sábado, 7 de setembro de 2013

Leite adulterado

         Há cenas do cotidiano que nos conectam com o mundo, que nos remetem para além da cena prosaica do dia a dia. No meu caso, poderia dizer que o café da manhã às vezes tem esse sentido. 
Há dias em que despejar o leite na leiteira e esperar ele esquentar me remete à vivências mais profundas, como o meu tempo de criança ou a época em que eu cuidava dos filhos pequenos...  
Na minha infância, o leiteiro deixava a garrafa de leite no portão de casa e depois a mãe ou a empregada o colocava a ferver. Tinha que deixar subir no mínimo três vezes para eliminar de vez os germes e bactérias.
Minha memória pode estar enganada, mas acho que era assim: deixar ferver três vezes. Quando meus filhos passaram a tomar leite de vaca, eu tomava esses cuidados. Ferver e depois esfriar o leite. Às vezes, tudo feito com rapidez, pois o leite (a mamadeira) precisava ser servido logo.
Não havia mais o leiteiro e sua carroça passando pela rua. O leite era adquirido no supermercado e não mais em garrafa de vidro, mas embalado em saquinho plástico.
Hoje, compro caixas de Elegê desnatado e não me preocupo mais em ferver o leite. Apenas esquento. O processo de preparo do leite ganhou um estatuto industrial e germens e bactérias já vêm eliminados – junto com conservantes, claro.
No entanto, notícias de adulteração do leite passaram a ser freqüentes na imprensa e disso me lembrei, hoje, ao preparar o café da manhã...
Em Teutônia, no Vale Taquari, a empresa BRF (que produz o Elegê), recebeu 33 mil litros de leite cru adulterado com álcool etílico (o mesmo dos combustíveis e daquele utilizado na limpeza doméstica). O leite não chegou a ser industrializado, não chegou aos consumidores, mas os produtores de leite tentaram.[1]
Na manhã de hoje, diante da leiteira em cima do fogão, alguma coisa nublou a minha cena doméstica e, especialmente, a minha conexão com o passado. Pensei no que eu faria, se tomasse conhecimento de episódios como esse quando esquentasse o leite para os filhos pequenos...
Pensei tudo isso, me servindo de leite, misturando o Nescafé e bebendo silenciosamente. 
Ao fundo, cheguei a ouvir a voz do meu filho quando era pequeno, encostado na porta da cozinha, perguntar:
– E essa mamadeira, que horas vai sair?




[1] FISCAIS detectam álcool em leite entregue para a BRF. Zero Hora, POA, 31 ago 2013, p. 26.

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