sábado, 31 de agosto de 2013

A biografia de Kafka

        Na década de 80, costumava freqüentar a biblioteca do Instituto Goethe, em Porto Alegre. Certa vez tirei uma biografia de Kafka, li menos da metade e a esqueci na estante de casa. Um mês depois, recebi correspondência do Instituto avisando que o livro estava atrasado. Prontamente, fui até a bibliotecária, entreguei o livro e procurei saldar a minha dívida. A funcionária, no entanto, respondeu que não havia multa pelo atraso. Bastava que o livro fosse entregue em boas condições. Fiquei admirado.
Não conheci outra biblioteca igual. Aquilo me pareceu o máximo de civilidade entre biblioteca e usuário: os atrasos plenamente compreendidos e nem sombra de punição. Cada leitor tem seu ritmo, cada livro impõe seu tempo e nem sempre o prazo das bibliotecas se adequam a esse compasso.
O episódio me faz pensar na temporada de Lênin na Suíça. Lênin escrevia aos bibliotecários e solicitava os livros que precisava. Os bibliotecários o atendiam, enviavam os títulos pelo correio e tudo se dava de maneira simples e cordial. Esse mundo europeu, civilizado, existia enfim no Brasil, conclui.
Nos anos 90, quando fui responsável por um gabinete de leitura no Curso de História da UFSM, sonhei com um sistema de empréstimo dessa natureza. Um sistema de total confiança entre a biblioteca e os usuários. O curso tinha um excelente acervo de historiografia e era fundamental incentivar e facilitar a consulta, a leitura e o apetite intelectual dos alunos. Com o passar do tempo, porém, alguns estudantes entenderam que poderiam se adonar dos livros... e nosso acervo foi minguando. Uma lástima!
Essa experiência foi um divisor de águas para mim. Não sei bem se me ensinou a respeito das pequenas maldades da alma humana ou quanto à nossa escassa educação. Seja como for, passei a entender que empréstimos de livros só funcionam se houver prazos e multas, alguma espécie de punição para o usuário relapso ou mal intencionado. Foi uma aprendizagem e tanto esse meu curto período no gabinete de leitura.
Será que o Instituto Goethe, de Porto Alegre, ainda continua não cobrando multas pelo atraso? Continuará a ser a ilha de civilidade que era nos anos 80?

Não sei. No mundo que conheço, as coisas só funcionam se houver punição. Caso contrário, a biografa do Kafka ou as obras de Lênin... ficariam dormindo nas estante de leitores esquecidos, relapsos ou mal intencionados mesmo.

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