Nos últimos quinze anos de vida (entre os anos de 1920
e 1935), Fernando Pessoa morou num apartamento na Rua Coelho da Rocha, nº 16,
no bairro Campo de Ourique. Na década de 90, o prédio de apartamentos foi
adquirido pela prefeitura de Lisboa e transformado na Casa Fernando Pessoa, um
centro cultural dedicado à memória do poeta e ao estudo da sua obra.
Dias atrás peguei um táxi para visitar o local e falei
ao motorista que queria ir a Casa Fernando Pessoa e me referi a ela como “um
centro cultural dedicado ao poeta”. De forma ríspida, o motorista me explicou que
o local “não é um centro cultural, é uma casa”.
– O senhor quer ir a Casa Fernando Pessoa ou a um
centro cultural? – ele perguntou, incisivo.
– A Casa Fernando Pessoa – eu respondi. E lembrei que
os lusitanos são rigorosos no uso da linguagem, se irritam com o modo dos brasileiros utilizarem a língua portuguesa e que é melhor não complicar.
Enfim, pulando a implicância do motorista de táxi, a
Casa Fernando Pessoa é um centro cultural dedicado à memória do “mais universal
dos escritores portugueses” e consiste num prédio inteiro (o térreo mais dois
andares) com salas de exposições permanentes e temporárias, acesso à biblioteca
pessoal do poeta completamente digitalizada, mais uma biblioteca dedicada ao
tema “Fernando Pessoa”, com estantes de parede inteira forradas de livros e
acessíveis ao visitante.
O quarto do poeta é reconstituído e muitos dos objetos
ali expostos foram de seu uso pessoal – como a famosa cômoda na qual o poeta
escrevia de pé. Segundo carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro
(escrita em janeiro de 1935), foi de pé diante dessa cômoda que ele viveu o seu
“dia triunfal”, escrevendo – um atrás do outro – os primeiros poemas dos
heterônimos Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Uma lenda criada
pelo próprio poeta, segundo os especialistas. Mas a carta está ali, reproduzida
ao lado da cômoda, para deleite dos visitantes.
Há também uma máquina de escrever – mas essa não foi
de propriedade do poeta. Pertencia a um dos escritórios em que ele trabalhou
como correspondente comercial. Máquinas de escrever eram caras e o poeta sempre
teve orçamento modesto, explicam os seus biógrafos. Os patrões de Fernando
Pessoa costumavam ser gentis e permitiam que ele datilografasse seus textos nas
máquinas do escritório.
Segundo depoimento de um contemporâneo do poeta, o
quarto do apartamento da Rua Coelho da Rocha não tinha a aparência asséptica como
hoje vemos: o ambiente era mal iluminado, cheirava a tabaco, os cinzeiros viviam cheios de "beatas" (baganas) e sempre havia muitos papéis sobre a mesa. O contemporâneo, no
caso, era o filho do barbeiro Manassés, que às vezes atendia o poeta em casa. O
filho acompanhava o pai e anos depois ele recordou o cenário.
Subi e desci a Casa Fernando Pessoa e terminei a
visita no café (nos fundos do prédio) lendo um livro que adquiri na lojinha: Fernando Pessoa para todas as pessoas,
de Ricardo de Morais (Editora Verso de Kapa, 2015, 245 p.), “membro da equipa”
da Casa. Livro para satisfazer a curiosidade do visitante a respeito da vida do
poeta e também de suas estratégias literárias – inclusive com trechos da
correspondência com Ophélia Queiroz, a única namorada do poeta. Um
relacionamento que não vingou.
Quando escrevo essa crônica, já terminei o livro acima e fiquei impressionado com os sofrimentos e a solidão do poeta. Escritor genial, sim, com estratégias literárias excepcionais – como a criação dos
heterônimos, com o propósito de dar conta da diversidade humana –, mas um homem que colocou a obra acima da própria da vida. Um homem que dizia
ter em relação a vida apenas “o interesse de um decifrador de charadas”. Um
espírito superior, claro (como ele próprio reconhecia), mas que preço alto para a produção de uma obra, que preço!
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