O
general morreu. O general estava preso, dormia na sua cela, foram acordá-lo e
ele estava morto. O general, aquele mesmo a respeito do qual nós conversávamos
numa praça de Buenos Aires, no verão de 1977.
Mas não me pede para lembrar o nome da
praça. Sei que ficava no centro da cidade. Nós éramos três jovens estudantes e
havíamos comido pizza e bebido vinho num restaurante das imediações. Tu
estudavas Ciências Sociais, interromperas o curso e trabalhavas numa livraria.
Minha amiga e eu cursávamos os últimos anos dos cursos de Medicina e História,
respectivamente, e visitávamos Buenos Aires pela primeira vez. Estávamos
deslumbrados com a capital portenha e apavorados, também, pelo que tu nos
contavas a respeito do golpe militar, no ano anterior.
Tu
relatavas as aflições da esquerda argentina e dizias que muitos amigos e
conhecidos haviam desaparecido, seguramente torturados e talvez estivessem
mortos. Outros viviam na clandestinidade e nos desenhavas um quadro social no
qual a vida cotidiana se estraçalhava.
Não restava perspectiva para os grupos
de esquerda, por mais que uma ou outra liderança afirmasse o contrário. Andando
pelas ruas de Buenos Aires, cruzávamos por automóveis Falcon e nos explicavas
que eram esses os carros dos sequestros. Dentro deles andavam paramilitares,
militares e policiais, e eles capturavam e davam sumiço em quem entendessem ser
inimigo do Estado: um estudante, um sindicalista, um militante de esquerda. E,
depois disso, não se tinha mais notícias deles.
Tu
falavas sussurrando, olhando para os lados e teu corpo vivia aflições que nos
contagiavam. Nós estávamos sentados num banco da praça, era quase meia-noite e
a praça estava movimentada, aparentemente por pessoas alegres e despreocupadas.
Pedias
que falássemos baixo e seguíamos tua orientação. Num banco próximo um casal se
enroscava no maior amasso, braços e pernas entrelaçados, e eu disse que nas
praças brasileiras nunca vira coisa igual. Aqui é assim, tu explicaste, e
continuaste falando da situação dramática que o país vivia. Ou, pelo menos, que
parte da população vivia – afinal, outros tantos apoiavam o general e seus
comparsas.
Dias
depois atravessei o Rio da Prata e voltei para o Brasil. Nós, brasileiros,
vivíamos um outro momento político – a abertura do general Geisel se
consolidava, mesmo que a achássemos conservadora e canhestra – e não padecíamos
a conjuntura de terror vivida pelo povo argentino.
Tempos
depois vieste ao Brasil, te reencontrar com minha amiga, mas a transa de vocês
não rolou com a mesma química que acontecera em Buenos Aires. Faltou
tempero, ela disse, e não entrou em detalhes.
Agora
– depois que li na Internet a respeito da morte do general – me pergunto se
permaneceste em terras brasileiras, seguiste para a Espanha ou regressaste ao
teu país... Que foi feito de ti? Não
recordo teu nome, mas lembro tua figura de cabeludo e a expressão soturna. Um
argentino de origem italiana. Um estudante de esquerda assustado. Se continuas
vivo, na certa estás pensando no general...
Pois
eu saio para andar pela cidade onde moro, no interior do Rio Grande do Sul, e
parece que escuto nossas conversas em Buenos Aires...
Atravesso a praça central, é início de uma noite de inverno e
faz frio. Não vejo nenhum casal se abraçando e se beijando nos bancos da praça
e nem avisto algum automóvel Falcon passando. Tenho a impressão de que uma
noite latino-americano nos cobriu, aterrorizou, mas já amanheceu.
São
bem outros os tempos que vivemos, mas alguma coisa ainda assombra. Vem do passado
um lamento triste e sinto que minha alma escurece. Estou numa praça brasileira,
sul-rio-grandense, santa-mariense, e caminho em silêncio em homenagem aos
mortos, aos feridos e aos desaparecidos.
O
general morreu. O general que comandou o golpe. E evito dizer seu nome.
(Maio de 2013)
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