sábado, 11 de novembro de 2017

Donjuanismo, poesia & tragédia

Na noite de 23 de abril de 1927, na mal iluminada Rua Ernesto Beck, numa cidade do interior do Rio Grande do Sul – Santa Maria –, dois homens armados se defrontaram por causa de uma mulher. Os dois homens eram Pedro da Silva Beltrão, 34 anos, comerciante, e Francisco Ricardo, 31, juiz e poeta.  A mulher, dona Ana Calderan Beltrão, 29, era casada com Pedro.
O marido seguiu a esposa pela rua e depois encontrou-a com o poeta, conversando na calçada. O marido já sabia que o poeta Francisco andava fazendo “gracejos” a sua esposa e estava preparado. Ao aproximar-se dos dois, gritou “filho da puta” e sacou a arma. O poeta também utilizou o seu revólver e oito tiros foram disparados. Nenhum dos dois homens sobreviveu. O sedutor morreu 24 horas depois, o marido resistiu quatro dias. Dona Ana, por sua vez, não teve ferimento.
No dia do enterro de Pedro Beltrão, a imprensa local louvou o esposo: “a virilidade da nossa raça não está de todo desvirtuada, pois ainda há homens que preferem perder a vida, a conservá-la [...] manchada”. Dias depois, um outro jornal se referia ao poeta como “um juiz Don Juan [...] useiro e vezeiro nos desaforos [e] ousadias”.
Do ponto de vista da História, mais um episódio a respeito das rigorosas regras sociais que existiam para os casos de “ameaça à honra familiar”. Matar era uma saída elogiada para os homens que se sentiam “ultrajados”. Matar para viver. 


 Sergio Faraco e Valter Noal Filho trazem à tona esse episódio santa-mariense e o esclarecem à luz do inquérito policial e das notícias de jornais da época, assim como de um artigo (de membro da Academia Rio-Grandense de Letras) e de depoimentos de memorialistas. E ainda acrescentam ao livro uma coletânea de poemas de Francisco Ricardo, mais fotos do período.
As motivações e o confronto dos dois homens ficam esclarecidos, mas quanto a dona Ana o enigma permanece. Como indicam os autores: “O que Rosa fazia ali [na Rua Ernesto Beck], naquele horário [20h30min] e numa rua escura, acompanhada de um homem cuja fama era por todos conhecida e verberada?” Um silêncio completo da voz feminina – que, ao que tudo indica, não deixou registro.
Mas se faltam referências ao protagonismo feminino, não se pode dizer o mesmo das figuras masculinas, como demonstra soneto abaixo, de Francisco Ricardo, representativo da sua disposição romântica. O poema fora publicado em 1927 e era “dedicado a uma misteriosa mulher de Santa Maria”:
“Ela dirá que tudo foi brinquedo... / um romance sem prólogo nem fim... / romance sem palavras... sem segredo... / Eu direi que nem tudo foi assim... // (...) // Direi que a sua história é bem contada: Era uma vez uma alta Flor-amada / era tão alta que ninguém colheu... // E por ser Flor de Torre, altiva e quieta, / dizem que foi colhida por um poeta / e esse alto poeta... dizem que fui eu!
O poeta Francisco Ricardo tinha 1,85 metro de altura, era conhecido pelo seu interesse por mulheres casadas e costumava trazer consigo um revólver “espanhol”, calibre 38.

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