sábado, 4 de maio de 2024

Histórias de enchente

 

Um amigo me contou que morou alguns anos da sua infância na fazendola dos avós, na beira do rio Santa Maria (no município de Dom Pedrito), um que rio volta e meia transbordava, quando caia uma chuva forte, e uma única vez invadiu a sua casa. Ele se acordou de madrugada, sentou na beira da cama, procurou os chinelos com os pés... e encontrou água. Tinha 8 anos de idade e levou um susto tremendo. Logo se deu conta que acordara com o chamado do avô, que estava ao lado da sua cama, com um lampião numa mão, dizendo:

– Te apressa, guri. Procura as tuas botas de borracha que o rio tá subindo. Veste um agasalho que nós vamos sair de casa.

O rio não subiu mais do que aqueles centímetros que ele sentira com os pés nus, mas foi o quanto bastou. A partir daí, começava a chover e ele se preocupava. O rio transbordava, mas nunca mais voltou a chegar dentro de casa. Muita madrugada ele passou de olho estalado, lembrando a noite em que sentira as águas debaixo da sua cama...

Meu amigo contou que boa parte da sua infância foi “roubada” pela preocupação com as águas do rio. Depois, por volta dos doze anos, voltou a morar na cidade com os pais e não teve mais que pensar nisso. Mas nunca esqueceu o susto daquela noite, com a água do rio debaixo da sua cama, e volta e meia lembra disso, quando vê na TV imagens de enchentes.

A história desse meu amigo me cala fundo, pois uma vez estava em Dom Pedrito, caia uma chuva constante e dormi tranquilamente no centro da cidade, num hotel bacana e bem acompanhado. No outro dia pela manhã, depois de um despertar maravilhoso e um bom café de hotel, fui passear nos arredores da cidade... e encontrei o pessoal dos arrabaldes atordoado com a subida das águas do rio Santa Maria naquela madrugada.

A chuva passara, o dia estava ensolarado, e as águas do rio estavam voltando ao leito normal. As pessoas, no entanto, ainda contabilizavam os estragos. Eu me aproximei de um grupo e escutei os relatos: o susto durante a madrugada, a correria para ajudar os mais velhos, procurar lugar seguro, salvar alguma coisa, diminuir o prejuízo.

Notei um menino ao meu lado, me observando (a mim e a minha máquina fotográfica), e lembrei na hora do meu amigo. Aquele menino bem poderia ser ele, nos anos 60, vivendo o mesmo drama.

Eu dormira a noite inteira, tivera um belo início de manhã com minha companheira, e súbito aquilo tudo me pareceu estranho, isto é, chocante o contraste entre a minha vida e a daqueles modestos moradores.

Um deles olhou para a minha máquina fotográfica, achou que eu era um jornalista registrando a tragédia daquela noite e na certa não entendeu quando eu respondi:

– Não, não sou jornalista. Sou apenas um visitante, estou conhecendo a cidade.

Sim, eu era um turista que saíra do hotel para dar uma banda pelos arrabaldes de Dom Pedrito e conhecer melhor o universo rústico da Campanha. Me deparara com o rescaldo de uma enchente de rio, isto não estava nos planos – meu propósito era a pampa mítica que envolve Dom Pedrito –, mas não deixei de registrar o cenário. Confesso, no entanto, que me senti constrangido.

Arredores de Dom Pedrito, maio de 2017.


Nenhum comentário:

Postar um comentário