domingo, 17 de setembro de 2017

Apenas um rapaz latino-americano

         Antônio Carlos Belchior se tornou um enigma para muitos dos seus fãs. Em 2007, desapareceu dos olhos do público. Algumas vezes surgiam notícias de que ele estava no Uruguai, de repente era visto em Porto Alegre, a imprensa corria atrás e novamente ele sumia. Em abril desse ano, ele morreu de um aneurisma na aorta na cidade de Santa Cruz do Sul, sem que o mistério se solucionasse. O jornalista Jotabê Medeiros, que preparava uma biografia do cantor, estava com passagem comprada para Santa Cruz, iria entrevistá-lo e tentar conseguir uma resposta para o enigma, mas não houve tempo.

A biografia de Jotabê Medeiros acaba de sair – Belchior: um rapaz latino-americano (Ed. Todavia, 200 p.) – e não poderia haver subtítulo melhor para a narrativa da trajetória desse cantor e compositor do que o seu famoso verso sobre a rapaziada latino-americana. Segundo Jotabê, o verso nasceu durante uma aula na Universidade de Brasília, em 1974 ou 75, do filósofo cearense Augusto Pontes (e também amigo e guru do compositor). O filósofo se apresentou dizendo que era “apenas um rapaz latino-americano sem parentes militares” e o compositor serviu-se da frase como mote para uma canção: “Eu sou apenas um rapaz / latino-americano / sem dinheiro no banco / sem parentes importantes / e vindo do interior”.  Uma pegada comparável as de Raul Seixas, outro compositor que sacava as elaborações filosóficas complexas e as transformava em canções de grande alcance comunicativo.[i]
Nos anos 70, talvez não houvesse estudante universitário que não tivesse os versos de Eu sou apenas um rapaz... na ponta da língua. No turbilhão daqueles anos, marcados por uma ditadura militar e a aceleração do desenvolvimento capitalista, parte da juventude brasileira procurava definir uma identidade latino-americana e sentia-se acossada por conta da conjuntura política e econômica. Os versos de Belchior vinham a calhar.
Belchior teve seu primeiro LP em 1974 (Mote e glose), mas a fama só veio dois anos depois, quando Elis Regina interpretou duas de suas melhores canções – Como nossos pais e Velha roupa colorida – e lançou o seu segundo LP, o antológico Alucinação. Com voz fanhosa, anasalada, era incrível que ele conseguisse ser ouvido e comparado com as interpretações impecáveis de Elis Regina. Um fenômeno! Um cantor de poucos recursos musicais (especialmente se comparado com Elis), mas que se impunha como compositor e intérprete extremamente perspicaz das inquietações brasileiras.
A biografia de Jotabê reconstitui a trajetória de Belchior (1946 – 2017) e indica possíveis respostas para o sumiço do cantor, nos dez últimos anos de vida. Ao colocar no primeiro capítulo o período da vida (três anos) em que Belchior esteve no mosteiro dos capuchinhos em Guaramiranga (Ceará), o biógrafo dá um peso considerável para a inclinação religiosa do cantor. No mosteiro, Belchior consolidou o seu pendor para a literatura, a filosofia, assim como adquiriu a disciplina intelectual que possibilitará a sua extensa produção poética. Da mesma maneira, exercitou o seu sonho de santidade, constatou que sua vocação religiosa era pouca e caiu fora, pegou a estrada.
Este sonho de criança Belchior teria alcançado no final da vida, segundo o seu amigo e analista Barbosa Coutinho (o famoso “analista amigo meu” da canção Divina comédia humana). Escondendo-se dos fãs e até dos familiares e amigos (protegido por uma espécie de Yoko Ono brasileira, a sua última mulher, Edna Prometheu), Belchior talvez tenha vivido o sonho de pureza dos santos e também dos velhos hippies: a não pactuação com o “Sistema” (para utilizar uma expressão dos anos 60 e 70). Uma tese para os fãs debaterem, para melhor entender esse poeta nordestino que fez a cabeça de muitos de nós.





[i] A frase completa do filósofo Augusto Pontes, segundo as anotações que deixou, é a seguinte: “Sou apenas um sul-americano sem parentes no poder, apenas a pessoa eu, no estado de mim mesmo”. 

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