Michael Löwy e Olivier Besancenot criaram uma ficção política muito instigante: O caderno azul de Jenny: a visita de Marx à Comuna de Paris.[1]
Karl
Marx nunca visitou a Comuna, estava em Londres e lá permaneceu durante o curto
período em que o proletariado parisiense se revoltou e tomou o poder, entre os
meses de março e maio de 1871. No entanto os autores conseguiram um modo muito
convincente de fazer o autor d’O Manifesto Comunista dar uma volta pela
cidade. Inventaram um diário escrito pela filha primogênita de Marx, Jenny, no
qual ela narra essa inusitada viagem. Um caderno que ficou escondido num baú
por mais de um século... Jenny convenceu o pai da empreitada (ela tinha um
namorado na revolta, Charles Longuet), e lá se foram pai e filha, devidamente
disfarçados.[2]
O
disfarce era importante não só para despistar a polícia francesa, como para não
prejudicar a Comuna, que sofria a falsa acusação de ser manipulada pelos
comunistas da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Jacobinos e
republicanos sociais eram os que davam as cartas na Comuna, os comunistas
constituíam uma minoria, mas pesava sobre estes últimos a acusação de serem os
verdadeiros chefes do movimento. O Governo de Thiers (que recém substituíra
Napoleão III) propagandeava essa inverdade, no sentido de descaracterizar a
autonomia dos revoltosos. Por isso os cuidados em despistar a polícia e os
espiões.
Uma
ficção bem urdida, muito instigante (ao menos para quem gosta da história do
socialismo). Marx revê Paris (aonde chegou em 1843 e foi expulso dois anos
depois) e constata as transformações que a cidade sofreu com as reformas de
Haussmann (o homem que “construiu a Paris que conhecemos hoje”). Em determinado
momento, ele e a filha estão na frente da Ópera Garnier ainda em construção,
“escondida atrás de andaimes raquíticos”, com as obras paralisadas devido à
guerra com a Prússia e depois com a revolução. Um local que já era conhecido como
espaço de luxo (lugar de bistrôs e hotéis elegantes) e a respeito do qual Jenny
comenta que o proletariado se apossou, mantendo o costume de se vestir “com
aprumo antes de caminhar pelas calçadas”.
Marx
e a filha dialogam com lideranças importantes da Comuna, com destaque para as
figuras femininas, dado o papel fundamental das mulheres na revolta (apesar de
impedidas de participar dos batalhões de combate). E, em relação a este
envolvimento feminino na luta revolucionária, uma das lideranças, Louise Michel, assim explica o comportamento das mulheres: “elas agem
de forma instintiva, não se deixando paralisar por cálculos políticos que
desestimulam a espontaneidade imanente dos oprimidos”.
A
Comuna foi massacrada pelas forças governistas e o número de mortos superou ao
do Terror jacobino (durante a Revolução Francesa), mas isso o texto não aborda.
Marx e Jenny se retiram antes. Para o leitor deste diário de viagem fica apenas
o lado glorioso dessa outra faceta parisiense: “a Paris da classe trabalhadora,
a do comunismo corporificado”. Cidade a respeito da qual Marx dizia que fora
aonde ele nascera politicamente, ao ter contato com a tradição revolucionária
francesa.
[1] LÖWY,
Michael; BESANCENOT, Olivier. O caderno azul de Jenny: a visita d Marx à
Comuna de Paris. Trad.: Fábio M. Querido. São Paulo: Boitempo, 2021. 120 p.
[2] Charles
Longuet, namorado de Jenny, não é uma figura fictícia e realmente tinha uma
relação com a moça. Eles se casaram no ano seguinte e tiveram seis filhos.
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