Dias desses postei aqui no blog uma crônica a
respeito de um amigo que me disse que as cheias de rio “roubaram” muitas horas
da sua infância. Ele morou na fazendola dos avós (entre os 8 e os 12 anos de
idade) e o rio mais próximo costumava encher e transbordar com as chuvas. Um
dia (quando tinha 9 anos) o rio invadiu o seu quarto (apenas um palmo de água)
e ele nunca mais esqueceu. Passou noites e noites acordado, pensando no rio que
podia subir novamente. E até hoje não esquece o episódio.
Pois lembrei dessa história e fiquei pensando que
eu também já me senti roubado. Mas não pela natureza implacável, com seus
excessos de água e a violência dos rios. Nem por algum ladrão que entrou na
minha casa. Não, um roubo devido a uma outra circunstância da vida. No caso, a
perda de alguma coisa muito própria, íntima, ao findar uma relação amorosa.
Sim, por um tempo, senti que tinha sido roubado por
aquela “ingrata”, da qual, um dia, me separei. Bobagem!, ela nunca fez isso.
Era e é uma mulher muito digna, honesta, no entanto, durante um tempo (curto
período de tempo, felizmente), senti isso... Roubado de alguma coisa lá do
fundo de mim, como a identidade e a potência de viver, vá entender! Exagero,
claro. A minha tendência ao drama. Um sentimento que me atordoou até que, da
noite para o dia, sumiu. Me acordei e era de novo dono da tal identidade perdida
assim como recuperara a antiga capacidade de viver.
Acordei e pronto: estava de posse do Velocino de
Ouro, aquela preciosidade mágica (capaz de curas milagrosas) que os Argonautas
(heróis da Antiga Grécia) foram buscar no Reino da Cólquida (nas margens
orientais do Mar Negro). Uma lenda que conheci no cinema, na infância, num
daqueles filmes históricos da década de 1960 que hoje sou incapaz de assistir, "Jasão e os Argonautas",
mas que fizeram a minha cabeça quando criança[1].
Cena do filme "Jasão e os Argonautas", na qual o herói enfrenta uma das provas para conquistar o Velocino de Ouro. |
Acordei, então, sentindo entre meus dedos o Velocino de Ouro, lembrando que nunca certa noite, num hotel em Istambul, olhei pela janela do bar e me extasiei com a vista do Estreito de Bósforo. “Foi por aqui que os Argonautas passaram”, eu lembrei na hora, sentindo uma felicidade enorme. Era como se os Argonautas estivessem ali, diante meus olhos, refazendo a sua mítica jornada em busca de uma preciosidade mágica...
Pois, quando senti ter recuperado o que achava ter
sido roubado de mim (que exagero, volto a repetir), foi como se tivesse
regressado da longa expedição dos Argonautas... Uma viagem que fiz sem sair de
casa, mas que me custou muito. Uma ginástica tremenda.
Vivi dentro de uma fantasmagoria por um curto
período de tempo e me recuperei, enfim, desses fantasmas.
– Voltei do Reino da Cólquida – digo para mim até
hoje, criando uma outra fantasia: a fantasia de que fui obrigado a cumprir uma
longa trajetória para recuperar o que perdi. Um exagero, claro, mas que vivi
intensamente.
Para alguns de nós, o mundo nunca é uma linha reta
unindo um ponto ao outro. Estes, os que vivem assim, são os felizes racionalistas.
Os outros, os dramáticos e fantasiosos, esses padecem, muitas vezes, de
sofrimentos desnecessários. Uma merda, uma grande merda, da qual alguns de nós
não escapam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário