o mundo do sexo e às mulheres cabia obedecê-los sem revelar conhecimento sobre o assunto). Mesmo entre esses casais “avançados” o clitóris ainda não era valorizado e o jogo sexual permanecia desvantajoso para as mulheres. Mesmo assim, eram transformações. O tradicional regramento sexual era questionado e pouco a pouco se construía um novo padrão. O sexo conjugal com prazer, ao menos, já era visto como positivo.

Após a Segunda Guerra (nos chamados “Anos dourados”), os maridos ainda detinham o poder sobre as mulheres, a responsabilidade do sustento das esposas e filhos, cabendo às mulheres a tarefa de criarem a harmonia e felicidade familiar. Papéis bem delimitados, rígidos, nos quais a homossexualidade não tinha vez (não apenas do ponto de vista moral, mas porque era considerada uma anomalia, uma doença).

A rachadura completa desses padrões vai se dar com a “revolução sexual” das décadas de 1960 e 70. A pílula anticoncepcional (uma invenção norte-americana de 1957) chega as farmácias brasileiras nos anos 60 e libera o sexo da sua função reprodutora. “Fazer amor” passa a ser uma coisa boa, sem implicar em gravidez, e, ao mesmo tempo, vai se difundindo a ideia de que as mulheres têm a mesma capacidade dos homens para gozar. Os meios de comunicação de massas difundem essas novidades (a pílula, o prazer feminino, a emancipação das mulheres, novos modelos de identidade tanto para mulheres quanto para homens) e as coisas vão mudando. Novos padrões e modelos sendo estabelecidos.

Para mim, é um fenômeno difícil de compreender, apesar de ter vivido essas transformações e ser beneficiado por elas. Nos anos 70, em plena adolescência, vi desaparecer o costume da iniciação sexual masculina se dar com prostitutas, tive o “privilégio” de transar com as namoradas e posso dizer que ingressei na vida sexual de um modo diferente das gerações anteriores. Uma iniciação e um modo de construir a intimidade que abrem espaço para o prazer, a realização pessoal, o aprendizado a respeito do mundo feminino, e a construção de relações sexuais menos assimétricas do que as vividas pelos meus pais e a avós.

Um livro (uma releitura) que me possibilitou enormes reflexões e acho que pode ser útil e agradável a muitos.



[1] DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. SP: Planeta, 2011. 238 p.

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