O
Velho morreu quando eu tinha três anos de idade. De tanto o pai e a mãe
contarem como eram as visitas que fazíamos quando ele estava doente, parece que
vejo tudo. Vejo o corredor cumprido da casa do Velho e nós caminhando até o
quarto dele. Vejo a cama no meio do quarto, o Velho estendido, de barriga para
cima, ofegante, olhando o teto. Depois vamos para a cozinha e a tia nos serve
salada de frutas. Eu choro porque quero só o caldo da salada de frutas, não
quero as frutas, e os adultos fazem a minha vontade. A mãe conta que faziam isso
para eu parar de incomodar.
Então eu fico olhando pela porta da cozinha e vejo meu
irmão correndo pelo pátio. Ele pára na frente de um puxadinho construído pelo
avô – um pequeno telhado escorado por dois dormentes da estrada de ferro, com
um tanque de lavar roupa embaixo – e ele fica olhando aquela pequena obra com
uma espécie de veneração. Mais tarde eu também vou andar pelo pátio e parar na
frente do tanque e passar a mão nos dormentes com ar de admiração. Aquilo foi
obra do Velho nos tempos áureos, isto é, quando era um homem vigoroso. O Velho
pertencera aos quadros da Viação Férrea e trouxera os dormentes para casa,
justamente para aquela obra. As tias sempre contavam essa história.
Na última vez que visitei a casa, poucos anos atrás,
fiquei caminhando pelo pátio e lembrei do Velho. Ele chegou ao Brasil no final
do século XIX e meu sobrinho, vasculhando nos documentos da Hospedaria do
Imigrante, descobriu a data certa: 20 de agosto de 1888. A abolição dos
escravos acontecera naquele ano, meses antes. O avô chegou com o pai, a mãe,
uma irmã menor e foram trabalhar numa fazenda de café, em Sorocaba.
Quando meu sobrinho enviou por e-mail os documentos,
lembrei do que o pai contava:
– Os italianos chegavam para trabalhar nas fazendas e
descobriam que, antes deles, quem fazia o serviço eram negros escravizados. Os
escravos viviam em pequenas palhoças e os italianos não queriam morar naquelas casas
acanhadas, indignas de um trabalhador.
A história do Velho me foi contada aos pedaços. Há
anos venho juntando as partes e cada vez o resultado sai diferente. O Velho –
naquele tempo um guri de catorze anos – colheu café em fazenda paulista, depois
foi para a cidade e começou a trabalhar numa companhia de navegação. Os navios
subiam o rio Tietê, entravam no Mato Grosso e ele pegou malária. O médico falou
que ele não podia ter malária novamente e o mandou para um lugar onde não
houvesse a doença. Por isso ele veio para o Rio Grande do Sul
Na década de 1920, o Velho chegou a Santa Maria e se
tornou funcionário da Viação Férrea. Na década seguinte, estava estabelecido em Pelotas. Ascendeu
ao posto de Engenheiro Prático – um tipo de engenheiro que não tinha diploma
universitário (depois esses engenheiros foram substituídos pelos diplomados) –
e se aposentou nos anos 50.
Era um homem severo, o pai contava. Chegava do
trabalho sujo de graxa e jogava a roupa para as filhas lavarem. Queria tudo bem
limpo. Gostava de camisas brancas, com punhos e colarinho engomados, e essas eram
as peças que primeiro sujavam. As filhas se revezavam no tanque e depois
passavam e engomavam. Deve ter sido por isso que ele trouxe os dormentes da
estrada de ferro e fez aquele puxadinho no quintal da casa. Ali, as minhas tias
penavam, inverno e verão. Não era fácil tirar o encardido das roupas, elas
contavam.
O Velho gostava de se vestir bem. Dizia que era assim
que um Engenheiro Prático precisava se apresentar, principalmente depois que os
engenheiros diplomados começaram a ocupar os lugares de mando. O Velho sabia
que estava perdendo espaço e lutava, com unhas e dentes, para manter sua
posição. Fora assim que deixara de ser trabalhador rural e se tornara operador
de máquinas, trabalhando em navio, e depois em locomotivas da Viação Férrea.
– Teu avô era um homem severo e intransigente. Hoje,
se diria que era autoritário – o pai falava, com orgulho. E com os olhos
marejados de lágrimas. Afinal, a dureza do Velho não se refletia apenas no
trabalho. Em casa, ele era rígido na educação dos filhos. Batia por qualquer
falha que alguém cometesse. Tirava o cinto das calças e sentava o laço no lombo
dos filhos. Mas cuidava para não bater com a fivela, o pai observava. Dobrava a
cinta para que a fivela ficasse presa na sua mão.
– Quando alguma
coisa não era feita como ele queria, o Velho gritava e batia – o pai explicava.
– Mas depois envelheceu, enviuvou e ficou manso como um cordeirinho. Gostava
que as noras sentassem ao seu lado e conversassem com ele. A tua mãe chegava perto
da cama, levantava os netos e dizia: “Este é o Rubinho, este é o Vitinho. Olha
como estão crescendo.”
Quando a mãe me apresentava pro Velho, na certa dizia
que este era um menino manhoso, que ele precisaria ajudar a corrigir com uma ou
outra surra. Então eu esperneava, ela me colocava no chão e eu corria para a
cozinha. Chorava pedindo isto e aquilo e os adultos me atendiam para que eu me
calasse e não atordoasse os ouvidos do Velho. Pois o Velho tinha muita dor. Ficava
deitado, de barriga pra cima, as mãos em cima do peito, os olhos fixos no teto.
Eu o vejo dessa maneira. Eu tinha três anos quando o Velho morreu. Tudo que eu
sei foi o que me contaram.
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