domingo, 19 de maio de 2024

Mãos grossas (conto)

 

Duas mulheres estão em torno de uma mesa, numa confeitaria. Elas aparentam 50, 54 anos no máximo, mas já passaram dos 60. São mulheres cuidadosas com o corpo, muita academia, cremes, algumas intervenções estéticas e enganam bem. Uma delas fala sem parar, a outra apenas escuta e bebe chá.

– Eu deveria ter dito “sim”, quem sabe ter aceito a proposta do Daniel, mas optei pelo contrário e não me arrependo, sabe? Nós estávamos viajando pela Campanha numa espécie de reconciliação, sentindo se retornávamos ou não o nosso casamento, e paramos em Dom Pedrito para dormir. Um hotel muito bonito, uma espécie de hotel butique, sabe?, e tivemos um amanhecer com sexo bom, o Daniel com toda corda, como sempre, e eu ali, pagando pra ver. Tomamos um rico de um café e ele queria voltar pra cama, mas eu pensei, sei lá, senti, que com aquele céu azul o melhor era sair, dar uma volta. Então eu falei: “quero ver as terras que foram dos meus avós”. As terras que meu pai perdeu para o primo mais esperto da família, não sei como, uma perda que me incomoda até hoje. Dói, sabe?

A mulher morde um pedaço de quindim, mastiga apressadamente e volta ao assunto:

– O Daniel sempre foi assim: colocou o sexo em primeiro lugar, eu não. Acho que foi isso que me fez dizer “não”, naquela manhã. A velha história de sempre, e ele entendeu. Ele já ganhara o suficiente e eu estava assada. Ah, meu Deus, esse sempre foi um problema pra mim e não seria desse jeito que nos reconciliaríamos. Não, não mais. Então eu inventei a história das terras dos meus avós e ele topou. Veio o roteiro completo na cabeça e eu recordei aquela confusão toda de quando o pai ficou sem nada, a minha mãe furiosa com a incompetência dele. Eu disse “não” para o meu ex-marido e me senti trocando (a minha reconciliação, quero dizer) por esse passado que me atordoa. Acho que eu poderia ter vivido de outra maneira, muito melhor, se tivesse herdado alguma coisa. O Daniel sempre soube disso e falou a respeito enquanto nós enveredávamos por terras de chão batido. Ele não ficou contrariado, sabia que dessa toca não sai mais coelho, nosso casamento acabou, ficou essa amizade, sabe?, algum sexo ocasional, depende. Acho que nossa viagem era só para terminar a nossa vida em comum com uma chave de ouro, uma coisa assim. “Tá bom”, ele falou, lá pelas tantas, “tudo por esse passado que te atormenta, não é mesmo?” Eu não respondi e fui dizendo pra ele o caminho, fui lembrando de tudo na hora, dobra aqui, segue por ali, é logo adiante. Se eu tivesse dito “sim”, talvez teríamos mais uma tentativa de vida comum frustrada, não ia ser bom. Se tivesse dito “sim”, não teria conhecido o Alfredo... Os caminhos que a vida dá!

A outra mulher arregala os olhos, comenta que os acasos constroem a vida, ninguém nunca vai entender, mas a amiga não escuta e continua:

– Ah!, o Alfredo, talvez ele não entrasse na minha história se eu tivesse dito “sim”. Pois nós giramos e giramos, o Daniel e eu, e, quando bati o olho no casarão antigo, gritei como se fosse uma adolescente, tu acreditas? O Daniel dirigiu até a porteira, falou em abri-la para nós irmos até o casarão (completamente em ruínas, claro, abandonado) e eu não quis. Achei que era demais. Aquela era a casa que meus avós viveram, meu pai também se criou ali, e eu via que não era um casarão coisa nenhuma. Não tinha opulência e eu não quis chegar mais perto daquela casa que, na minha imaginação, fora semelhante àquelas de “E o vento levou”. Eu sempre me senti uma Scarlett O’Hara, o Daniel sabe disso. E então nós ficamos parados na porteira, olhando de longe, tirando fotos, e foi aí que apareceu o Alfredo. Surgiu nem sei de onde, parecia caído do céu, e perguntou se nós queríamos entrar, visitar a fazenda. “Sou o proprietário atual”, ele falou, “se vocês quiserem, não custa nada”. Custa tudo eu pensei, já naquela hora sentindo que aquele homem queria me comer. Ele gesticulava, as suas mãos apontavam o campo, a casa, faziam menção de abrir a porteira, e eu logo notei aquelas mãos grossas, de homem do campo. Ele, um sujeito sofisticado, via-se pelas roupas, os óculos, o relógio, mas com esse jeito de campeiro que conheço desde menina. Mãos de proprietário de terra, desses que colocam a mão na massa... Eu não sabia que gostava disso, mas gosto, ou melhor, estou gostando. Os homens que eu tive não eram assim. Ele passou a ser o dono das terras dos meus avós, tomou o lugar do meu tio... Como isso aconteceu?, pensei, mas logo esqueci.

A mulher interrompe para mais uma mordida no quindim e seus olhos se enchem de lágrimas. Ela pega um lenço, seca:

– Acho que foi ali que eu comecei a me sentir uma menina diante daquele homem, mas não tenho certeza. Acho que só intui que ele era uma ponte com aquele passado que eu perdi, perdi quando meu pai não soube manter a propriedade do campo, sei lá. Só percebi isso quando estava com ele na cama e as mãos dele passavam pelo meu corpo. Mãos rudes, ásperas, que não lembro de um dia ter conhecido desse jeito, na intimidade, acariciando minhas coxas, meus seios... Um tipo de mãos que eu não sabia... mas hoje eu sei, sempre me atraíram. Não sei explicar. Elas estavam na minha memória, em algum canto, e eu me tornei menina diante do Alfredo por causa daquelas mãos, tu acreditas? Me senti uma adolescente encantada. Tô apaixonada por ele. Mas naquela hora, na porteira da antiga casa dos meus avós, eu apenas conversei educadamente, agradeci a gentileza, disse para o Daniel que estava bom assim e voltamos. Regressamos para Santa Maria sem que eu conseguisse falar grande coisa. Daniel queria conversar, mas percebeu que tudo fora demais para mim e calou. Deve ter achado que fora a visita ao casarão e eu até achei, no princípio. Mas depois, olhando aqueles campos ao redor da estrada, a tarde caindo, o pampa maravilhoso na minha frente, eu me dei conta que estava fisgada. Como faria para encontrá-lo? Dois dias depois, qual não foi a minha surpresa, chega uma mensagem pelo Whats. Não sei como ele soube meu número. Um homem muito capaz, homem do campo, com alguma rudeza e também sofisticação. Tem curso superior, é super viajado, eu soube depois. Um sedutor. Mas Daniel não percebeu e até comentou: “como é que esse grosso pegou a terra dos teus parentes, hein? Deve ser esperto.” Espertíssimo, eu digo agora. Mas isso não me interessa. Com ele eu estou voltando ao campo, com ele eu estou enfeitiçada, mesmo que ele esteja longe do meu padrão e talvez a coisa não se mantenha. Ele é recém separado, a ex não sai de cima, ainda não acertaram a partilha dos bens, essa coisa toda, mas tá bom assim. Aconteceu e eu estou deixando rolar. Enquanto ele quiser, eu vou ficar com ele. É assim que estou me sentindo: uma mulher das antiga. Ele é quem manda e eu aceito.

Ela come o último pedaço de quindim, olhando o movimento do shopping, e percebe que o chá está gelado. Segura a xícara com as duas mãos:

– Gelou, viu? – ela diz para a amiga. – Não bebi na hora certa, deu nisso. Tem coisas que precisamos fazer na hora. Se eu tivesse dito “sim” para o Daniel e voltado para a cama com ele, não estaria aqui com essa história toda.

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