domingo, 16 de setembro de 2012


O noivo tinha suas razões

Trata-se de uma história que aconteceu em Pelotas, na década de 1950. Quem me contou foi uma prima, Carmem Lúcia, que morreu dois anos atrás. Carmem e eu reuníamos histórias e planejávamos escrever um livro. Mas não escrevemos uma linha desse livro. Apenas conversamos a respeito. Sonhamos juntos. E nos divertimos bastante. Tempos atrás fui visitar o seu túmulo e lembrei dos nossos planos...
Uma das histórias que lembrei foi esta, acontecida com uma empregada doméstica, que trabalhava num casarão da Rua Benjamin Constant, perto do porto. A mulher traia o noivo com um rapaz – um filho da patroa – e o noivo descobriu. Um dia, o noivo pega a noiva pelos cabelos e dá uma baita duma surra. A mulher passa três dias na cama e, quando volta a trabalhar, está desfigurada.
Todo mundo sabia da traição, todos ficaram sabendo do corretivo que o noivo dera e, a partir de então, a conversa girava em torno disso: a violência que a empregada sofrera. O pessoal se dividia entre defender e acusar o noivo. Carmem cresceu ouvindo essas conversas.
– O noivo tinha suas razões para bater, a maioria falava. Alguns diziam que ele tinha o direito – a Carmem contava.
– E a mulher, o que fez? – eu perguntava.
– Ora, casou com o noivo e teve três filhos com ele. Era gamada no cara – a Carmem explicava. – Naquele tempo não havia preocupação em relação à violência contra mulher ou coisa parecida. Eu mesma vi os dois aos beijos e abraços, reconciliados.
Escrever histórias como essa era o nosso desafio. Casos como esse compunham a nossa matéria-prima, o substrato do imaginário que pretendíamos desvendar. A partir dessas histórias, queríamos explicitar os costumes, as crenças e os valores que nortearam nossas vidas. Não era pouca coisa.
Carmem vivenciou o episódio, eu apenas escutei a respeito. Tinha catorze anos quando ouvi pela primeira vez. E o revivemos outras tantas, ambos mais velhos, ao redor de um prato de siri, bebendo vinho branco.
No cemitério, fiquei lembrando nossas conversas...
– E o rapaz que transava com a empregada, o que foi feito dele? – pensei.
Não lembro o que Carmem contava do rapaz. Só sei que ela tornava o episódio divertido e revelador do mundo em que crescêramos.
O noivo tinha suas razões para bater. Eu também tenho meus motivos para não deixar esse episódio cair no esquecimento.

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