Trata-se de uma história que aconteceu em Pelotas, na
década de 1950. Quem me contou foi uma prima, Carmem Lúcia, que morreu dois
anos atrás. Carmem e eu reuníamos histórias e planejávamos escrever um livro. Mas
não escrevemos uma linha desse livro. Apenas conversamos a respeito. Sonhamos
juntos. E nos divertimos bastante. Tempos atrás fui visitar o seu túmulo e
lembrei dos nossos planos...
Uma das histórias que lembrei foi esta, acontecida com
uma empregada doméstica, que trabalhava num casarão da Rua Benjamin Constant,
perto do porto, em Pelotas. A mulher traia o noivo com um rapaz – um filho da patroa – e o
noivo descobriu. Um dia, o noivo pega a noiva pelos cabelos e dá uma baita duma
surra. A mulher passa três dias na cama e, quando volta a trabalhar, está
desfigurada.
Todo mundo sabia da traição, todos ficaram sabendo do
corretivo que o noivo dera e, a partir de então, a conversa girava em torno
disso: a violência que a empregada sofrera. O pessoal se dividia entre defender
e acusar o noivo. Carmem cresceu ouvindo essas conversas.
– O noivo tinha suas razões para bater, a maioria
falava. Alguns diziam que ele tinha o direito – a Carmem contava.
– E a mulher, o que fez? – eu perguntava.
– Ora, casou com o noivo e teve três filhos com ele. Era
gamada no cara – a Carmem explicava. – Naquele tempo não havia preocupação em
relação à violência contra mulher ou coisa parecida. Eu mesma vi os dois aos
beijos e abraços, reconciliados.
Escrever histórias como essa era o nosso desafio. Casos
como esse compunham a nossa matéria-prima, o substrato do imaginário que
pretendíamos desvendar. A partir dessas histórias, queríamos explicitar os costumes,
as crenças e os valores que nortearam nossas vidas. Não era pouca coisa.
Carmem vivenciou o episódio, eu apenas escutei a
respeito. Tinha catorze anos quando ouvi pela primeira vez. E o revivemos
outras tantas, ambos mais velhos, ao redor de um prato de siri, bebendo vinho
branco.
No cemitério, fiquei lembrando nossas conversas...
– E o rapaz que transava com a empregada, o que foi
feito dele? – pensei.
Não lembro o que Carmem contava do rapaz. Só sei que
ela tornava o episódio divertido e revelador do mundo em que crescêramos.
O noivo tinha suas razões para bater. Eu também tenho
meus motivos para não deixar esse episódio cair no esquecimento.
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