domingo, 13 de outubro de 2013

O Velho

       O Velho morreu quando eu tinha três anos de idade. De tanto o pai e a mãe contarem como eram as visitas que fazíamos quando ele estava doente, parece que vejo tudo. Vejo o corredor cumprido da casa do Velho e nós caminhando até o quarto dele. Vejo a cama no meio do quarto, o Velho estendido, de barriga para cima, ofegante, olhando o teto. Depois vamos para a cozinha e a tia nos serve salada de frutas. Eu choro porque quero só o caldo da salada de frutas, não quero as frutas, e os adultos fazem a minha vontade. A mãe conta que faziam isso para eu parar de incomodar.
Então eu fico olhando pela porta da cozinha e vejo meu irmão correndo pelo pátio. Ele pára na frente de um puxadinho construído pelo avô – um pequeno telhado escorado por dois dormentes da estrada de ferro, com um tanque de lavar roupa embaixo – e ele fica olhando aquela pequena obra com uma espécie de veneração. Mais tarde eu também vou andar pelo pátio e parar na frente do tanque e passar a mão nos dormentes com ar de admiração. Aquilo foi obra do Velho nos tempos áureos, isto é, quando era um homem vigoroso. O Velho pertencera aos quadros da Viação Férrea e trouxera os dormentes para casa, justamente para aquela obra. As tias sempre contavam essa história.
Na última vez que visitei a casa, poucos anos atrás, fiquei caminhando pelo pátio e lembrei do Velho. Ele chegou ao Brasil no final do século XIX e meu sobrinho, vasculhando nos documentos da Hospedaria do Imigrante, descobriu a data certa: 20 de agosto de 1888. A abolição dos escravos acontecera naquele ano, meses antes. O avô chegou com o pai, a mãe, uma irmã menor e foram trabalhar numa fazenda de café, em Sorocaba.
Quando meu sobrinho enviou por e-mail os documentos, lembrei do que o pai contava:
– Os italianos chegavam para trabalhar nas fazendas e descobriam que, antes deles, quem fazia o serviço eram negros escravizados. Os escravos viviam em pequenas palhoças e os italianos não queriam morar naquelas casas acanhadas, indignas de um trabalhador.
A história do Velho me foi contada aos pedaços. Há anos venho juntando as partes e cada vez o resultado sai diferente. O Velho – naquele tempo um guri de catorze anos – colheu café em fazenda paulista, depois foi para a cidade e começou a trabalhar numa companhia de navegação. Os navios subiam o rio Tietê, entravam no Mato Grosso e ele pegou malária. O médico falou que ele não podia ter malária novamente e o mandou para um lugar onde não houvesse a doença. Por isso ele veio para o Rio Grande do Sul
Na década de 1920, o Velho chegou a Santa Maria e se tornou funcionário da Viação Férrea. Na década seguinte, estava estabelecido em Pelotas. Ascendeu ao posto de Engenheiro Prático – um tipo de engenheiro que não tinha diploma universitário (depois esses engenheiros foram substituídos pelos diplomados) – e se aposentou nos anos 50.
Era um homem severo, o pai contava. Chegava do trabalho sujo de graxa e jogava a roupa para as filhas lavarem. Queria tudo bem limpo. Gostava de camisas brancas, com punhos e colarinho engomados, e essas eram as peças que primeiro sujavam. As filhas se revezavam no tanque e depois passavam e engomavam. Deve ter sido por isso que ele trouxe os dormentes da estrada de ferro e fez aquele puxadinho no quintal da casa. Ali, as minhas tias penavam, inverno e verão. Não era fácil tirar o encardido das roupas, elas contavam.
O Velho gostava de se vestir bem. Dizia que era assim que um Engenheiro Prático precisava se apresentar, principalmente depois que os engenheiros diplomados começaram a ocupar os lugares de mando. O Velho sabia que estava perdendo espaço e lutava, com unhas e dentes, para manter sua posição. Fora assim que deixara de ser trabalhador rural e se tornara operador de máquinas, trabalhando em navio, e depois em locomotivas da Viação Férrea.
– Teu avô era um homem severo e intransigente. Hoje, se diria que era autoritário – o pai falava, com orgulho. E com os olhos marejados de lágrimas. Afinal, a dureza do Velho não se refletia apenas no trabalho. Em casa, ele era rígido na educação dos filhos. Batia por qualquer falha que alguém cometesse. Tirava o cinto das calças e sentava o laço no lombo dos filhos. Mas cuidava para não bater com a fivela, o pai observava. Dobrava a cinta para que a fivela ficasse presa na sua mão.
 – Quando alguma coisa não era feita como ele queria, o Velho gritava e batia – o pai explicava. – Mas depois envelheceu, enviuvou e ficou manso como um cordeirinho. Gostava que as noras sentassem ao seu lado e conversassem com ele. A tua mãe chegava perto da cama, levantava os netos e dizia: “Este é o Rubinho, este é o Vitinho. Olha como estão crescendo.”

Quando a mãe me apresentava pro Velho, na certa dizia que este era um menino manhoso, que ele precisaria ajudar a corrigir com uma ou outra surra. Então eu esperneava, ela me colocava no chão e eu corria para a cozinha. Chorava pedindo isto e aquilo e os adultos me atendiam para que eu me calasse e não atordoasse os ouvidos do Velho. Pois o Velho tinha muita dor. Ficava deitado, de barriga pra cima, as mãos em cima do peito, os olhos fixos no teto. Eu o vejo dessa maneira. Eu tinha três anos quando o Velho morreu. Tudo que eu sei foi o que me contaram.

Nenhum comentário:

Postar um comentário