sábado, 3 de agosto de 2013

A morte do general

O general morreu. O general estava preso, dormia na sua cela, foram acordá-lo e ele estava morto. O general, aquele mesmo a respeito do qual nós conversávamos numa praça de Buenos Aires, no verão de 1977.
         Mas não me pede para lembrar o nome da praça. Sei que ficava no centro da cidade. Nós éramos três jovens estudantes e havíamos comido pizza e bebido vinho num restaurante das imediações. Tu estudavas Ciências Sociais, interromperas o curso e trabalhavas numa livraria. Minha amiga e eu cursávamos os últimos anos dos cursos de Medicina e História, respectivamente, e visitávamos Buenos Aires pela primeira vez. Estávamos deslumbrados com a capital portenha e apavorados, também, pelo que tu nos contavas a respeito do golpe militar, no ano anterior.
Tu relatavas as aflições da esquerda argentina e dizias que muitos amigos e conhecidos haviam desaparecido, seguramente torturados e talvez estivessem mortos. Outros viviam na clandestinidade e nos desenhavas um quadro social no qual a vida cotidiana se estraçalhava.
         Não restava perspectiva para os grupos de esquerda, por mais que uma ou outra liderança afirmasse o contrário. Andando pelas ruas de Buenos Aires, cruzávamos por automóveis Falcon e nos explicavas que eram esses os carros dos sequestros. Dentro deles andavam paramilitares, militares e policiais, e eles capturavam e davam sumiço em quem entendessem ser inimigo do Estado: um estudante, um sindicalista, um militante de esquerda. E, depois disso, não se tinha mais notícias deles.
Tu falavas sussurrando, olhando para os lados e teu corpo vivia aflições que nos contagiavam. Nós estávamos sentados num banco da praça, era quase meia-noite e a praça estava movimentada, aparentemente por pessoas alegres e despreocupadas. 
Pedias que falássemos baixo e seguíamos tua orientação. Num banco próximo um casal se enroscava no maior amasso, braços e pernas entrelaçados, e eu disse que nas praças brasileiras nunca vira coisa igual. Aqui é assim, tu explicaste, e continuaste falando da situação dramática que o país vivia. Ou, pelo menos, que parte da população vivia – afinal, outros tantos apoiavam o general e seus comparsas.
Dias depois atravessei o Rio da Prata e voltei para o Brasil. Nós, brasileiros, vivíamos um outro momento político – a abertura do general Geisel se consolidava, mesmo que a achássemos conservadora e canhestra – e não padecíamos a conjuntura de terror vivida pelo povo argentino.
Tempos depois vieste ao Brasil, te reencontrar com minha amiga, mas a transa de vocês não rolou com a mesma química que acontecera em Buenos Aires. Faltou tempero, ela disse, e não entrou em detalhes.
Agora – depois que li na Internet a respeito da morte do general – me pergunto se permaneceste em terras brasileiras, seguiste para a Espanha ou regressaste ao teu país... Que foi feito de ti? Não recordo teu nome, mas lembro tua figura de cabeludo e a expressão soturna. Um argentino de origem italiana. Um estudante de esquerda assustado. Se continuas vivo, na certa estás pensando no general... 
Pois eu saio para andar pela cidade onde moro, no interior do Rio Grande do Sul, e parece que escuto nossas conversas em Buenos Aires... Atravesso a praça central, é início de uma noite de inverno e faz frio. Não vejo nenhum casal se abraçando e se beijando nos bancos da praça e nem avisto algum automóvel Falcon passando. Tenho a impressão de que uma noite latino-americano nos cobriu, aterrorizou, mas já amanheceu.
São bem outros os tempos que vivemos, mas alguma coisa ainda assombra. Vem do passado um lamento triste e sinto que minha alma escurece. Estou numa praça brasileira, sul-rio-grandense, santa-mariense, e caminho em silêncio em homenagem aos mortos, aos feridos e aos desaparecidos.
O general morreu. O general que comandou o golpe. E evito dizer seu nome.

(Maio de 2013)

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