Esta
é uma lembrança do início dos anos 80. Fui num armazém (naquela época, eu
morava em Porto Alegre, no bairro Higienópolis), encontrei um vizinho e ele me
convidou para um copinho de cachaça (um martelinho, como se dizia). Eu aceitei e
ficamos conversando, encostados no balcão.
Meu
vizinho era um professor de Matemática que eu conhecia do Centro dos
Professores (CPERS), mais velho do que eu e calejado na luta política. Naquele
mês nós nos encontráramos numa palestra em comemoração ao 8 de março (Dia
Internacional da Mulher), e, ao final, saímos conversando sobre as
desigualdades entre homens e mulheres e abordando os modelos de masculino e
feminino, as relações amorosas entre homens e mulheres, e as possibilidades de
mudança disso tudo.
Como
morávamos no mesmo bairro, pegamos a mesma lotação e viemos papeando até a
parada final (na frente do armazém que citei acima). Inexperiente que eu era
(então recém-casado e ainda sem filhos), recordo que falara estar engajado nas
pautas feministas e ele riu.
–
Homem algum consegue isso – ele disse. – Aprendi na prática. Sempre há um
momento de confronto com a mulher e ela te diz, na lata, que tu és machista e
não tem jeito. Eu sou casado com uma mulher que age dessa maneira. Sempre está em
combate comigo e eu aprendi que é assim que as coisas funcionam.
Quando
o reencontrei no armazém e ele me convidou para beber cachaça, retomamos a
conversa e ele falou:
–
Minha mulher descascou em cima de mim. Me colocou no chinelo, bem como te disse
outro dia. Ela falou com todas as letras que eu não a valorizo, que eu sou como
todos os homens, humilho, agrido e assim por diante. Eu até fiquei pensando
se um dia dei um tapa nela ou não. Acho que não.
Ele
riu, se engasgou com a bebida, pediu mais outra cachaça e, com uma das mãos no
meu ombro, disse muito seriamente:
–
Não adianta nós querermos bancar os moderninhos e dizer que estamos alinhados
com as pautas feministas. As mulheres não engolem isso. A minha, jamais. E vai
se sentir humilhada & agredida até o fim da vida e eu que aprenda a lidar
com isso.
Não
recordo o resto da conversa. A lembrança é apenas a desta afirmativa
desconsolada, amarga, a respeito das possibilidades de entendimento entre
homens e mulheres. A compreensão de que a opressão masculina se encontra de tal
modo entranhada na nossa cultura, moldando nossas identidades e relações, que
não há jeito. Estamos presos nesse jogo.
Na
época eu estava no meu primeiro casamento e não tinha uma compreensão clara do
assunto. Existiam diferenças entre ela e eu, mais, jamais, a ponto de afirmar
que vivíamos em pé de guerra. Conversávamos muito e acho que nos entendíamos. Mas
o mundo girou, aquele casamento acabou, tive outros relacionamentos, e hoje
entendo melhor o que meu colega dizia.
Sim,
algumas mulheres vão sempre se sentir humilhadas & agredidas. Não já jeito.
A cultura da supremacia masculina não terminou, mas a coisa é mais complicada
que isso. Algumas mulheres viveram opressões terríveis (na infância ou seja lá
quando) e jamais se libertarão disso. Não conseguem se reconstruírem e a pauleira
continua. Mas algumas mulheres são diferentes, lidam com a figura
masculina de outro modo e se desprendem desse estado de conflito, sei lá. Algumas
mulheres.
Gostaria
de dizer apenas isso ao meu colega, com o qual nunca mais retomei a conversa.
Nós nos reencontramos em manifestações do Magistério (como no famoso
acampamento da Praça da Matriz, em 1987), mas nunca com condições de retomarmos aquela prosa, daquele modo descontraído, no balcão de um armazém.
Sim,
porque meus argumentos certamente só fazem sentido numa conversa de bar.
Argumentos frágeis para um tema tão complexo. Tentativa de esboçar uma visão
otimista quanto às relações entre homens e mulheres.
–
Meu amigo, homens e mulheres não vivem sempre em pé de guerra, procurando
vencer, dominar ou moldar um ao outro. Podem estar no mesmo barco, remando junto. Já vivi
isso. Já vivi os dois casos. Dá pra apostar em relacionamentos melhores.
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