Visitei Pelotas depois de anos. Desci
na nova rodoviária [nos limites do perímetro urbano da cidade] e senti falta da
antiga rodoviária na Rua Marechal Deodoro, próxima ao centro. Estranhei o fato
dos ônibus não estacionarem mais em perpendicular numa rua de paralelepípedos
sujos de óleo. Mas era uma manhã de céu limpo – azul, muito azul – que logo
esqueci disso tudo e saí caminhando. Fui andando por uma avenida sem moradias,
que nem sabia onde ia dar, e deixei o sol e o vento escreverem no meu corpo as histórias
da cidade. Quando dei por mim, estava diante do Ginásio Pelotense.
Lembrei, então, de um desfile
escolar nos anos 60, no qual eu marchava nos batalhões do Colégio Gonzaga. Desfilávamos
naquela avenida [Bento Gonçalves], enquanto os alunos do Pelotense jogavam
milho em nossas pernas. Sorri pensando se Pelotas ainda abrigava essas
brincadeiras de estudantes e me vi – guri de onze anos – orgulhoso no meu
uniforme de calça azul-marinho e casaco vermelho.
Com esse uniforme, eu também
caminhava com meu pai pelo centro da cidade e ele contava histórias da Revolução
de 1923, quando Zeca Netto invadiu a cidade e deixou umas balas cravadas numa árvore
em frente ao Colégio Gonzaga.
– É verdade essa história? – eu perguntava.
Ele respondia que sim e explicava que era o que contavam quando era menino. [Nasceu
em 1924, um ano depois da Revolução.]
– Fala mais, pai – eu incentivava.
E ele se entusiasmava repetindo que a invasão começara de madrugada, pelos
lados do Fragata, e que logo os rebeldes tomaram os quartéis e avançaram para o
centro da cidade, onde foram ovacionados.
– Por que nunca fizeram um filme
sobre isso? – eu perguntava. Mas não lembro o que ele respondia.
Nós íamos ao cinema todos os
finais de semana – Cine Capitólio, Sete de Abril, Guarany, Pelotense – e depois
passávamos no Café Aquarius. Ele bebia um cafezinho, eu tomava um guaraná. Ele se
encostava no balcão e eu o observava beber numa minúscula xícara sem derramar
uma gota.
Mas nesse dia que voltei a
Pelotas não havia desfile de colegiais na Avenida Bento Gonçalves. A cidade se
movimentava no ritmo lento dos domingos e fiquei parado numa esquina, me dando
conta de que a cidade que eu procurava não existia mais. A banda do Colégio
Gonzaga não desfilaria naquele domingo e ninguém me contaria histórias da
Revolução de 1923.
Tratei de tomar alguma atitude e entrei
numa farmácia para comprar fichas de orelhão. Liguei para uma tia e me senti
abençoado quando ela me reconheceu e convidou para almoçar. A cidade se
reconfigurou naquele instante. Retomei meus passos, caminhei até uma casa de
porta e janela na Rua Santos Dumont – a casa dos meus avós paternos, falecidos
há décadas – e a tia estava na porta. Na cozinha, um cheio de galinha se
desprendia da panela e logo abrimos a primeira cerveja.
Não sei o que conversamos, mas
uma longa teia de lembranças e risos nos envolveram – e quase esqueci que
estava indo a Pelotas para um velório.
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