Estou
no sopé do Morro do Campestre e me preparo para fazer o percurso até a ermida de
Santo Antão. É 17 de janeiro, dia da festa em homenagem ao santo, estou acompanhado de uma
colega e ambos pesquisamos religiosidade popular. Nos perguntamos se é possível
compreender cientificamente a fé que move os devotos e temos as nossas dúvidas.
Vários
romeiros estão no Campestre (atual Distrito de Santo Antão, em Santa Maria), a maioria em torno
da igreja, onde logo iniciará a missa campal. Pequenos grupos, no entanto,
sobem e descem o morro e a esses grupos que nos reunimos. O caminho é íngreme e
exige cuidado para não escorregar e cair.
No
domingo anterior, a Comunidade do Campestre trouxe a imagem do santo que estava
na ermida, no alto do cerro, e instalou-a na igreja. Hoje, a imagem está
colocada ao ar livre e é em torno dela que se realiza a festa. Os devotos se
aproximam da imagem, levantam o manto feito de pano que envolve o santo,
escondem o rosto e murmuram suas preces. Depois haverá missa, almoço e, ao
longo da tarde, jogos e diversões.
Só
os mais corajosos sobem o morro, me adianta um devoto. E eu não pertenço mais a
esse grupo, ele explica. Mas desde menino, nos anos 40, e até
pouco tempo atrás, ele e a mulher subiam. Agora é muito arriscado, comenta. Na
última vez a esposa levou um tombo e foi difícil erguê-la do chão.
Os
dois se conheceram na romaria, em 1950, e casaram em 52. Os filhos se criaram
na devoção ao santo e um deles ainda vem, de vez em quando, com a mulher e o filho.
Os outros não. O santo foi muito importante na nossa vida, me garante a esposa.
Espero que ela me explique como o santo ajudou a família e ela apenas revela, emocionada,
que é um santo milagreiro, sempre atendeu as suas preces. Sorri, e esta parece
ser a resposta à minha indagação.
Minha
colega e eu somos professores e queremos palavras para embasar nossa pesquisa.
Coisas de professor... Recolhemos palavras, fazemos fotos, aplicamos questionário,
mas sabemos que são instrumentos precários.
Subimos
o morro com os romeiros e compartilhamos a experiência da caminhada. Há compenetração na jornada que fazemos com os romeiros, alguma
solenidade e também muitos comentários divertidos. Volta e meia alguém
escorrega, às vezes é segurado, outras vezes se agarra numa árvore, e há os que
desabam no chão. Seguem risos e frases bem humoradas a respeito dos pecados de
cada um e de como podemos pagá-los. O santo cobra por nossos erros, mas é
generoso, explica um romeiro, às gargalhadas.
Ninguém
usa bastão e a maioria dos calçados são inadequados para a empreitada. As mulheres
calçam sandálias, os homens usam sapatos comuns e poucos se utilizam de tênis
ou botinas de montanhista. Uma mulher de sapato de salto cruza por mim,
descendo o morro, e pergunto para minha colega como ela consegue. Ela escorrega,
o companheiro a segura, e minha colega comenta que ela vai terminar o dia
sentido dores horríveis nas pernas. Mas talvez feliz por ter cumprido uma
promessa, imaginamos.
Próxima
a uma das catorze cruzes que marcam o percurso, uma senhora tira os calçados e me
explica que prefere andar descalça. Tem 70 anos e vêm todos os anos. É devota
do santo desde menina. Ela sorri para minha colega, coloca os sapatos dentro da
bolsa e segue morro acima.
No
alto do cerro, em torno da ermida, um senhor me explica que veio de São Gabriel.
Colocou a família no caminhão e chegou ontem de noite. Tem sido assim
desde que uma filha apresentou distúrbio mental e o santo a fez melhorar. Desde
então toda a família participa da festa. A menina sarou, casou e hoje é mãe de
criança. Uma mulher normal, me explica o pai, orgulhoso e emocionado.
Converso
com um casal de namorados e eles explicam que gostam muito do santo, por isso participam
da festa. São jovens de 16 e 17 anos, e acham graça quando pergunto por que
admiram Santo Antão. É uma devoção que a mãe ensinou, a menina explica. O namorado
concorda e não arranco mais nenhuma palavra deles.
Tudo
aparentemente simples, concluo. Mas sinto um mistério na candura desses
namorados e não consigo decifrá-lo. É o mesmo enigma que percebi no casal de 70
anos que hoje não sobe mais o cerro. O mesmo segredo que senti no pai que põe a
família dentro do caminhão e vem todos os anos homenagear o santo.
Mistério,
enigma e segredo. São essas as palavras que povoam meu pensamento enquanto
desço o cerro, cuidando para não escorregar. É um santo da mata, me explica um
romeiro. E a gente tem que subir e descer o morro para sentir a sua força, ele acrescenta.
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