sábado, 21 de setembro de 2013

Mitologia gaúcha

O MTG tem se revelado bastante dinâmico. Neste ano, propôs para as suas agremiações o desenvolvimento de atividades culturais que envolvessem uma reflexão a respeito da origem do gaúcho a partir da perspectiva da mitologia regional. Tempos atrás, eu via os intelectuais do MTG se contrapondo a qualquer ideia que maculasse a “verdade histórica do gaúcho”. Falar em “mito do gaúcho”, por exemplo, era uma ofensa.
Na perspectiva de um tradicionalista, não havia mito, havia verdade histórica. O gaúcho era entendido como um nômade selvagem que, ao final do século XIX, se transformou num tipo civilizado, um verdadeiro cavalheiro.
Uma das elaborações pioneiras dessa compreensão encontra-se em “Ensaio sobre costumes do Rio Grande do Sul” (1883), de João Cezimbra Jacques (reeditado pela Editora UFSM, em 2000).
Até recentemente, me parece que a discussão a respeito da figura do gaúcho se dava em torno da “verdade histórica a respeito da formação de nossa sociedade” e da inserção social dos “cavaleiros nômades” na sociedade estabelecida. Um debate que passava ao largo do entendimento de que as sociedades elaboram mitos, constroem narrativas míticas e embaralham os dados que a historiografia (com pretensões de ciência) estabelece.
Hoje, alguns quadros do MTG estão afinados com as atuais tendências historiográficas e tratam o assunto de forma diferente. Referem-se tranquilamente à “invenção das tradições”, ao projeto político-ideológico da elite regional sul-rio-grandense (que estabeleceu as bases do movimento tradicionalista) e  entendem que o gaúcho foi uma construção cultural. Como tipo social, o gaúcho foi exterminado pelas guerras e pelo cercamento dos campos. Ao mesmo tempo, foi recuperado e ressignificado por literatos e também por ideólogos da classe dominante.
De certa forma, esses novos quadros do MTG (provavelmente ainda em pequeno número) renovam a “ideologia do gauchismo” e a desvinculam de concepções conservadoras. Rompem com o entendimento do gauchismo como suporte de um projeto conservador de sociedade e o consideram, principalmente, como elemento da identidade sul-rio-grandense. Uma identidade que não cessa de conquistar adeptos.
Da minha parte, penso que tenho colaborado com esses quadros que buscam a renovação do gauchismo. Afinal, mais uma vez, fui palestrar num piquete acantonado no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. Preparei uma palestra a respeito das narrativas literárias e me dispus a colaborar quanto à reflexão em torno da figura do gaúcho, a partir da mitologia regional.
Nesse sentido, centrei fogo nas narrativas literárias que se alicerçam no mito, como foi o caso da obra de João Simões Lopes Neto.
Lopes Neto, afinal, ao criar Blau Nunes – um “genuíno tipo [...] rio-grandense”, “guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável” – configurou um dos mais emblemáticos gaúchos da nossa mitologia. Seus principais livros –  Contos gauchescos e Lendas do Sul – foram publicados na década de 1910 e podem ser lidos com gosto até os dias de hoje.
Ao final do conto “A Salamanca do Jarau”, entendo que Lopes Neto estabeleceu o ideal de gaúcho da nossa mitologia: o homem rude, frugal e honesto. Blau Nunes se desfez de toda a riqueza que lhe concedera o sacristão enfeitiçado pela Princesa Moura para bem poder comer o seu churrasco, beber o seu chimarrão e fazer a sua sesta em paz, com “o coração aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde”.
O leitor talvez ache que encaro de forma muito branda um assunto tão complexo a respeito da cultura sul-rio-grandense. Pode ser. Mas tem sido esse o meu jeito de dialogar com os regionalistas. Dialogar, colaborar e ao final comer um costelão delicioso ou – como ocorreu nesse ano – uma fabulosa paella gaúcha.

Comer, charlar, confraternizar, com o coração sintonizado num mito fundado encarnado por Blau Nunes – o pachorrento Aquile que nos coube no grande banquete cultural da humanidade. 

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