segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Uma preta que gostava de livros: Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus era negra e catadora de papéis nas ruas de São Paulo. Morava na favela de Canindé, gostava de ler e escrever. Um dia, um vizinho bateu na porta do seu barraco para perguntar onde encontrava “folhas de batatas” e quis saber também o que ela tanto escrevia. “Um diário”, ela respondeu. “Nunca vi uma preta gostar tanto de livro como você”, ele comentou.

Esse episódio, Carolina registrou no seu diário, no dia 23 de julho de 1955. Tinha 41 anos e três filhos de pais diferentes. Nesse dia, Carolina escreveu: “Todos têm um ideal. O meu é gostar de ler.” Além de ler, ela escrevia compulsivamente e teve a sorte de encontrar um jornalista que preparou os seus originais e publicou-os em livro – Quarto de despejo: diário de uma favelada –, em 1960.
Uma mulher admirável. Amargurada pela sua condição de excluída a um quarto de despejo (a favela de Canindé) da rica capital paulista, Carolina escrevia para xingar. Xingamentos que se escutam até hoje. Os seus registros da luta cotidiana pela sobrevivência e da presença constante da fome – inclusive da cor da fome: amarelo – são impressionantes: “Resolvi tomar uma média e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves tudo amarelo, depois que comi tudo normalizou-se aos meus olhos”.
Na década de 1950, a indústria brasileira se expandia, a migração campo-cidade se acentuava e as grandes capitais inchavam. O desenvolvimento urbano, no entanto – como é de praxe na história brasileira –, não atendia as necessidades básicas de grande parte da população e as favelas eram um fenômeno que escancarava a lógica excludente do crescimento econômico. Comentando esse período da sociedade brasileira, o historiador norte-americano John Chasteen cita o caso da favelada Carolina de Jesus: “ela acalentava mais sonhos que a maioria”. Tinha completado o segundo ano primário (em sua cidade natal, Sacramento, em Minas Gerais) e talvez isso fizesse a diferença. “Carregava em uma sacola de aniagem [os papéis velhos que coletava nas ruas] e vendia pelo equivalente a 25 centavos de dólar ao dia.” Sofria as privações que a cidade grande lhe impunha e refletia sobre isso.
Em 1959, num bate-boca com os vizinhos de favela, disse que escrevia porque precisava “mostrar aos políticos as péssimas qualidades de vocês”. E acrescentou que contava com o apoio de um repórter, Eudálio Dantas, o jornalista que já naquele ano preparava os originais do que seria o seu primeiro livro: Quarto de despejo.
Com a vendagem do livro – um sucesso no início dos anos 60, com tradução para treze idiomas –, Carolina de Jesus conseguiu a casa de alvenaria com a qual sonhou durante anos.

O livro Quarto de despejou entrou na lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS  e talvez por isso eu o tenha encontrado na vitrine de uma livraria. Conhecia-o apenas dos trechos citados nos livros de História, como um dos raros registros da miséria brasileira produzido por um miserável e não por escritores de classe média ou alta. Feita a leitura, constato que é mais do que um documento histórico, é uma obra literária de beleza áspera, que me fez lembrar outra grande escritora negra: Marilene Felinto, autora de As mulheres de Tijucopapo. Mulheres de faca na bota.
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* O livro de John Chasteen citado é América Latina: uma história de sangue e fogo (RJ: Campus, 2001); o de Carolina de Jesus é Quarto de despejo: diário de uma favelada (SP: Ática, 2014 - 10 ª edição, 8 ª impressão).

2 comentários:

  1. Vitor, não sei se você sabe, mas Marilene Felinto escreveu uma resenha sobre um livro de Carolina, uma coletânea de poemas chamada "Antologia geral". no Caderno da Folha "Mais", em 1996. Só que fez isso atacando os méritos literários das obras dela em geral.

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  2. Interessante isso, Renan. Boa observação. Mas eu não li o que a Marilene escreveu sobre a Carolina de Jesus.

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