quarta-feira, 3 de agosto de 2022

As histórias dos outros - por Zuenir Ventura

            Estive em Porto Alegre e fiz a visita inevitável aos sebos da cidade. Um hábito (ou vício) incontrolável. Entre as aquisições, Minhas histórias dos outros (2005), de Zuenir Ventura. Também adquiri Memórias de Garibaldi, de Alexandre Dumas, publicação da L&PM, e um exemplar de capa dura do Monteiro Lobato, de 1960, que tive na na infância e se extraviou.

Zuenir escreve sobre um período de cinquenta anos (1954 a 2004), desde que chegou ao Rio de Janeiro para cursar Letras, enfocando sua atividade jornalística. Os episódios que viveu e as pessoas que conheceu.

Esteve na Europa em 1960-61 (fazendo curso de jornalismo em Paris) e, em Viena, assistiu Jacqueline Kennedy descendo de um carro e conseguiu clicar a grande dama, um mito naquela época. Acompanhou Glauber Rocha em Cannes, barbarizando com o filme “Deus e o diabo na terra do sol”. Subiu o morro Dona Marta e entrevistou o traficante Márcio VP, em 1997, que então declarava simpatia ao zapatismo e pousava de guerrilheiro. Não é pouca coisa.

Mas comprei o livro porque abri na página em que ele descrevia o “verão da abertura” (1979-80) e se referia ao Fernando Gabeira pousando de tanga de crochê em Ipanema. Gabeira fazia sucesso com O que é isso, companheiro? e divulgava temas que, segundo Zuenir, eram novos para a esquerda tradicional, como “culto ao corpo, liberdade sexual, direito da mulher, homossexualismo, ecologia e racismo”. Novos para a esquerda ainda marcada pelos partidos comunistas, me parece, pois a esquerda estudantil já discutia esses temas há algum tempo.

Seja como for, Zuenir tem razão: Gabeira era uma referência para um novo debate político-cultural. Alguns homens questionavam o machismo (a tanga de crochê tinha essa intenção), algumas mulheres ensaiavam topless nas praias do Rio e novas formas de relacionamento sentimental e sexual se expandiam, como a “amizade colorida”. A abertura política tinha um complemento de abertura comportamental ou algo assim.

Tempos interessantes, aqueles. As mulheres aprimoravam a arte da exibição do corpo, com novos formatos de biquini (asa-delta, bumerangue e ti-ti-ti) e os partidos comunistas voltavam a mostrar a cara (durante a campanha “Diretas Já”), inclusive emitindo novas carteirinhas para seus filiados. Bundas à mostra e comunistas sem medo – uma feliz síntese dos anos 80. Mas logo chegou a peste (a Aids) e tudo pareceu refluir. Segundo o autor, era o fim da revolução sexual iniciada na década de 60.

Paralelo aos novos ares liberais na política e nos costumes, no entanto, um quadro de violência criminosa crescia no Rio de Janeiro. Em 1981, a revista Veja publicou uma reportagem sobre o tema (produto da sucursal carioca, chefiada pelo autor) com a seguinte chamada de capa: “A guerra civil no Rio”. Era a primeira vez que a expressão “guerra civil” era utilizada na imprensa. Um quadro que, ao longo da década de 80, se expandiu. Os traficantes terminaram consolidando um poder paralelo na cidade (tema de seu livro Cidade partida, 1994) e que parece perdurar até hoje.         

          Gostei do livro de Zuenir (mesmo lido quase vinte anos depois de publicado). Leitura fluente, leve, dando conta das transformações ocorridas com a redemocratização (que hoje está em perigo) e também de situações terríveis, como o atentado terrorista no Riocentro (1981), a chegada da Aids, o terror criado pelas organizações de traficantes e o assassinato de Chico Mendes (1988). Assuntos que o autor vivenciou, escreveu e recordou. Temas do nosso mundinho cruel, às vezes sufocante, mas nem por isso menos sedutor.

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