terça-feira, 6 de março de 2012

Febre alta e calafrios

Meu avô paterno contraiu malária nas primeiras décadas do século XX. Teve febre alta, calafrios, e parece que pegou a doença mais de uma vez. Trabalhava numa empresa de navegação, subia o rio Tietê em direção ao Mato Grosso e foi nesse caminho que contraiu a doença. Um dia, quando estava na segunda ou terceira maleita – segundo a lenda familiar, o velho era duro de roer –, o médico recomendou que fosse para uma região onde não houvesse malária, pois, se reincidisse, não escaparia com vida.
Os patrões dele conheciam o pessoal da Companhia “Chemins de Fer”, que administrava as estradas de ferro no Rio Grande do Sul (eram ambas as empresas de capital belga, que operavam em parceira), e acertaram uma transferência para ele. O ano era 1920 e lá veio o vô Vittorio trabalhar na “Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer”, como engenheiro prático. No final do ano a empresa foi encampada pelo governo de Borges de Medeiros, virou Viação Férrea, e o avô continuou no posto. Morou nas cidades de Rio Grande, Santa Maria (na Vila Belga) e terminou a vida em Pelotas, no final da década de 50, numa casa de porta e janela que existe até hoje.
Não conheci o velho. Quando ele morreu, eu dava meus primeiros passos e soube essa história completa quando eu tinha uns 37 anos, num almoço com a tia Landa (Iolanda). A tia morava na casa onde o avô morrera e cozinhava um arroz com galinha, trepada num banquinho (ela era anãzinha) para poder alcançar a panela, colocar os condimentos e mexer tudo com a colher de pau. E eu ali, ao lado dela, com o copo de cerveja na mão, nós dois bebendo cerveja, e a conversa rolando: o avô, as viagens no Tietê, o impaludismo e as noites de delírio...
– E mamãe correndo pela casa, alucinada, pois o papai podia morrer. Foi depois disso que descemos para o Sul e papai nunca mais saiu daqui.
A tia e eu ficamos nessa conversa até metade da tarde e quase perdi um velório, motivo da minha viagem a Pelotas naquele dia. Saí correndo em direção a um ponto de táxi, peguei um carro, fui para o cemitério e felizmente cheguei antes de encomendarem o corpo. Foi a última vez que conversei com a tia. Recordo seguido a maleita do avô – motivo de sua vinda para o Sul – e mais ainda numa madrugada dessas, quando uma febre de 39 graus me levou a delirar.
Então sentei na cama e pensei: estou delirando como meu avô? Nada disso. Horas depois eu estava diagnosticado, medicado, e a febre baixava. Mas fiquei pensando como ele agüentou... Como homens e mulheres suportavam as febres e calafrios, naquele tempo?
– Rezando e esperando – um dia comentou minha mãe, quando comentávamos o mesmo assunto: a febre do avô Vittorio.

2 comentários:

  1. acho que aguentavam com fé mesmo. só podia ser.

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  2. Malária, navegação, belgas... Isso parece o "Coração das Trevas". Gostei muito do texto. Impressionante como descreves bem esses momentos de tranquilidade e fugaz plenitude como esse da conversa com a tua tia.

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