Visitei a Galeria Borghese este ano, em Roma, e não
saberia dizer o que mais gostei. Seguramente de uma pintura de Caravaggio, “Madona
com a serpente”, na Sala de Sileno, que me fisgou de um jeito que me fez
esquecer tudo ao redor. Mas devo confessar que fiquei de queixo caído quando
entrei na Sala do Hermafrodita e respirei o ar de sensualidade refinada que se
desprende das obras ali expostas, tanto da escultura romana que dá nome a sala
quanto das pinturas das paredes e do teto tematizando a trajetória do mítico Hermafrodita.
Coisa impressionante.
A galeria em questão foi criação do
Cardeal Borghese, no início do século XVII. O cardeal era sobrinho do Papa
Paulo V e ambos estavam sintonizados com a tradição da alta hierarquia católica
de recuperação da arte greco-romana. O cardeal e o papa não pouparam esforços
para incentivar as artes (com verbas da Igreja) e coube ao Cardeal Borghese a construção
de um palácio (matriz da atual galeria) com o propósito de reunir algumas obras
e promover a criação artística.
Era o tempo da Contra Reforma e
não deixa de causar perplexidade o fato de uma escultura representativa da
sexualidade “excêntrica” – o Hermafrodita – tivesse acolhida nesse
palácio eclesiástico. A escultura fora descoberta durante a construção dos
alicerces da igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma, e o cardeal pagara uma alta
soma de dinheiro para adquiri-la. A peça permaneceu na galeria até o início do
século XIX (época da invasão napoleônica), quando foi levada para a França.
Hoje se encontra no Louvre e o que se vê na galeria é outra cópia romana da
mesma escultura grega.
Milhares de turistas visitam
essas obras em Roma e Paris, são conquistados pelos encantos da representação
artística do hermafroditismo – da sexualidade estranha à normativa
heterossexual – e poucos se escandalizam com isso. Afinal, a arte que tematiza
a sexualidade, tanto a sexualidade heterossexual quanto outras, é daquelas que
mais fascina. Se o tema da sexualidade se fundir com o da
religiosidade, então, o resultado geralmente é de grande impacto. O
Hermafrodita tinha conteúdo sagrado na Antiguidade (ele era filho de Hermes e
Afrodite), mas perdeu esse caráter ao se tornar parte de uma coleção católica e
ser fonte inspiradora de um novo estilo artístico: o barroco romano.
Lembrei da Galeria Borghese e de sua
Sala do Hermafrodita, quando tive conhecimento das manifestações contrárias à
exposição de temática LGBT – “Queermuseu: cartografias da diferença na arte
brasileira” – no Santander Cultural, em Porto Alegre. Afinal, se os protestos
se deram devido à tematização de sexualidades contrárias a normatividade
heterossexual, já era hora dos manifestantes saberem que é esse tipo de arte é
antiga e que provoca muita satisfação ao público. Se os manifestantes se
incomodaram com a utilização de temas religiosos, na certa também desconsideraram
que essa é uma das matérias-primas da arte.
Quando visitei a exposição no
Santander, em agosto, imaginei que o material ali apresentado fosse causar
polêmica. Mas supus uma polêmica inteligente, tanto a respeito da linguagem
artística das obras quanto da temática abordada, inclusive quando utilizava elementos
religiosos. Afinal, tratava-se de uma exposição provocativa, com muitas peças
criadas nos termos da questionada estética conceitual (ou pós-moderna), ainda
não assimilada, e apresentadas em diálogo com obras de outros períodos da arte,
a instigar comparações, questionamentos e muitas vezes desconcertar.
Algumas peças utilizavam elementos do imaginário católico – como o caso da escultura “Cristo Nosso de Cada Dia” (1978), de Roberto Cidade (um dramático Cristo na cruz com o pênis ereto), e da pintura “Last Resort” (2016), de Felipe Scandelari (uma Madona com um desconcertante chipanzé de fraldas no colo) – e a polêmica era inevitável. Mas polêmica civilizada, como é costume no meio cultural, polêmica que considerasse os termos da arte e avaliasse as obras a partir do seu potencial conceitual, expressivo ou outro.
Algumas peças utilizavam elementos do imaginário católico – como o caso da escultura “Cristo Nosso de Cada Dia” (1978), de Roberto Cidade (um dramático Cristo na cruz com o pênis ereto), e da pintura “Last Resort” (2016), de Felipe Scandelari (uma Madona com um desconcertante chipanzé de fraldas no colo) – e a polêmica era inevitável. Mas polêmica civilizada, como é costume no meio cultural, polêmica que considerasse os termos da arte e avaliasse as obras a partir do seu potencial conceitual, expressivo ou outro.
Mas me enganei. O que ocorreu –
os manifestantes zombando dos visitantes, atacando o curador, ameaçando o
museu, clamando pelo fechamento da exposição – fugiu completamente aos termos
do debate de ideias, mesmo quando impregnado de paixões. Até no campo da arte estamos longe da discussão
civilizada.
Aqui, em Sucupira, Bole Bole ou Restinga Sêca, onde as coisas do mundo sempre eclodem sob a fúria dos conservadores, fui a voz dissonante e, claro, atacada por aqueles que julgaram absurda, insana, ofensiva a mostra do Santander. Como professora de literatura, que fui, tendo ensinado os preceitos básicos de literatura no curso superior, lembrei aos meus ex-alunos que temos o direito ao sentimento estético, à reação emotiva, mas, como críticos de literatura (e, por que não de arte?), precisamos nos pautar pelo senso estético. Brinquei como alguns aceitavam ler "Madame Bovary" ou "O crime do padre Amaro" e a argumentação é que são obras do passado. Lembrei-lhes que a literatura é obra do seu tempo ou, como queria Antonio Candido, é quando o social impregna-se na obra. Ainda que, pelo que entendi, as obras expostas no Santander datem dos anos 90, elas são fruto do nosso tempo e aí apelei: apelei para o assassinato de um menino de 8 anos na minha Restinga, supostamente morto por um tio-avô, zoófilo, preso e provavelmente currado no presídio, mas ainda pairava sobre um tio do menino a desconfiança que ele fosse o pedófilo, se ele era ou não era, ele suicidou-se. Como negar a arte se ela "fala" daquelas coisas do cotidiano, do nosso cotidiano. Por último, diria que se eu ainda estivesse em sala de aula, sobretudo, no ensino médio, onde também lecionei, essa polêmica seria um "prato cheio" para uma discussão em sala de aula sobre zoofilia e pedofilia, um professor em consonância com o seu tempo não pode fechar os olhos para os elementos que lhe são dados para problematizar a realidade. Um último comentário: obrigada por me permitir não ser a louca que dizem que sou.
ResponderExcluir