quinta-feira, 3 de julho de 2025

Galeria dos Lanceiros

 

Quem foi a Florença certamente andou pela Piazza della Signoria, bateu os olhos nas esculturas da Loggia dei Lanzi (Galeria dos Lanceiros) e talvez tenha se espantado com a violência das esculturas. São impactantes, belas e inesquecíveis.

Galeria dos Lanceiros. Ao fundo, "Perseu", de Cellini.

Perseu com a cabeça decapitada da Medusa, Hércules sentando o porrete no centauro Nessus (que antes tentara seduzir a sua esposa Dejanira), Pirro sequestrando Polixena, com o irmão dela morto aos seus pés, enquanto Hécuba (a mãe da jovem) se arrasta agarrada às pernas do guerreiro aqueu, mais o fabuloso conjunto escultórico do rapto de uma sabina. Um romano agarra e ergue no ar uma jovem sabina (para depois levá-la para sua cama, na sua humilde choupana, como eram as habitações dos primitivos habitantes de Roma), enquanto um musculoso sabino se prosta, vencido, aos seus pés.

"Rapto da Sabina", de Giombologna. 

Violência pra mais de metro, se poderia dizer. Heróis da mitologia greco-romano se movimentando sem freios e cumprindo trajetórias de crueldade, representados por brilhantes artistas: Benvenuto Cellini, em “Perseu” (1554), Pio Fedi, em “Rapto de Polixena” (1865), Giambologna, em “Hércules em luta com o centauro Nessus” (1599) e “Rapto da Sabina” (1583).

"Hércules em luta com o centauro Nessus", de Giombologna
e Pietro Francavilla.

Em “Hércules em luta com o centauro”, Giambologna teve a colaboração de Pietro Francavilla, uma informação geralmente esquecida nos livros de história da arte, mas não no quadro/legenda da galeria, indicando títulos, datas e autorias das esculturas.

Pois eu visitei Florença num dia frio e ensolarado de fevereiro de 2017, entrei nessa galeria, ergui os olhos justo para o “Rapto da sabina” e levei um susto. A beleza da escultura (os corpos nus em movimento, em luta, em completa tensão) me fisgou e demorei a entender o que estava vendo. Várias lembranças, como um thriller de filme, passaram pela minha cabeça. Muito além de apreciar uma obra-prima da arte ocidental eu estava contemplando a representação de uma lenda da fundação da Roma antiga... dessas que os guris da minha geração, criados na sala escura dos cinemas, tomaram conhecimento na infância.

“Rapto das sabinas” (1961) foi um desses filmes do cinema italiano (pródigo, naquela época, em enfocar temas do Mundo Antigo) que passava nas matinês do Cine Guarany, em Pelotas, e que eu assistia com a maior seriedade. Eu ia a essas sessões de cinema com meu pai e o cravava de perguntas na saída. Queria saber detalhes da trama, dos personagens, do registro histórico, e o pai se esmerava em responder. Quando chegávamos em casa, ele ia na estante consultar alguma enciclopédia, abria o volume na minha frente, lia trechos, me mostrava gravuras e minha imaginação alucinava. Um mundo inteiro se desenhava aos meus olhos, indicando o início de uma viagem que venho realizando até hoje.

No caso do rapto das sabinas, o impacto foi tremendo. Um episódio brutal, dado como verdadeiro pelo historiador Tito Lívio (e assim entendido pelo menino que eu era), mas inegavelmente uma lenda. Roma vivia os seus primórdios, era governada por Rômulo, o primeiro dos seus reis, e faltavam mulheres para aquele bando de homens selvagens que queriam formar um reino. Precisavam de mulheres que servissem de esposas, mães, e que garantissem a consolidação e crescimento do povoado. A solução foi realizar uma festa, convidar as famílias das aldeias próximas (habitadas pelos Sabinos) e, a um sinal determinado de Rômulo, capturar as mulheres e expulsar os seus pais, maridos e irmãos. Um rapto, uma violência. A formação de uma grande cidade (de um dos esteios da nossa civilização) a partir do aprisionamento de várias mulheres que, ao final (ao menos na lenda, na conversa de Tito Lívio) aceitaram a sua nova condição e passaram a conviver pacificamente com os novos maridos.

Na Galeria dos Lanceiros, em Florença, esse filme me passou pela cabeça. Me tocou o conjunto das violências representadas – cabeças decepadas, centauros massacrados, mulheres raptadas, violentadas – e fiquei fascinado. Embasbacado com o modo maravilhoso, artístico, como todo esse universo de fúrias & paixões ganhou vida naquele espaço. Por séculos e séculos, gerações de homens e mulheres se escandalizaram e se deliciaram com aquelas representações e eu era mais um nessa multidão, vivendo o espetáculo dos horrores dos primórdios da nossa civilização...

"Rapto de Polixena", de Pio Fedi.

Afinal, monstros precisaram ser vencidos, sacrifícios tiveram de ser realizados (Prolixena foi morta para que os navios aqueus tivessem bons ventos no regresso à Grécia) e mulheres sabinas urgiam ser raptadas de seus pais ou maridos para que Roma se erguesse. Ou, pelo menos, assim foi escrita e desenhada a História no nosso imaginário.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Malinowski na Avenida Osvaldo Aranha

 

Os trobriandeses, habitantes do arquipélago das Trobriand (no Oceano Pacífico, próximo à Nova Guiné), não estabeleciam nenhuma relação entre o esperma e a concepção dos bebês. Eles acreditavam que as crianças nasciam de um processo que hoje chamamos de partenogênese, isto é, sem que o óvulo feminino fosse fecundado. Segundo suas crenças, os filhos entravam pela cabeça das mulheres, encarnados num espírito chamado Waiwaia, desciam até o ventre e, a partir daí, iniciavam a gestação. Os homens eram dispensáveis nesse processo.

Isso é o que relata Bronislaw Malinowski, que estudou esse povo na década de 1910 (durante a Primeira Guerra Mundial), e que tomei conhecimento nas aulas de Antropologia, quando era estudante de História. Malinowski se propôs a entender o ponto de vista dos nativos, procurou reproduzir o seu entendimento do mundo e a professora dava aulas apaixonadas a respeito do método criado por ele: a etnografia. Um método que pretendia um mergulho no universo cultural dos povos analisados. Ou, ao menos, uma tentativa de aproximação e envolvimento com as culturas encontradas fora do eixo da Civilização Ocidental.

Malinowisk com os nativos de Tronbriand.
Fonte: Wikipédia. 

Encerrada as aulas, eu saia com um colega (Aléxis Borloz) a caminhar pela Avenida Osvaldo Aranha (o curso funcionava no Parque da Redenção, só se transferiu para o Campus de Viamão em 1977) e divagávamos a respeito do assunto. Os povos primitivos (“selvagens”, como muitas vezes se falava) nos encantavam. Nós nos sentíamos atraídos por tudo que se distanciasse da nossa civilização de matriz europeia, visto por nós como “decadente”. Além do mais, esses povos primitivos encontrados pelos europeus ao longo dos séculos XIX e XX (como os trobriandeses) se tornaram referência para conhecer os grupos caçadores-coletores do Paleolítico. Funcionavam como uma espécie de guia para outras formas de organização sociopolítica, anteriores à Grécia e Roma. Indicavam, por exemplo, sistemas matriarcais, modelos de organização de poder nos quais as mulheres não estavam excluídas. E crenças como essas, que omitiam a participação dos homens na gestação dos bebês, colaboravam para estabelecer a centralidade das mulheres na organização familiar e política.

Conversas empolgantes, ao longo da Avenida Osvaldo Aranha, na saída das aulas. Verdadeiras discussões a respeito das quais mais recordo o entusiasmo do que qualquer outra coisa. Eu andava a ler “O segundo sexo”,  de Simone de Beauvoir (sem concluir o último volume), folheava “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de Engels, e, de forma mais sistemática, estudava as abordagens de Gordon Childe (autor obrigatório nas disciplinas de Pré-história e Antiguidade) a respeito das revoluções Neolítica, Urbana e o surgimento das Civilizações. Misturava isso com Malinoswski (sem ler “Os Argonautas do Pacífico” do início ao fim) e falava, discutia, polemizava com meu amigo.

Os homens demoraram a compreender que o sêmen que eles ejaculavam durante a relação sexual tinha papel na gestação e isso teve consequência na organização social. Eles só descobriram a sua função quando passaram a domesticar os animais (durante a Revolução Neolítica), observá-los em cativeiro e se dar conta de que, se não acontecesse o acasalamento, nada de surgir novas ovelhas, novos cabritos e bezerros. Uma observação que contribuiu para reorganizar a estrutura de poder nas sociedades de agricultores que então construíam aldeias, cidades, estabeleciam distinções sociais e desigualdades. Um processo muito complexo no qual os homens se impuseram perante as mulheres, subordinando-as, tornando-as inferiores a eles, e “se achando”. Aos poucos, substituindo o matriarcado pelo patriarcalismo...

Conversa que não tinha fim entre os jovens estudantes que éramos. Até Érico Veríssimo entrava em pauta, por meio da crítica de Floriano Cambará, personagem de “O tempo e o vento”, a respeito da sociedade machista do Rio Grande do Sul. Uma paixão que compartilhávamos, isto é, o gosto pela obra de Veríssimo.

No início dos anos 80, o meu amigo defendeu dissertação no Mestrado de Antropologia, na UFRGS, sobre a Contracultura em Porto Alegre e o surgimento dos "malucos", jovens de comportamentos desviantes (como ele procurara ser). Eu tentei ingresso no mesmo curso, não fui classificado e encarei o Mestrado em Letras, na PUC, defendendo dissertação sobre o Grupo Quixote, um grupo literário porto-alegrense. Caminhos diferentes, mas que, de alguma maneira, tiveram origem nas observações de Malinowski a respeito dos trobriandeses, nas suas crenças sobre a gestação de bebês e as diferentes formas de se inventar a vida. Caminhos que fomos criando, enquanto batíamos pernas e conversávamos pela Avenida Osvaldo Aranha.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Sonhar com Paris

 

João Alberto completou 70 anos e pertence a uma geração que estudou francês no Ginásio e no Curso Clássico. Cedo ganhou familiaridade com o imaginário francês e passou a admirar seus artistas. Leu Baudelaire, Flaubert e Maupassant (em tradução), assistiu aos filmes de Godard e Truffaut, e sonhou em ser poeta. Até fez alguns poemas e ganhou concurso literário quando estudante. Mas um primo escritor lhe avisou que a coisa não era fácil e ele guardou a literatura para os finais de semana e, por fim, a esqueceu.

Dedicou-se a advocacia, abriu escritório e ganhou dinheiro, o suficiente para possuir um apartamento na cidade, uma casa na praia, trocar de carro regularmente e até financiar o da esposa. Deu vida boa para os três filhos e eles puderam cursar a universidade sem trabalhar e só sair de casa só quando tiveram renda para bancar a própria sobrevivência. Com o seu talento para as letras jamais conseguiria coisa igual.

Mas aos 70 anos se deu conta que um velho sonho não desaparecera: conhecer Paris. Navegar pelo Sena como os personagens de Maupassant, cruzar na rua por mulheres fascinantes como nos poemas de Baudelaire, amar num quartinho minúsculo como num filme de Godard. Viajara pouco, sendo Buenos Aires e Cancún os seus únicos destinos no exterior, esse último devido à insistência da esposa, que dissera que “todo mundo conhece, é maravilhoso”.

Naquela viagem a Cancún, aos 60 anos, se deu conta que perdera a paixão pela vida e entrara em outra etapa da existência. Gostava de trabalhar, isso sim, e eventualmente lia algum romance. Naquela temporada mexicana, fizera um sexo protocolar com a esposa e depois a assistira caminhar pelo quarto, abrir as cortinas para o mar do Caribe e a ouvir falar de outras viagens que precisavam realizar.

– A Europa, João Alberto, aquele tour que sonhamos tantas vezes: Lisboa, Madri, Paris.

– Não, eu não sirvo para isso – ele disse, sentando-se na cama, servindo-se de uma garrafa de vinho branco mergulhada num balde de gelo. – Vai com as amigas, tu vais te divertir mais. Eu virei um chato.

– Um acomodado, isso sim. Um velho, muito antes da hora. Tu podias reagir.

Ele riu e não falaram mais no assunto. Ela viajou para a França, Itália e Egito, sempre com as amigas, enviando cartões postais no princípio (como ele pedira) e depois apenas fotos pelo WhatsApp.

Agora, com 70 anos nas costas, João Alberto retoma um velho sonho de estudante, mas não quer a companhia da esposa. “Uma viagem romântica”, ele imagina, com uma companhia que lhe acenda antigos ardores. Pensou encontrar isso em Rosângela, uma cliente de 47 anos, que ele atendeu num caso de separação litigiosa, e tem conversado com ela a respeito. Uma noite eles beberam espumante no apartamento dela, fizeram amor e ele recitou Baudelaire. O francês saiu estropiado, mas lembrou-se da tradução e ela o abraçou com um carinho inédito para ele.

“Minha doce irmã, / Pensa na manhã / Em que iremos, numa viagem / Amar a valer, / Amar e morrer. / No país que é a tua imagem! / (...) / Lá, tudo é paz e rigor, / Luxo, beleza e langor.”[1]

Assistindo a um filme na Netflix descobriu que há congressos acadêmicos na área do Direito, na Universidade de Sorbonne, e inventou que é este o seu próximo passo: a inscrição num evento universitário, o pretexto para a almejada viagem. Falou com um dos sócios do escritório e ele, que é professor universitário, ficou de lhe acertar os detalhes.

– Claro que não iremos juntos – ele avisou Rosangela. – Eu irei primeiro e te esperarei no Charles De Gaulle. Reservarei um quarto num hotel de Montemartre, um passeio no Bateaux Mouches, um jantar na Torre Eiffel e as obrigatórias visitas ao Louvre e ao D’Orsay.

Rosangela riu e não soube se devia acreditar ou não. “É um farsante tirando onda comigo”, ela pensou, “mas vou embarcar na fantasia. Por que não?” Sentiu que aqueles planos o entusiasmavam, o tornavam mais ardente na cama e era disso que precisava. Rosangela explicou que não estudara francês na escola – “Uma disciplina que a reforma educacional suprimiu” –, que sempre preferiu o universo da língua inglesa, conheceu Nova Iorque, Miami, mas apreciava a cultura europeia.

– Tudo que tu falas é novidade para mim. Estou aprendendo contigo.

João Alfredo se alvoroçava se imaginando em Paris e lembrava o adolescente que fora frequentando a biblioteca da escola para ler a respeito da cultura francesa. Sentia voltar a antiga admiração pelos assuntos tradicionais do universo francês – o escândalo provocado por “Flores do Mal”, o processo judicial causado por “Madame Bovary”, a revolução desencadeada pelos impressionistas – e achava graça que isso ainda fazia sentido para ele... Sentia também a força do sexo lhe vir renovada (turbinada, é claro, por um comprimido azul) e racionalmente decidiu manter a fantasia da viagem até quando pudesse suportar. Talvez fosse o último delírio da sua vida e não se impediria de sonhar. Cultivaria com zelo e carinho esse projeto de viagem com a amante, cuidando para não abalar seu casamento, a vida que construíra com empenho e sacrifício. Nem a esposa gostaria disso e lhe agradeceria muito se a mantivesse ignorante em relação ao assunto.



[1] “O convite à viagem”, tradução de Ivan Junqueira.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

A criança da casa

 

Tornei-me um usuário de aplicativos de transporte e às vezes converso com os motoristas. Nem sempre. Não tenho um padrão para isso. Mas gosto quando acontece uma conversa e pintam boas histórias.

Semana atrás foram os córregos que existiam em Porto Alegre e, hoje, estão canalizados. No bairro Boa Vista, por exemplo (onde moro atualmente), até o início dos anos 1980 havia um pequeno arroio com peixes e a gurizada usava para tomar banho, me garantiu um motorista. Ele era um desses garotos. Depois veio o Shopping Iguatemi, a abertura da Avenida Nilo Peçanha, o fim dos chalezinhos de madeira, a construção de edifícios bacanas, a canalização do arroio e tudo mudou. Difícil rastrear por onde passava esse “veio de água” a que o motorista se referiu.

Outro dia foram as novas relações que se estabeleceram entre os humanos e os animais domésticos. “Hoje é o gato que manda lá em casa”, afirmou o motorista. “Ninguém doma um bicho desses, é diferente dos cachorros”, ele adiantou, dizendo que tem três cães, um gato, e sabe bem o que é isso. “Os cachorros são mais obedientes”, garantiu.

Eu perguntei se ele era casado, se morava em casa e tinha filhos e ele respondeu item por item. Era casado, morava numa casa com pátio e não tinha filho. “Eu sou a criança da casa”, ele disse, “não tenho jeito pra cuidar um pentelho e a mulher entende isso”, arrematou.

A criança da casa... Puxa vida. Um homem que aparenta 40 anos e, ao que tudo indica, se nega a crescer. Eu não soube mais o que falar e ele continuou conversando. Perguntou se podia parar numa casa veterinária (precisava pegar um remédio para o cachorro salsichinha, que estava com dor na coluna) e eu disse que não tinha problema. “Não tenho pressa”, garanti. Ele estacionou, levou dois minutos para descer e trazer o medicamento, e depois continuou falando dos animais domésticos da sua casa. Adorava a bicharada.

“Com eles eu não me incomodo de dar toda a atenção do mundo. Mas com um filho eu não teria paciência. Criança é muito exigente. Já basta eu”, concluiu. E eu não prestei mais atenção no que ele falava. Fiquei imaginando qual seria a conversa da mulher. Que mulher aguenta um cara desses?, me perguntei. Deve ser outra apaixonada por cães e gatos, imaginei, senão não ia dar liga. Iam viver brigando.

Mas lembrei de uma tese de doutorado a respeito do comportamento feminino (de mulheres paulistanas de classe média) que apresenta uma série de casos de mulheres que nem perguntaram aos maridões se eles queriam ou não ter filhos. Engravidaram e pronto, os homens que assumissem os rebentos e aí que se tornassem pais ausentes, os desnaturados. Talvez a mulher do motorista, um dia, siga esse roteiro e, numa tacada, o destrone da sua condição de criança da casa. O homem vai enlouquecer.

domingo, 4 de maio de 2025

Sala de espera de exames médicos

 

Estou na sala de espera do setor de medicina nuclear do Hospital Moinhos de Vento para exames de cintilografia. Exames que investigam o funcionamento do coração, pulmão, rins, tireoide e outros órgãos. Somos quatro homens idosos na sala de espera e não conversamos a respeito de nossos problemas de saúde. Falamos de política. Melhor dizendo, um de nós fala, os outros escutam. Ele comenta a política do tarifaço que o presidente Trump realiza para intimidar diversos países do mundo.   

– Não há racionalidade alguma – ele afirma. Fala de um parente que mora numa pequena cidade dos Estados Unidos e da corrida da população para comprar smartfones e eletrodomésticos. – Esses produtos irão escassear nas prateleiras, ficar muito mais caros e o pessoal está enlouquecido, comprando. Um tiro no pé essas medidas malucas que o presidente vem implementando.

Diz que o seu parente era um admirador da sociedade americana e tudo fez para morar lá. Vendeu o que tinha, apartamento e carro, e foi com a mulher. Agora tem um filho e uma pequena empresa prestadora de serviços (manutenção de aparelhos de ar-condicionado) que se utiliza de mão-de-obra imigrante. Acha que sua situação é estável, mas não tem certeza.

– Agora não sabe em que pé as coisas vão ficar – ele comenta. – Incerteza total em relação à economia, isto é, ao abastecimento de produtos industriais, a maioria produzida no exterior, e quanto ao mercado de trabalho movido com mão-de-obra imigrante.

Estou num espaço da classe média alta porto-alegrense, uma camada social que tem a economia e a sociedade norte-americana como referenciais positivos, e penso que agora já é possível criticar os Estados Unidos. Algo inimaginável há pouco tempo. Um ano atrás, alguém sairia em defesa dos States, na hora. Não admitira falarem mal do “paraíso”. Agora não.

Lembro de um parente que morava em Miami e vivia trombeteando que “aqui as coisas funcionam”, “é um país decente, com regras”. Uma chatice a sua conversa. Nós mantivemos contato via Messenger por um tempo e eu pedi para ele largar de mão de me enviar vídeos para convencer a respeito das maravilhas do capitalismo estadunidense em contraponto ao caos brasileiro (agravado pelos governos petistas, segundo ele). “Tu não vais me convencer”, eu escrevi, “não me manda mais esses vídeos de propaganda direitista, alguns deles de muito baixo nível, quando não fake news descaradas”. Expliquei que estávamos campos político distintos, mas que éramos primos e seria legal não perdermos o contato”. Insisti, mas não deu certo. Ele só queria fazer conversa política e eu larguei de mão.

Depois ele adoeceu e veio se tratar no Brasil. A medicina de lá na certa não funciona tão bem quanto a economia e a sociedade, sei lá. As regras do atendimento médico não foram favoráveis a ele e isso que ele garantia que ganhava a uma boa grana. “Um dinheiro que não levantaria no Brasil com esses políticos corruptos que tem por aí.” Enchia o saco esse meu primo. Uma hora dessas preciso procurar esse primo.

Tenho vontade de contar essa história ao meu colega de exame de cintilografia, mas me calo. Só escuto. Qual o órgão interno que ele irá avaliar: coração, pulmão ou tireoide? Nós dois temos obstruções de coronárias ou hipertiroidismo? O que o futuro nos aguarda? Conseguiremos administrar nossas respectivas doenças? Não sei, não falamos disso. Ele fala do Trump e eu concordo: é um político da pior espécie. Um bravateiro arrogante que declarou que os dirigentes do mundo inteiro virão “lamber o meu traseiro” (sim, o chefe da Casa Branca usou essa expressão) para negociar o valor de tarifas comerciais, mas não é isso que vem ocorrendo. O líder da segunda potência mundial, Xi-Jinping, nem se coçou para conversar com o topetudo de Washington.

E, na sala de espera de um hospital frequentado pela classe média tão admiradora dos States, ninguém defende o seu atual mandatário. Um sinal dos novos tempos: já dá pra falar mal dos Estados Unidos. Não é mais o país onde tudo funciona, regido por uma lógica invejável. A extrema direita brasileira parece que está estupefata com o seu grande líder no Norte.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Aprendendo com a deusa Ísis

 

Em maio de 2023, estive no sítio arqueológico de Dion, na Grécia, localizado ao sopé do Monte Olímpico, a montanha que servia de moradia aos deuses gregos, Zeus e sua turma. Só existem ruínas, nenhuma parede de templo religioso erguida e haja imaginação histórica para reconstruir o que deveria ser o local. Parei no local onde se encontrava o Templo de Zeus e foi um cartaz com desenhos e legendas que me deu alguma ideia do que poderia ser o lugar: a monumentalidade do prédio, o local de sacrifício de animais e as cerimônias de adoração. E confesso que fiquei um tanto decepcionado. Difícil entender a Grécia Antiga.

Felizmente a visita foi completada pela ida ao museu do sítio arqueológico e as peças ali encontradas – as esculturas e os ornamentos escultóricos dos templos – funcionaram como um bálsamo, isto é, possibilitaram um contato mais efetivo com essa antiga civilização. Não encontrei nenhuma escultura de Zeus que me encantasse (talvez exista, não sei – é tanta coisa que não dá para prestar atenção a tudo) e fui fisgado pelo material a respeito do Templo de Ísis. A representação grega da deusa egípcia que se encontrava na fachada do prédio (foto abaixo), mais uma escultura da deusa do amor, Afrodite Hipolimpídia, mandada instalar ao redor do prédio religioso, na mesma época da sua construção (século II a.C.).

Admirei as esculturas e lembrei os estudos de Plutarco, complicadíssimos, a respeito da deusa, seus ensinamentos religiosos, mais as reflexões filosóficas do autor a respeito dos Mistérios de Ísis (as voltas que os iniciados deveriam dar para conhecer as verdades dadas a conhecer pela divindade).

Não, eu nunca compreendi a complexidade da religiosidade do Mundo Antigo. Meu conhecimento se limitou às generalidades e, mais do que tudo, fiquei restrito ao encantamento com a deusa. Visitei o seu famoso Templo de Philae, no Egito, e foi emocionante. Passei a mão nas pedras que tanto peregrinos tocaram e pronto. Resumindo, não passei de um estudante de primeiras letras a respeito dessa crença que se expandiu do Egito para o mundo greco-romano. Mas um estudante que, ao final, aprendeu o seu lugar.

No Museu Arqueológico de Dion, senti o silêncio austero da deusa e me dei conta do meu lugar no mundo, isto é, o meu tamanho e limitação. Uma lição de humildade que à princípio vivenciei com tristeza e só hoje consigo dizer que não era para tanto. Afinal reconhecer a nossa condição humana, finita e limitada, não é uma aprendizagem banal. É um exercício de sabedoria também. Talvez um dos mais importante para um bem viver.


Observação: Plutarco foi um historiador grego que viveu entre 46 e 120 d.C. Seu tratado sobre Ísis e Osíris é uma das principais fonte de informação a respeito da deusa. E os ritos iniciáticos que aborda (os Mistérios de Ísis) é uma criação grega feita quando o culto a essa divindade egípcia se difundiu pelo mundo mediterrâneo a partir do século IV a.C. Haja engenho e arte para decifrar as maravilhas dessa deusa.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Adolescência

 

Assisti a minissérie “Adolescência” e fiquei impressionado com o personagem principal: o menino de 13 anos de idade que esfaqueia a coleguinha de escola. A princípio entendi que o motivo do assassinato era o fato de a menina ter esnobado e humilhado o rapazinho de cabeça quente, mas logo descobri que o buraco era mais embaixo. O crime não decorreu apenas da fúria do gurizinho rejeitado, mas foi alimentada por uma subcultura extremamente machista e antifeminista de ampla circulação nas redes sociais. Uma subcultura que, mais do que a família e a escola, é o que faz a cabeça de muitos adolescentes contemporaneamente. A minissérie é ambientada no Reino Unido, mas tudo indica que pode ser ampliada para o mundo ocidental em geral (o mundo formatado pelo universo da Internet).

Eu não fazia ideia da abrangência desses “discursos de ódio” em relação às mulheres divulgado por influencers do tipo de Andrew Tate, citado na minissérie e que eu nem sabia da existência. Sou um velho de 69 anos sem muito treino nas redes sociais. Utilizo o Facebook, me atrapalho com o Instagram e não participo de fóruns de debates on-line ou coisas do gênero (apesar de manter um blog de crônicas).

Dessa maneira, como sujeito despreparado no universo alucinante da Internet, foi fundamental para eu entender a minissérie a cena apresentada no segundo episódio, no qual o policial que investiga o crime recebe uma verdadeira aula do seu filho a respeito do que rola no Instagram e faz a cabeça da meninada da escola. Isto é, o filho do policial (que estuda na mesma escola do menino assassino) explica ao pai o que é a cultura machista e antifeminista que circula fora do radar dos pais e professores. Apresenta (didaticamente) o caldo cultural que serve para o menino e seus amigos articularem as suas dificuldades de identidade e comportamento sexuais. A gurizada acredita numa bizarra crença na qual as mulheres só se interessam por 20% dos homens, deixando os outros 80% chupando o dedo, e reage violentamente em relação a isso. Uns rapazes que sentem a sua masculinidade colocada à prova e entendem que precisam enfrentar essas mulheres que os desprezam, puni-las inclusive. Mostrar valentia. Usar armas para assustar. Faca, como a que é utilizada pelo assassino, que, segundo relato do amigo que empresta a arma, seria utilizado para ameaçar e não para matar.

Cena de "Adolescência": o inspetor policial recebendo uma aula do seu filho
a respeito do que rola nas redes sociais.

Mundo cão. Os rapazes em formação, preocupados com a sua macheza (“Sou atraente ou não para as mulheres?”), alimentados pela tal teoria dos 80/20, se sentem acuados e metem os pés pelas mãos. É o que acontece com o gurizinho de 13 anos. Seu sentimento de desvalia diante da menina que o faz de “corinho” (na linguagem dos anos 60 e 70; bullying na expressão atual) se articula com a cultura machista e antifeminista e dá no que dá: uma reação violenta que resulta em assassinato. O antifeminismo legitima a raiva que ele sente e o guri nem percebe que se torna um criminoso. Só cai a ficha após meses de cadeia e a proximidade do julgamento. Demora para o menino se perceber um assassino.

Penso que nenhum espectador sai o mesmo depois de assistir à minissérie. A emancipação feminina abalou as estruturas da sociedade tradicional, está reorganizando os papéis de gênero, mas muitos de nós não imaginavam que tantos homens fossem reagir a isso de modo tão violento. É esse caldo cultural (a revolução feminista, seus desdobramentos) que abala o personagem central da minissérie, um frágil e furioso adolescente acossado pelas transformações comportamentais. Fúria e fragilidade que encontra nos “discursos de ódio” um modo de se expressar. (O terceiro episódio, o da sessão do jovem assassino com a psicóloga, evidencia a fúria do frágil adolescente. Sua pergunta final, se ela gosta ou não dele, escancara a sua carência. Uma verdadeira cena de horror psicológico.)

A minissérie só não precisava pegar tão pesado com os pais, como ocorre no último episódio. Os velhos não merecem mais essa lambada. Já nos sentimos responsáveis demais pelas angústias e descaminhos da juventude.