sexta-feira, 17 de maio de 2024

A serventia da raiva (conto)

 

Raul e Inês foram casados dezoito anos, isto até o dia em que a mulher pegou a pasta do marido em cima do balcão da sala, a pasta não estava bem fechada e caiu um embrulho de presente. Inês pegou o pequeno volume, viu o selo da loja (de acessórios femininos), apalpou o pacote e pensou: “É uma echarpe. Raul comprou uma echarpe pra mim? Não pode.”

O casal andava distante um do outro e pouco falavam entre si. Quando Raul abria uma garrafa de vinho e pedia para ela vir beber com ele, ela torcia o nariz.

– Olha, esse é dos bons – ele insistia, com o nariz enfiado na taça, fazendo pose de entendido no assunto, o que estava longe de ser.

Inês perdia a paciência, explicava “pela milésima vez” que não gostava de álcool, vinha de família de alcoólatras, e ia para o quarto ver TV.

Mas com o pacote de presente nas mãos, Inês cravou os olhos no marido, quando viu ele chegando na sala. Estava interessadíssima em desvendar aquele mistério.

– O que é isso? – ela perguntou.

Raul empalideceu, ficou parado no meio da sala, enquanto Inês repetia a pergunta e acrescentava:

– Vamos logo.

Raul pediu que ela se sentasse no sofá e, mal ela se acomodou, lascou:

– Tenho outra. Aconteceu. Eu não aguentava mais.

A mulher ficou calada, depois se levantou, foi na direção do banheiro e, antes de entrar, perguntou:

– Tu vais embora hoje ou amanhã?

– Hoje mesmo – ele respondeu e foi na direção do quarto fazer as malas e depois no escritório, juntar o notebook e alguns livros.

Uma semana depois Inês continuava no quarto, chorando, e a irmã chegou dizendo que ela precisava reagir, pois os dois filhos adolescentes precisavam dela.

Inês mal tirou a cabeça das cobertas, olhou para a irmã e falou que preferia ficar na cama.

– Eu não tenho vontade de nada, só de chorar. Tô morrendo de raiva daquele filho da puta, mal caráter – ela disse.

A irmã não titubeou e afirmou:

– Então pega essa raiva, te levanta e usa esse ódio pra mandar a merda do filho da puta e tu retomares a tua vida. Ou vai deixar que ele te arruíne?

Inês levou ainda mais um dia para sair da cama, tomar banho, se ajeitar e começar a retomar a sua rotina, inclusive o trabalho que tinha deixado completamente, com apenas um e outro e-mail enviado para a chefe.

Os filhos, que estavam administrando a casa, fazendo almoço, colocando roupa na máquina, tratando com faxineira semanal, respiraram aliviados. O cotidiano iria se restabelecer. Mas se enganaram. A mãe se aprumou, voltou a trabalhar (gerenciava uma loja num shopping), mas nem sempre voltava para casa no final do dia.

Neste período, se enfiava dentro dos cinemas do shopping e assistia filmes sem muita atenção, a cabeça a mil. Também bebeu um pouco além da conta, mas não fez mais do que isso. Às vezes dava longas voltas cidade, descobriu o apartamento da amante do marido e passou a cruzar pela frente do prédio. Um dia, estacionou em frente ao quarto da “paraguaia” (no segundo andar), e jogou a garrafa de vinho que acabara de beber.

Um vizinho abriu a janela:

– O que é isso, tá louca? Quer que eu chame a polícia.

– Vai de foder – ela gritou. – O meu marido tá trepando com uma vadia atrás dessa janela e eu quero a cabeça dele.

O vizinho se calou, fechou a janela e ficou espiando-a por uma fresta.

– Aparece, Raul, filho da puta.

O marido apareceu na porta do prédio, de cara amarrada, procurando uma solução conciliadora:

– Te acalma, mulher. Tu tá bêbada? Nós podemos nos entender como pessoas civilizadas.

– Pessoas civilizadas, o cacete.

– Nosso casamento era um desastre. Qualquer um via, tu não percebeste?

– Que desastre o quê?! Nós éramos casados, porra! Tu devia ter me falado e não fazer essa merda que tu acabou fazendo.

Raul ergueu a mão, sentiu que iria esbofeteá-la e se conteve. Pensou novamente em algo conciliatório, mas conhecia Inês. “Nessas horas, ela é impossível”, pensou. Mesmo assim perguntou:

– O que é isso, Inês? Vamos com calma.

– É raiva, Raul, muito raiva – e avançou com a mão na cara de Raul, ele a segurou pelo pulso, ela revidou com a outra e o tapa jogou os seus óculos no chão.

Raul se abaixou, ficou aliviado por encontrar os óculos inteiros, lembrou que já levara um sopapo da mulher em outra ocasião (por muito menos que um caso de traição) e disse para si mesmo que “dessa vez, não”. Tomou dois passos para trás, protegendo-se, pensando o que fazer, enquanto a mulher fervia de ódio e falava sem parar. Raul sentiu algo vir do seu estômago, temeu que fosse vomitar e colocou a mão na boca. Estava enojado. O mundo era um nojo.

– Eu também tenho raiva, Inês, raiva pelo que vivemos nos últimos anos. – Mas não disse que sentia nojo também. Raiva e nojo. Nojo de uma mulher que se distanciara dele, de um casamento que esfriara, e dele mesmo, que se acomodara a tudo aquilo.

– Eu não vou deixar tu saíres lépido e faceiro da minha vida e vir foder com esta sirigaita. Não vou não – repetia a mulher, sem se dar conta da vizinhança nas janelas, assistindo ao espetáculo.

Raul também não percebia, apenas se sentia enojado e com medo de vomitar. A amante abriu a janela do quarto e gritou para que ele não desse conversa pra vagabunda.

– Ela quer barraco, Raul, só barraco.

– Não te mete, Denilse, por favor. Isso é conversa entre eu e ela.

– Me meto, sim. Tu está comigo ou não?

Raul começou a discutir com a amante, pedir novamente para ela deixar ele resolver os seus problemas sozinhos, e Inês achou graça. “Tô botando fogo na vida desses dois”, pensou.

Então virou as costas, foi na direção do seu carro e, antes entrar, gritou:

– Vão a merda. Os dois. Vocês se merecem.

Sentiu que era bom xingar, pôr a raiva para fora e lembrou da irmã. “A raiva tem serventia mesmo. É um instrumento poderoso”, concluiu.

“Vão se foder”, ela disse para si mesma, enquanto ligava o carro, repetindo várias vezes o xingamento. Depois riu porque se deu conta de era isso mesmo que eles estavam fazendo: fodendo. “Filhos da puta, filhos da puta, filhos da puta”, saiu murmurando. A raiva tomando conta de todos os poros do seu corpo e Inês começando a se sentir bem. Passou a vida sufocando a raiva, “um  sentimento tão feio”, mas agora via que era bom.

– Bem que a minha irmã tem razão. A raiva pode me ajudar.

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